Pode a autoridade policial acessar os dados do celular do indivíduo sem autorização judicial?

24/01/2017

Por Rafael de Deus Garcia - 24/01/2017

Policiais militares de todo o Brasil têm se deparado com a possibilidade de acessar dados pessoais nos celulares de abordados ou de presos em flagrante.

No contexto das Polícia Civil e Federal, em regra, a posse do celular decorre de cumprimento de uma busca e apreensão autorizada judicialmente ou após a apreensão dos bens do preso em flagrante já em sede de delegacia. Ainda que algumas autoridades tenham tido maior cautela, requerendo a autorização judicial para periciar o celular, é também comum o envio direto à perícia técnica sem a autorização judicial.

De fato, ainda não há uma orientação geral, tampouco uma jurisprudência consolidada, acerca da licitude ou não do acesso a dados pessoais em celulares, tanto em relação ao policial na rua quanto ao em delegacia.

Este artigo chega à conclusão de que o acesso policial ao celular, por ser receptáculo de dados pessoais que permitem uma construção narrativa extensa e detalhada sobre a vida privada do indivíduo, é efetiva violação da privacidade e da intimidade (CF/88, art. 5º, X), devendo ser considera objeto de tutela judicial.

Ainda assim, é defensável que haja a exceção para casos em que há fundada suspeita - a ser justificada posteriormente - de que a busca por autorização judicial signifique risco de perecimento da efetiva proteção ao bem jurídico tutelado, como em casos de violência iminente a terceiro, como sequestro ou violência doméstica, por exemplo.

No entanto, parece razoável a tese de que, quando não há prejuízo algum para a investigação criminal, o acesso aos dados no celular apreendido só seja lícita quando autorizada judicialmente. Assim, garante-se não só o devido processo legal sem nulidades como também, e principalmente, a devida proteção a direitos fundamentais. 

Dados pessoais no celular como objeto de tutela judicial

Em síntese, dados pessoais são todas as informações codificadas de determinada pessoa. O tratamento desses dados gera uma informação pessoal (ZANON, 2013, p. 164)[1].

Nesse sentido, são dados pessoais: endereço, CEP, número de telefone e celular, profissão, data de nascimento, números indicadores da documentação em geral (certidão de nascimento, certidão de casamento, CPF, RG, título de eleitor, certificado de reservista, passaporte, carteira de trabalho, Pis/Pasep/NIT etc), nome de familiares, cidade natal, número do cartão de crédito, dados bancários, agenda telefônica, contatos de e-mails, registro da quantia salarial, registro de mensagens de texto privadas, e-mails, fotografias e vídeos, endereço de Internet Protocol (IP) etc.

O celular, por sua vez, é uma tecnologia capaz de guardar enorme quantidade de dados pessoais. A título de exemplo do que pode conter em um aparelho, especialmente nos smartphones: álbum de fotos, música e vídeos pessoais, mensagens trocadas por e-mails e mídias sociais, comprovantes de transações financeiras, aplicativo de bancos que permitem o acesso aos dados e transações bancários, registro de chamadas, agenda telefônica, agenda pessoal digital, bloco de notas, localizador GPS com histórico, pastas de documentos compartilhadas (dropbox ou Google Drive), histórico de navegação na internet, registro de gravações pessoais e até de conversas, etc.

Não há dúvida de que o acesso a dados pessoais é capaz de gerar uma narrativa extensa e perigosa acerca de um indivíduo. Não é à toa que há espécies de extorsões baseadas exclusivamente na posse de material íntimo, como no famoso caso da atriz Carolina Dieckmann.

Assim, na medida em que a intimidade está relacionada à personalidade do indivíduo, na sua capacidade de livremente desenvolver seu senso crítico e de autodeterminação, o celular não pode, sem qualquer sombra de dúvidas, ser divorciado do princípio da intimidade. É justamente a possibilidade de, a partir do tratamento de dados pessoais, gerar informação sobre uma pessoa que evidencia a conexão entre celular e intimidade.

O conteúdo de um celular revela não só informações íntimas de seu possuidor, mas também de terceiros. Além disso, o celular não deve ser compreendido como mero receptáculo de dados pessoais, mas também como uma tecnologia que efetivamente altera as formas de ser na sociedade, relacionando-se de maneira próxima com a personalidade, esta devendo ser compreendida como objeto de proteção da intimidade.

Como indica a pesquisadora Nicolaci-da-Costa, o celular acaba significando um sensível aumento de intimidade nas relações pessoais (NICOLACI-DA-COSTA, 2004, p. 170)[2]. De fato, é o celular o meio mais usado de comunicação entre pessoas íntimas. Uma vez que o aparelho celular é utilizado como meio de comunicações com pessoas próximas, potencializando a intimidade, ele passa a ter importância singular na vida pessoal. O celular não somente altera como nos relacionamos, mas um de principais efeitos é a sensação do aumento da liberdade e da autonomia de ação dos jovens (NICOLACI-DA-COSTA, 2004, p. 174).

Desse modo, sua devassidão é necessariamente acompanhada de uma intromissão nas relações íntimas da pessoa. Uma vez reconhecida a enorme capacidade de armazenamento de dados de cunho íntimo no celular, divorciá-lo da tutela judicial do princípio da privacidade é não compreender sua força normativa. Na sequência, aprofundaremos a questão, analisando decisões paradigmáticas acerca do tema. 

O acesso de policias a celulares em decisões judiciais paradigmáticas

No HC 91.867/PA, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes do STF, há o seguinte relato. A autoridade policial, já com o suspeito sub sua guarda, pegou seu celular e avistou sua lista telefônica. Com base nas informações contidas nessa lista, abriu-se procedimento para interceptação telefônica. Um dos contatos interceptados era de seu advogado.

Fazendo alusão à diferença entre dados em si e a comunicação de dados, como indicada por Tércio Sampaio Ferraz Jr., indaga o ministro:

Ad argumentadum, abstraindo-se do meio material em que o dado estava registrado (aparelho celular), indago: e se o número estivesse em um pedaço de papel no bolso da camisa usada pelo réu no dia do crime, seria ilícito o acesso pela autoridade policial? E se o número estivesse anotado nas antigas agendas de papel ou em um caderno que estava junto com o réu no momento da prisão?

A referida decisão é eventualmente (v. MEURER, 2016)[3] utilizada como precedente para que policiais possam acessar dados em celulares. Ao tempo da decisão, avaliou o ministro se o acesso à lista de telefones violaria a intimidade, vindo a concluir que não.

O uso do precedente como uma permissão para o acesso a outros dados pessoais no celular é equivocado, pois ultrapassa os limites da decisão. Além disso, o uso do precedente decorre de uma má interpretação, uma vez que, no caso, o ministro fez a pergunta se o acesso à lista telefônica seria uma violação da intimidade. Por concluir que não, houve a manutenção da licitude da medida policial.

Aplicando-se devidamente o precedente, parece mais adequado fazer-se o questionamento, caso a caso, se o acesso a determinado dado pessoal no celular estaria ou não violando a intimidade, para então concluir se seria caso de ilicitude da medida.

Ainda assim, a decisão é problemática. Por mais que a informação colhida não corresponda a uma informação de cunho íntimo, o que importa é a necessidade de se devassar um utensílio que carrega consigo um número enorme de informações privadas.

Na mesma lógica argumentativa do magistrado, indaga-se: se aquele dado pessoal, a lista telefônica, estivesse dentro de sua casa, poderia o policial violar o domicílio a fim de obtê-lo, ainda que para obter somente a lista? A proteção ao domicílio indica claramente que não se protege somente o bem ou o dado em si, mas também o meio onde ele está registrado ou guardado.

Mais coerente com o contexto tecnológico atual se deu a decisão no RHC/RO 51531, de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, do STJ, que declarou ilícita prova produzida em decorrência de acesso a dados no celular sem autorização judicial. Em voto, conclui o ministro:

Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional.

Deste modo, ilícita é tanto a devassa de dados, como das conversas de whatsapp obtidos de celular apreendido, porquanto realizada sem ordem judicial.

Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso ordinário em habeas corpus, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos.

No mesmo sentido, nos Estados Unidos da América, paradigmática foi a decisão no caso Riley v. California, 573 U.S. (2014). Sobre a utilização de informações obtidas sem mandado judicial em celular, a Corte Suprema entendeu, unanimemente, que a busca de conteúdo de celular sem mandado judicial é uma clara violação da Quarta Emenda à Constituição americana, devendo ser considerada ilícita.

A argumentação da Corte se deu no sentido de que, além de o celular não representar nenhum risco para os policiais que efetuam uma prisão, os celulares, hoje em dia, não podem ser considerados como mera conveniência tecnológica. O fato de um indivíduo poder carregar tanta informação pessoal em sua mão não faz dessa informação menos digna da proteção constitucional (Riley v. California, 573 U.S. 28).

A decisão de Riley apontou para uma mudança de concepção acerca do controle da Quarta Emenda na era digital, tirando o domicílio de seu cerne (BUTLER; ROTENBERG, 2014). "De fato, a busca em um celular pode expor ao governo muitas informações e em muito mais detalhes que a busca em uma casa" (573 U. S. p. 20 e 21, 2014).

A respeito da capacidade de armazenamento do aparelho celular, bem como para se refutar a argumentação no voto do ministro Gilmar Mendes acima transcrita, é válida a leitura do seguinte trecho, traduzido livremente:

A capacidade de armazenamento de telefones celulares tem várias conseqüências interrelacionadas com a privacidade. Primeiramente, um telefone celular reúne em um lugar muitos tipos distintos de informações - um endereço, uma nota, uma receita, um extrato bancário, um vídeo - que revelam muito mais em combinação do que qualquer registro isolado. Em segundo lugar, o telefone celular tem a capacidade de permitir que um tipo de informação transmita muito mais do que anteriormente era possível. A soma da vida privada de um indivíduo pode ser reconstruída através de mil fotografias marcadas com datas, localizações e descrições; O mesmo não pode ser dito de uma fotografia ou duas de entes queridos postas em uma carteira. Em terceiro lugar, os dados em um telefone podem datar desde a compra do telefone, ou até mesmo mais cedo. Uma pessoa poderia carregar no bolso um pedaço de papel que o lembrasse de chamar o Sr. Jones; Ele não levaria um registro de todas as suas comunicações com o Sr. Jones para os últimos meses, como rotineiramente se mantém em um telefone.

A utilização da decisão não tem a intenção de importar a lógica de funcionamento do direito estadunidense, mas ela mostra a força e a autoridade do argumento, que usualmente é ignorada no Brasil, ou substituída por uma pobre questão técnica, como a falta de cláusula de reserva de jurisdição.

A ausência de cláusula de reserva de jurisdição na CF/88 não é lacuna permissiva para a autoridade policial

Parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que a CF/88, no artigo 5º, inciso XII, por dar reserva de jurisdição para a quebra de sigilo das comunicações telefônicas, não mencionando especificamente o acesso a dados pessoais por parte das autoridades de investigação, permitiria que esse acesso fosse realizado sem a necessidade de autorização judicial.

Logo, a quebra do sigilo dos dados telefônicos contendo os dias, os horários, a duração e os números das linhas chamadas e recebidas, não se submete à disciplina das interceptações telefônicas regidas pela lei 9.296/96. Em outras palavras, a proteção a que se refere o art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal, é da comunicação de dados, e não dos dados em si mesmos.

Portanto, diversamente da interceptação telefônica, a quebra do sigilo de dados telefônicos não está submetida à clausula de reserva de jurisdição. Logo, além da autoridade judiciária competente, Comissões Parlamentares de Inquérito também podem determinar a quebra do sigilo de dados telefônicos com base em seus poderes de investigação (CF, art. 28, §3º), desde que o ato deliberativo esteja devidamente fundamentado.[4]

Partindo de uma confusão básica sobre a diferença de regras e princípios, a busca pela cláusula de reserva expressa no texto constitucional transforma o inciso X da CF/88, do qual é primário em relação ao XII, em letra morta. Eventuais lacunas no texto constitucional não necessariamente exarem tom permissivo a práticas estatais que atingem os direitos fundamentais.

Do texto constitucional (art. 5º XII), abrindo o constituinte originário exceção apenas para a quebra do sigilo das comunicações, infere-se que foi conferida mais importância às comunicações de dados que às telefônicas. Além disso, é importante que se perceba que, no atual contexto tecnológico, praticamente não há dados sem imediato registro, principalmente no uso cotidiano do celular. Em outras palavras, as comunicações de dados precedem, quase sempre, de seu imediato registro, o que não os tornam menos importantes do ponto de vista da intimidade.

Obviamente, não se defende aqui que a Constituição vedou o acesso a dados pessoais. No entanto, é necessário que haja uma contextualização adequada acerca do sentido e da proteção conferida na Constituição.

Não há dúvida de que o constituinte conferiu proteção especial às comunicações telefônicas por reconhecer nelas uma dimensão importante da intimidade. Disso decorre o seguinte raciocínio: se é devida a proteção legal à quebra das comunicações telefônicas por representar violação à intimidade, também é devida a proteção àquelas medidas que, no mesmo sentido, ainda que em outros objetos de tutela, violam a intimidade das pessoas.

Não se interpreta a Constituição buscando no constituinte a previsão futurística. Ao contrário, busca-se os porquês da destinação de cada proteção conferida, para então adequar a prática jurídica e policial à CF/88.

Ainda que não se enxergue a cláusula de reserva na Constituição, ela já existe na legislação brasileira, pelo menos para as comunicações privadas armazenadas.

A Lei nº 12.965/14, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, menciona expressamente a necessidade de proteção dos dados pessoais produzidos pelo uso da internet, que obviamente incluem aqueles registrados em celular.

Sobre a lei, especificamente, notória é a previsão de inviolabilidade e sigilo das comunicações privadas armazenadas, podendo ser quebrado apenas por ordem judicial.

Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

......................................

III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;

Ora, se esse dispositivo, por si só, não pode ser considerado como uma cláusula de reserva de jurisdição, deve, minimamente, pesar para a conclusão sobre a necessidade de autorização judicial para a quebra de sigilo de dados telefônicos, ainda que somente para as "comunicações privadas armazenadas" no celular.

Não é difícil sustentar que o acesso a dados pessoais em um celular pode representar até mesmo mais acesso a informações pessoais que o acesso às comunicações telefônicas. Até mesmo porque cada vez mais as comunicações telefônicas são realizadas por aplicativos de celulares que geram dados, tornando menos usual as ligações telefônicas pessoais em detrimento de outros tipos de comunicações interpessoais.

Significando, portanto, maior possibilidade de violação da intimidade o acesso a dados pessoais no celular do que as próprias interceptações telefônicas, torna-se absolutamente equivocada a busca por uma cláusula de reserva de jurisdição específica para acesso a dados pessoais. A conclusão desse raciocínio é um verdadeiro esvaziamento de sentido do inciso X do art. 5º, que parte de um pensamento que não é capaz de contextualizar o aparelho celular como objeto de tutela do princípio constitucional da intimidade. 

Da exceção por periculum in mora da medida

Pode-se argumentar que a garantia das investigações seria o fundamento autorizador para acesso aos dados telefônicos registrados. Do mesmo lado, também está presente o argumento de que a segurança pública é direito fundamental, sem contar o sempre presente óbvio argumento, retórico e vazio, de que nenhum direito é absoluto.

Outro argumento pobre, bastante comum, é o de que caberia à autoridade policial garantir o sigilo dos dados colhidos. Ora, eventual defensor desse argumento só pode partir de uma compreensão autoritária de Estado, ignorando a faceta histórica do princípio da privacidade. Afinal, trata-se de direito que garante prioritariamente a reserva da vida individual contra eventuais intervenções do próprio Estado.

Assim, deve ser rechaçada qualquer argumentação genérica que vem a colocar no mesmo balaio situações absolutamente distintas, e que venham a colocar os direitos fundamentais em risco.

Em situações cotidianas do policiamento ostensivo, é plenamente possível que a simples apreensão do aparelho celular, no momento da prisão em flagrante, para posterior perícia, seja mais do que suficiente como medida a se garantir o bom desenvolvimento das investigações. Basta, então, que a autoridade policial consiga convencer o juízo de que a abertura dos dados pessoais no celular é necessária para a investigação.

Afinal, deve-se sempre prezar pela consonância e harmonia entre direitos fundamentais e as atividades de segurança pública. Até mesmo porque só há efetiva segurança pública se o próprio Estado, mesmo na figura do policial, é visto como garantidor desses direitos fundamentais.

Evidentemente, se a autorização judicial a ser buscada para quebra do sigilo telefônico significar fundamentado risco de perecimento de direito, é plenamente aceitável que tal medida policial seja validada. No entanto,  não podemos transformar exceção em regra. E, assim como o juiz deve fundamentar a decisão de quebra de sigilo, a autoridade pública não tem qualquer direito de não o fazê-lo, ainda que posteriormente.

É o argumenta a ministra do STJ Maria Theresa de Assis Moura no voto-vista no já citado RHC/RO 51.531:

Não descarto, de forma absoluta, que, a depender do caso concreto, caso a demora na obtenção de um mandado judicial pudesse trazer prejuízos concretos à investigação ou especialmente à vítima do delito, mostre-se possível admitir a validade da prova colhida através do acesso imediato aos dados do aparelho celular. Imagine-se, por exemplo, um caso de extorsão mediante sequestro, em que a polícia encontre aparelhos celulares em um cativeiro recém-abandonado: o acesso incontinenti aos dados ali mantidos pode ser decisivo para a libertação do sequestrado. Não se encontra no caso dos autos, entretanto, nenhum argumento que pudesse justificar a urgência, em caráter excepcional, no acesso imediato das autoridades policiais aos dados armazenados no aparelho celular. Pelo contrário, o que transparece é que não haveria prejuízo nenhum às investigações se o aparelho celular fosse imediatamente apreendido – medida perfeitamente válida, nos termos dos incisos II e III do artigo 6º do CPP – e, apenas posteriormente, em deferência ao direito fundamental à intimidade do investigado, fosse requerida judicialmente a quebra do sigilo dos dados nele armazenados (p. 06 e 07 - grifei).

Assim, não é possível que se faça uma análise prévia de quando essas situações ocorreriam. Da mesma forma, é inadmissível que argumentações genéricas ensejem, em qualquer situação, que policiais possam ou não acessar dados em celular. Porém, como em qualquer ato administrativo e jurídico, principalmente na égide do direito penal, as garantias individuais devem ser observadas com prioridade, devendo este zelo ser regra sobre eventuais e justificadas exceções.

Considerações Finais

Para concluir, importante ressaltar como abusiva a conduta de o policial ludibriar o abordado ou o preso a desbloquear o acesso do celular. Além de violar o princípio da não autoincriminação, viola a presunção de inocência, que se estende até mesmo para eventuais suspeitos abordados.

Tal prática, infelizmente corriqueira, abusa da ignorância da população, que se vê coagida ilegalmente a provar sua inocência e sua boa conduta ao policial que conduz a abordagem. Ninguém tem ou deve ter a obrigação de desbloquear o celular para que o policial possa "checar" a inocência do abordado.

Vindo a encontrar qualquer indício de cometimento de crimes, por decorrência dessa conduta ilegal da autoridade policial, não há outra solução a não ser a declaração de nulidade de eventual persecução criminal, por se tratar, evidentemente, de prova ilícita. Obviamente, o consentimento consciente, não viciado, autoriza o acesso, muito embora seja difícil vislumbrar a real existência dessas confissões "espontâneas".

No mais, reitera-se o que foi aqui defendido.

A não ser por exceção devidamente fundamentada de que há risco iminente a direito o não acesso imediato ao acesso aos dados no celular, a autoridade policial, do PM ao delegado, não está autorizado a acessar ou periciar o conteúdo dos aparelhos celulares.

A capacidade de armazenamento de material íntimo nos aparelhos celulares talvez desbanque até mesmo o domicílio como a elemento central na interpretação do princípio da privacidade.

O celular não somente registra quase todas as informações e comunicações de um indivíduo, como também a de terceiros próximos a ele. Tirá-lo da proteção do princípio constitucional da privacidade e da intimidade é verdadeira tentativa de aproximação a um Estado mais autoritário e arbitrário.

Na grande maioria dos casos, a simples apreensão do aparelho, para perícia posterior devidamente autorizada judicialmente, não apresenta qualquer risco à investigação criminal, e ainda garante a tutela adequada à vida privada das pessoas.

A falta de uma cláusula de reserva de jurisdição específica não pode reduzir a força normativa do princípio da privacidade, tão caro às democracias.


Notas e Referências:

[1] ZANON, João Carlos. Direito à proteção dos dados pessoais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013.

[2] NICOLACI-DA-COSTA, Ana Maria. Impactos Psicológicos do Uso de Celulares: Uma Pesquisa Exploratória com Jovens Brasileiros. Psicologia. Teoria e Pesquisa, UnB. Vol. 20, nº 02, Maio-Ago. 2004. p. 165-174.

[3] MEURER, Alexandre. 2016. Da desnecessidade de ordem judicial para quebra de sigilo de dados telefônicos pela autoridade policial. Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/da-desnecessidade-de-ordem-judicial-para-quebra-de-sigilo-de-dados-telefonicos-pela-autoridade-policial-por-alexander-meurer/>. Acessado em 11/12/2016.

[4] (LIMA, Renato Brasileiro de. 2016. Legislação Penal Especial Comentada. 2. ed. Salvador/BA: JusPodivm. p. 147)


Rafael Garcia. . Rafael de Deus Garcia é Professor de Direito Penal e Processo Penal na UFLA. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: Periodista // Foto de: Esther Vargas // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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