Sabe-se que o direito brasileiro admite duas formas de jurisdição aptas a regular solução de conflitos, a estatal e arbitral.[1]
Tem-se, portanto, que pessoas capazes de contratar, poderão aderir a arbitragem para solução de impasses relativos a direitos patrimoniais disponíveis[2] , materializada pela cláusula compromissória e o compromisso arbitral, retirando do Poder Judiciário tal missão.
Louvável a permissão ofertada pela Lei Processual Civil, da possibilidade de os jurisdicionados optarem pela seara privada, que automaticamente substitui a estatal.
Apenas é dado ao Poder Judiciário intervir nas sentenças arbitrais em hipóteses específicas, como as nulidades previstas nos incisos do artigo 32, da Lei 9.307/1996.
Do mesmo modo que a modalidade jurisdicional faz as vezes da estatal, na solução de determinado litígio, caso a existência de convenção de arbitragem não seja alegada em sede de contestação, sob pena de preclusão temporal, tem-se por aceita e prorrogada a jurisdição do estado.
Pois bem. Esse singelo ensaio tem a missão de discorrer acerca de três pontos de interseção entre as aludidas espécies de jurisdição, quais sejam: a possibilidade de conflito de competência entre o juiz de direito e o árbitro, o dever de revelação do árbitro comparado a suspeição do juiz e a necessidade da observância pelo juízo arbitral dos precedentes judiciais.
No que diz respeito ao primeiro assunto, tem-se por claro que a jurisdição arbitral é independente da estatal, ao passo que, caso haja convenção de arbitragem, materializada por cláusula compromissória ou compromisso arbitral, deverá essa ser respeitada.
Não por outra razão, dispõe o Código de Processo Civil que a preliminar de convenção de arbitragem deve ser alegada em contestação, sob pena de preclusão e prorrogação da jurisdição estatal, além de consignar que o juiz não poderá conhecer tal matéria de ofício.
Nota-se que o legislador privilegiou e preservou a competência da jurisdição arbitral, condicionando a sua alegação ao momento concentrado da defesa, a contestação, tendo como sanção à parte a prorrogação da competência estatal, em caso de omissão.
Entende-se, por serem ambas aceitas no ordenamento jurídico pátrio, haver a possibilidade de conflito de competência entre o juiz de direito e o árbitro.
O Superior Tribunal de Justiça, definindo a arbitragem como atividade reconhecidamente jurisdicional, afirma a sua própria competência, para eventual conflito de competência entre as jurisdições.
É o que restou decidido por aquela Corte Superior[3], consignando-se que as jurisdições estatal e arbitral não se excluem mutuamente, posto ostentarem autonomia absoluta, sendo totalmente plausível a sua coexistência harmônica.
No caso mencionado, tratava-se de conflito de competência entre juízo falimentar e juízo arbitral, em questões atinentes ao plano de soerguimento da empresa recuperanda.
Portanto, segundo a decisão alhures mencionada, e pela patente autonomia e independência entre o juiz e o árbitro, é plenamente possível que ocorra o conflito, positivo ou negativo, de competência ante as jurisdições estatal e arbitral, a ser dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça.
No que diz respeito ao segundo assunto, vislumbramos outro ponto de interseção entre a arbitragem e o judiciário, qual seja o dever de revelação e o impedimento.
Sabe-se que o impedimento do juiz consubstancia objeção de ordem pública, sendo franqueada a sua análise a qualquer tempo e grau de jurisdição, não sujeita a preclusão, a não ser que já tenha sido examinada nos autos.
Tamanha a seriedade do assunto, que decisão de mérito, proferida por juízo impedido é passível de rescisão por meio de ação rescisória.[4]
O Estado, ao retirar do cidadão a oportunidade de exercer a justiça privada, com o desforço pessoal, confiou-lhe a missão a um juiz, totalmente imparcial, como meio de materializar a justiça prestacional, afinal a imparcialidade surge como uma das mínimas garantias do devido processo legal.[5]
Ressalta-se, a mesma confiança que o jurisdicionado deve ter no juiz de direito, também deve ter no árbitro, razão pela qual há de ser estritamente observada, respectivamente, o impedimento e o dever de revelação.
Importante mencionar, o fato de que o impedimento se difere da suspeição, ao tempo que esta se dá por motivo de foro íntimo e pessoal, transitando por questões subjetivas.
Enquanto o impedimento não convalesce, a suspeição pode restar sanada e a decisão válida, caso não alegada pelas partes ou suscitada de ofício pelo magistrado.
Pois bem. Paralelamente, existe na arbitragem instituto deveras semelhante, o dever de revelação do árbitro.
A própria Lei de Arbitragem positiva que os árbitros deverão se submeter as mesmas exigências estabelecidas aos juízes de direito, ou seja, as hipóteses de suspeição e impedimento, pela sua natureza jurisdicional.
Esse fato aproxima e afirma certa semelhança entre os procedimentos, não podendo o procedimento arbitral atuar de maneira muito desconexa do jurisdicional, principalmente no que diz respeito ao julgador.
Vale ressaltar, o fato de que o procedimento arbitral possui natureza processual.
Existe interessante entendimento, no sentido de que a falha ou omissão do dever de revelação, o defeito dessa prerrogativa, atenta contra a soberania nacional, sendo matéria de ordem pública, em se tratando de procedimento de homologação de sentença estrangeira será possível a análise do mérito.[6]
O precedente acima referido, traduz interessante caso, no qual o Superior Tribunal de Justiça, adentrou no mérito de procedimento voltado a homologação de sentença arbitral estrangeira.
É cediço que tal procedimento jurisdicional não permite a análise do mérito das decisões homologadas, a não ser que trate-se de ofensa a questão ou matéria de ordem pública ou atinente a soberania nacional.
Destarte, pode-se concluir que o dever de revelação do árbitro constitui matéria de ordem pública, sendo possível a justiça brasileira adentrar ao mérito da questão para melhor deslinde da demanda.
Em síntese, como a garantia de imparcialidade do juiz ou árbitro resulta do princípio do devido processo legal, o seu descumprimento atenta contra a ordem pública nacional.
Assim, tanto o impedimento estatal como o arbitral, constituem matéria de ordem pública e materializam deveres do juiz e do árbitro, em idêntica medida, a fim de que se respeite a garantia da imparcialidade em ambas esferas jurisdicionais.
Já o terceiro e último assunto desse pequeno ensaio, diz respeito a vinculação do árbitro aos precedentes judiciais, ditos vinculantes, traduzindo-se na questão mais tormentosa do texto.
Primeiramente, importante esclarecer que os árbitros não encontram-se vinculados àqueles precedentes ditos persuasivos, ainda que proferidos pelas cortes superiores. Explico.
Sequer os juízes de direito possuem o dever de observância de precedentes persuasivos. Esses servem, muitas vezes, como uma orientação a ser seguida, mas isso traduz-se em uma faculdade do magistrado, levando em consideração a qualidade do precedente.
Em outros termos, o juiz utiliza o precedente persuasivo quando admira a fundamentação nele posta, como forma de reafirmar e fortificar a sua própria decisão.
Há, no Brasil, até mesmo controvérsia acerca da observância pelas instâncias ordinárias acerca dos precedentes obrigatórios.[7]
Diversas considerações foram sustentadas no acórdão acima referido (citação número 7), o qual aplicou entendimento diverso ao fixado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no que diz respeito à aplicação literal do Código de Processo Civil quando os honorários advocatícios revelarem valor muito elevado, dentre elas a própria dinâmica acerca da formação do precedente na sessão de julgamento, atentando-se para o placar apertado na sessão da Corte Especial.
Questão essa que traduz apenas um obter dictum do presente texto, já abordada em escrito precedente, chamando atenção para o sistema de precedentes adotado no Brasil, que, em minha opinião, jamais logrará o êxito esperado.[8]
Deve-se atentar para o verbo utilizado no caput do artigo 927, do Código de Processo Civil, no qual consta que os juízes observarão.
Mas ai surge a indagação, qual é a profundidade dessa observação? Observar significa necessariamente aplicar ou apenas observar como suporte e orientação?
Para responder a essas perguntas, seriam necessárias incontáveis linhas. Respeita-se a opinião defendida por aqueles que acreditam que os árbitros devam estrita obediência aos precedentes vinculantes e qualificados.
O árbitro, ao solver um conflito de interesses, jamais deve se descurar da realidade jurídica em que está inserido, e isso inclui a ciência do que o Poder Judiciário vem decidindo acerca de determinada matéria.
Porém, há de se deferir certa liberdade à jurisdição arbitral, posto que paralela e independente da estatal.
Importante dizer, ao Poder Judiciário só é dado intervir em casos pontuais, de nulidade da sentença arbitral, dentre os quais não encontra-se previsto a hipótese de desrespeito a precedente judicial vinculante.
O árbitro deve estrita observância a convenção de arbitragem, e, caso assim não o fosse, aquela espécie jurisdicional autônoma estaria diretamente subordinada ao que decide a jurisdição estatal.
Não se está aqui a debater acerca da possibilidade do árbitro observar e utilizar precedentes judicias em suas decisões, principalmente quando na modalidade arbitragem de direito, onde o árbitro pautará a sua atuação sob as regras do direito, mas jamais a sua observância compulsória a decisões judiciais, o que esvaziaria, sobremaneira, a escolha pelo procedimento.
Importante destacar, não se defende a existência de dois direitos convivendo em um mesmo espaço, posto que o árbitro jamais pode decidir contra o direito positivado, o que é um fato, mas não pode ser compelido a aplicação de decisões judiciais qualificadas nas suas decisões.
Desse modo, razoável concluir que o Poder Judiciário e a esfera arbitral privada detêm inúmeras semelhanças e pontos de contato, posto que concebidas e designadas para a pronta solução de conflitos no seio da sociedade, devendo servir o jurisdicionado, amparando-se sobre os mesmos princípios de direito, ao passo que a arbitragem não é dada a total ruptura e dissociação com os princípios gerais do direito, tampouco com a legislação ambiente em determinado meio jurídico.
Notas e referências
[1] Art. 3°, parágrafo 1°, do CPC
[2] Art. 1° da Lei 9.307 de 1996
[3] Conflito de competência nº 157.099 – RJ (STJ)
[4] Art. 966, inciso II, do CPC
[5] RUI PORTANOVA, Princípios do Processo Civil, 7ª ed., Livraria do Advogado, p. 79
[6] Sentença estrangeira contestada n° 9412 - US
[7] Apelação cível1.0000.22.035971-5/001 – TJMG
[8] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/precedentes-e-algumas-reflexoes-25032023
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