Poderá ser o direito um instrumento de emancipação? Urgência, fracasso, desejo e reinvenção

28/07/2016

Por Gustavo de Lima Pereira - 28/07/2016

Essa pergunta já havia sido feita por Boaventura de Sousa Santos nos idos do anos 90. Passados tantos anos, a pergunta segue urgente e atual. Poderá ser o direito (não digo apenas o direito dos bancos acadêmicos, mas o direito também exercido pelos "profissionais do direito" - advogados, juízes, promotores etc.) um espaço de construção de emancipação e crítica social? Um espaço de construção de um horizonte de crítica a todo o sistema que o circunscreve? Poderá o direito oferecer ferramentas para que acadêmicos e profissionais também se tornem "pensadores do direito"?

Uso a expressão "pensadores do direito" por uma total relutância em relação a expressão "operadores do direito". O intuito dessa relutância é simples: um operador não pensa. Não queremos que um médico pense quando opera um de nossos familiares. Queremos que ele apenas aplique regras. Aplique todo o seu conhecimento técnico que aprendeu nas aulas de medicina e não o questione no momento da aplicação de sua técnica. Mas, o direito não lida com regras da mesma forma que lida a medicina, pois as regras jurídicas estão envoltas em outras dinâmicas sociais, já que, no âmbito do direito, até a aplicação de regras implica em um compromisso sistemático com a democracia (e vivemos atualmente no Brasil um momento onde se é assustadoramente reivindicado que se esquartejem regras constitucionais em nome do decisionismo, como diria Lênio Streck).

A analogia acima referida nos retoma a pergunta que toma de assalto esse breve escrito - pergunta essa que já demonstra todo o nosso fracasso. Pois ainda ser preciso perguntarmo-nos se o direito pode ser um espaço de emancipação já demonstra que fracassamos. Ninguém se pergunta se "o direito pode se tornar o espaço da técnica" porque essa pergunta é absurda, tamanha obviedade da resposta: é claro que o nosso modelo de pensar o direito é totalmente destinado ao espaço da técnica. Logo, seguirmos perguntando se o direito pode ser um instrumento emancipatório nos faz, irremediavelmente, recairmos em uma profunda sensação de constrangimento. O constrangimento de um fracasso.

Hoje em dia, muitos (inclusive setores que ocupam o poder de deliberar a respeito do papel do direito) desmerecem e, em alguma medida, entendem como obsoleto perguntarmo-nos seriamente "se o direito pode ser um instrumento de emancipação". Para esses muitos, o direito, como é pensado hoje em dia, o é dessa forma exatamente por expressar o resultado da evolução natural de sua relação com o mundo. É, por exemplo, um mero "sinal dos tempos" o pequeno espaço e prestígio destinado para disciplinas como Hermenêutica, Filosofia do Direito, Sociologia do Direito e, até mesmo, Direitos Humanos dentre algumas outras sob o argumento de que estas desviam em demasia o acadêmico do "direito de verdade". Aquele direito que realmente cai na OAB, nos concursos ou que os fará angariar clientes voluptuosos em seu futuro como advogados (e não estou dizendo que devemos abandonar a formação técnica, afirmo isso para prevenir mal-entendidos).

As disciplinas consideradas dogmáticas também não podem arredar o passo daquele direito estritamente instituído pelos códigos. Um professor de Processo Penal que destina tempo a discutir sobre o sistema carcerário ou um professor de Direito do Trabalho que debata o tema na escravidão no Brasil só poderão fazê-lo de forma muito sintética e superficial, para logo em seguida retomar ao modelo de ensino esquematizante em que nos habituamos a conviver. E o que dizer do necessário viés da interdisciplinaridade, tão defendido pelo MEC (apenas no papel, diga-se de passagem), carente inclusive na maioria dos cenários de pós-graduação, mestrado e doutorado, tornando a pesquisa, no âmbito do direito, ainda completamente embrionária: em geral uma colcha de retalhos técnico-legislativa, temperada por um jurisprudencialismo que tende a analisar o direito de forma isolada.

Em virtude desse "sintoma", muito bem definido por Alexandre Morais da Rosa como o fenômeno da "oabetização" do ensino do direito, não é de se estranhar que vivamos uma geração de "carregadores de códigos", como bem proferiu Deisy Ventura certa feita. Não é de se estranhar o fato de os acadêmicos e profissionais do direito em geral acharem que temas como a ditadura militar, a demarcação de terras indígenas, o papel da política, o papel da mídia, a atuação da polícia, a retomada da xenofobia nos grandes centros; e tantos outros não serem temas que dizem respeito ao jurista. Não dizem respeito porque todos os referidos temas, em grande medida, guardam relação com o tema da justiça, e o tema da justiça, pasmem aqueles não são da área jurídica, não é um tema lá muito bem vindo nos bancos acadêmicos da imensa média das faculdades de direito (em nível não apenas nacional).

Nesse momento de desencanto, talvez seja o momento de produzirmos novos afetos. O momento reivindica uma nova produção e administração de afetos em relação ao direito. Ouso dizer, fazendo uma propositura que tem a psicanálise como interface, que é preciso redefinir a produção de afetos que devem acompanhar a formação do profissional do direito. Em outras palavras: devemos modificar a forma de como desejamos o direito.

Para Vladimir Safatle, nosso mundo de hoje perdeu a capacidade de produzir afetos. Ou seja, nós perdemos a capacidade (se é que um dia a tivemos) de realmente produzir um espaço de emancipação crítica, não apenas no âmbito do estudo do direito, mas também em nossa relação com a existência em geral. Não questionamos nada ou muito pouco desse sentido de mundo que nos fora previamente dado. E o sentido de mundo que nos é ofertado (ou talvez imposto) é definido pelo modelo contratual/ empresarial de se relacionar com o mundo. Esse modelo, dinamizado pela produção de resultados imediatos e totalmente relacionado com a capacidade de consumo, transformou nossa sociedade em um uma sociedade carente de sonhos. Uma sociedade que foi ordenhada para não sonhar ou sonhar baixo (não é de se estranhar o fato de que, em média, 7 em cada 10 estudantes de direito afirmem que estudam direito para passar em qualquer concurso público). Mais que isso: uma sociedade que trocou de linguagem, dado a tamanha contaminação com a dinâmica empresarial (dinâmica essa que, em grande medida, é plenamente verificável na imensa média dos juristas). Não falamos mais em sonhos e sim objetivos. Não temos mais desejos, e sim metas. Não é de se espantar também que, como afirma Safatle, estamos em um momento onde vivemos um ideal empresarial de nós mesmos, onde nossas qualidades se tornam uma espécie de "capital humano". No nosso modelo empresarialista de desejar - o empreendedorismo como "significante-mestre" - somos "empresários de nós mesmos" e esperamos um retorno, a partir de um cálculo entre custos e benefícios, inclusive nas relações humanas. (Em nada estranha, como percebeu Safatle, o sucesso de vendas de uma revista intitulada como "Você S.A.", consagrando-nos definitivamente como "homens-empresa").

Frente a esse diagnóstico, a pergunta que aqui nos move seguirá carregada por essa dupla face ainda por um bom tempo: será uma pergunta urgente e ao mesmo tempo uma pergunta que demonstra todo o nosso fracasso. Mas é papel daqueles que se inquietam com esse diagnóstico seguir sofisticando perguntas incomodativas ao invés de oferecer respostas conciliadoras.

A forma conservadora de se pensar (ou de se desejar) o direito preserva que seu modus operandi permaneça como está, contribuindo para que o status do poder siga seu fluxo em paz. No entanto, construir espaços de luta contra-hegemônicos reivindica reinventarmos o direito.  É claro que endereçar-se a essa empreitada de reinvenção do direito se assemelha a adentrar a um mar violento e se pôr a nadar no sentido de uma tortuosa contracorrente (nadando contra a corrente só pra exercitar, como diria Cazuza). E sabemos que aquele que nada contracorrente precisa de muito mais força para não ser levado pela correnteza (que atua como moduladora de mentes). Mas qual é a recompensa daquele que se habitua a nadar contra a corrente durante essa trajetória de reinvenção? Ele se torna, inevitavelmente, mais forte!


Gustavo de Lima Pereira. Gustavo de Lima Pereira é Doutor em Filosofia pela PUCRS. Mestre em Direito pela UNISINOS. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Professor de Direito Internacional, Hermenêutica e Filosofia do Direito na PUCRS. Professor de Direitos Humanos em diversos Cursos de Especialização. Advogado do Grupo de Assessoria e imigrantes e a refugiados da UFRGS..


Imagem Ilustrativa do Post: Levitation // Foto de: Vitaly Vlasov // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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