Pena de morte e erros judiciais: dois casos emblemáticos

10/10/2016

Por Vitor Vilela Guglinski – 10/10/2016

Nesses tempos em que a mídia vem exercendo forte influência sobre a opinião pública, em razão de crimes brutais dos quais resultam a morte de alguém, a temática da pena de morte segue viva na voz da população. Há algum tempo o brasileiro acorda, almoça, janta e vai dormir ouvindo de diversos apresentadores de telejornais que homicidas, estupradores, sequestradores, traficantes etc. merecem pena de morte, e não é exagero nenhum afirmar que a população se deixa influenciar por esse tipo de "jornalismo".

Seria a pena de morte a solução milagrosa para os males sociais? Extirpar seres humanos, ao argumento de que não se ajustam ao modelo social é ato válido, necessário, salutar?

A título de exemplo, trago nesta oportunidade dois casos emblemáticos que revelam o quão assustadora pode ser a ideia da pena de morte, ante os erros aos quais qualquer processo judicial está sujeito, por maiores que sejam as cautelas adotadas em sua condução.

Um dos mais recentes casos emblemáticos envolvendo a (equivocada) aplicação da pena capital ocorreu no dia 21 de setembro de 2011. Naquele dia, às 23h08min, no horário de Nova Iorque (0h08min do dia seguinte no horário de Brasília), um indivíduo negro chamado Troy Davis foi executado nos EUA, através de injeção letal, por um crime em que sua autoria não restou cabalmente provada durante todo o processo judicial em que foi proferida sua sentença de morte.

Troy Davis foi acusado, processado, julgado e considerado culpado, por ter, supostamente, matado o policial Mark McPhail, em 1989, no momento em que este ajudava um sem-teto que estava sendo atacado.

Ao longo dos anos em que Troy Davis permaneceu preso, aguardando sua execução, sua defesa demonstrou que a arma utilizada no crime jamais foi encontrada. Somado a isso, as notícias dão conta de que, das nove testemunhas que ajudaram a condená-lo, sete se retrataram de seus depoimentos, afirmando que na época em que os prestaram à Justiça foram persuadidas por policiais a testemunharem contra o réu, provavelmente em razão da pressão corporativista da Polícia e do desejo irracional de se encontrar um culpado, em nome da tão proclamada segurança jurídica que, ao que parece, deve ser absoluta e inabalável em solo americano.

A defesa de Davis asseverou, ainda, que nenhuma evidência forense ou de DNA foi encontrada durante as investigações. Uma testemunha chegou a afirmar que o verdadeiro assassino, de nome Sylvester Coles, confessou o crime durante uma festa em que teria exagerado no consumo de bebida alcoólica, revelando a informação. Somado a isso, outras dez testemunhas, que jamais foram ouvidas no processo, disseram que outro homem admitiu ter atirado na vítima.

Nada obstante, ainda que Troy Davis estivesse protegido pelo manto da presunção de inocência, bem como pelo benefício da dúvida (in dubio pro reo), ante a ausência de provas conclusivas que o condenassem, ante as inúmeras manifestações a seu favor ao redor do mundo - manifestações de peso, destaque-se, como a do Bispo Desmond Tutu, do ex-presidente norte-americano Jimmy Carter, do Papa Bento XVI, da Anistia Internacional - e de cidadãos de todas as etnias, solidários a Davis, ainda assim sua execução foi levada a efeito.

O segundo caso a que me refiro diz respeito a Caryl Whittier Chessman, conhecido como "bandido da luz vermelha", condenado à câmara de gás, nos EUA, em razão de diversos assassinatos envolvendo casais, no final da década de 1940.

O caso Chessman foi marcado por um erro fatal.

No exato instante em que se encontrava na câmara de gás, os advogados de Chessman, George Davis e Rosalie Asher se reuniam com Louis Goodman - presidente do Tribunal Federal de San Francisco. Os advogados de Chessman somente localizaram o juiz Goodman no último momento que souberam da negativa do Supremo Tribunal da Califórnia em relação a um recurso por eles interposto. O juiz Goodman ouviu as razões e as queixas de George Davis, que se expressava febrilmente, mas com precisão, demonstrando ao magistrado que seu cliente não se beneficiara de todos os seus direitos perante os tribunais da Califórnia.

Naquele momento, às 10h01min do dia 02 de maio de 1960, o juiz Goodman, após refletir sobre os argumentos dos advogados de Chessman, assentiu com os mesmos, afirmando que o respectivo recurso poderia ter sido recebido, mas que necessitava de maiores explicações, pelo que ordenou fosse atrasada a execução por meia hora.

O que se sucedeu foi uma cadeia de ocorrências funestas, que redundaram na morte de Chessman, que teve início com a ordem recebida por Celeste Hickey – secretária do juiz Goodman, a qual fora incumbida de chamar, urgentemente, a penitenciária de San Quentim. O erro fatal ocorre no momento em que referida secretária, não sabedora do número telefônico daquele estabelecimento prisional, corre a perguntá-lo ao escrivão. Ao anotar o número em seu bloco, comete um erro, esquecendo-se de anotar um dos algarismos. Foi tempo suficiente para que o juiz Goodman, ao finalmente conseguir falar com a penitenciária, ficasse sabendo que a execução já estava em curso. Às 10h05 min Chessman foi declarado legalmente morto.

O caso Chessman, a exemplo do que ocorreu no caso de Troy Davis, repercutiu mundialmente, tendo as principais manifestações a seu favor ocorrido nos EUA e na Europa. Foi, também, um caso marcado por provas inconclusivas, além de outros vícios procedimentais, como: (i) o encarregado do inquérito não quis se utilizar do detector de mentiras; (ii) sua confissão perante a polícia foi obtida mediante tortura e (iii) as notas taquigráficas de seu interrogatório foram deturpadas pelo serventuário que substituiu o antecessor, que havia falecido.

O que se quer dizer é que não há, em pleno século XXI, e mesmo após termos notícias de diversas condenações duvidosas à pena capital, como compreender e admitir a manutenção da pena de morte, seja em que lugar e sob qual regime jurídico for.

Inobstante, como dito, há vozes em nossa sociedade que clamam seja a pena capital institucionalizada em nosso sistema jurídico, mesmo havendo expressa proibição dessa espécie de pena na Constituição de República (art. 5º, XLVII, a), bem como proibição de deliberação legislativa sobre a matéria (art. 60, § 4º). A mídia sabe bem disso; os grandes conglomerados da comunicação sabem muito bem disso, pois dispõem de corpos jurídicos extremamente competentes, de alto nível, e com plena capacidade de informar a impossibilidade de se adotar a pena de morte em nosso sistema jurídico. Inobstante, insistem em despertar na população a sede de ver seu semelhante aniquilado pelo Estado.

Lydio Machado Bandeira de Mello, citado por Kildare Gonçalves Carvalho, afirmou há algumas décadas, com precisão cirúrgica, que:

"O Direito Penal é um direito essencialmente mutável e relativo. Logo, deve ficar fora de seu alcance a imposição de penas de caráter imutável e absoluto, de total irreversibilidade e irremediáveis quando se descobre que foram impostas pela perseguição, pelo capricho ou pelo erro. Deve ficar de fora de seu alcance a pena que só um juiz onisciente, incorruptível, absolutamente igual seria competente para aplicar: a pena cuja imposição só deveria estar na alçada do ser absoluto, se ele estatuísse e impusesse penas: a pena absoluta, a pena de morte. Aos seres relativos e falíveis só compete aplicar penas relativas e modificáveis. E, ainda assim, enquanto não soubermos substituir as penas por medidas mais humanas e eficazes de defesa social (LYDIO MACHADO BANDEIRA DE MELLO. O criminoso, o crime e a pena, 1970, p. 335," apud " KILDARE GONÇALVES CARVALHO. Direito Constitucional, 15ª ed. P. 748).

É o argumento que basta.


Vitor Vilela Guglinski. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .


Imagem Ilustrativa do Post: Alcatraz Cells // Foto de: William Warby // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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