Parto sem algemas: o óbvio ululante!

03/10/2016

Por Soraia da Rosa Mendes – 03/10/2016

No último dia 27 de setembro foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto 8858, de 26 de setembro de 2016 que, disciplinando o artigo 199 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84)[1], regulamentou o uso de algemas no âmbito do sistema carcerário brasileiro, sem que, contudo, tenha previsto punições para o descumprimento das regras que impõe.

De antemão é de ver-se que, embora o enunciado da Súmula Vinculante n. 11 determine que do uso indevido de algemas, além de consequências processuais, decorrerá a responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade responsável por sua utilização, teria sido prudente que o decreto tivesse também como objeto explícito este aspecto. O uso de algemas como regra é um dos expedientes de uma cultura autoritária arraigada que certamente buscará valer-se de todo o tipo de resistência. E o decreto deixou abertas margens interpretativas desnecessárias.

Enfim, nos termos da norma, o emprego de algemas toma como diretrizes a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) e a proibição de que qualquer pessoa seja submetida à tortura, a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III, da CF/88). E tem como base normativa, além da Constituição de 1988, a Resolução nº 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok), assim como o Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.

Talvez, para quem desconhece a realidade do sistema carcerário brasileiro, valha afirmar que o decreto tenha vindo “em boa hora”. Contudo, a melhor expressão que o define é: “já não era sem tempo”.

Dentre tantas outras, pelas razões de que a primeira lei que tratou sobre o uso de algemas no Brasil foi justamente a Lei de Execuções Penais, e de que são inúmeras as denúncias de violações aos direitos das pessoas presas mediante o uso abusivo deste instrumento de contenção.

O decreto chega com 32 anos de atraso, em um mar de violações!

As algemas, agora, como consagrou o decreto, somente serão empregadas quando houver resistência da pessoa presa, justo receio de fuga ou de perigo à integridade dela própria ou de terceiros, seja causada por ela mesma ou por outrem. Devendo a determinação de uso ser formalizada por escrito e de maneira fundamentada. Também tornou-se proibido usar algemas em mulheres presas durante o trabalho de parto; no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar; e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.

Pensando sob esse último aspecto, é impossível não perceber o quanto certas práticas para causar dor e sofrimento ao outro, neste caso, a uma mulher em trabalho de parto, foram institucionalizadas a ponto de exigir-se, para que sejam repelidas, em que pese toda a normativa internacional referente às mulheres privadas da liberdade, uma norma específica.

Não algemar uma mulher em trabalho de parto é o óbvio, mas precisa ser lembrado. Assim como ainda é preciso lembrar ser fundamental reconhecer que o trabalho de parto de mulheres presas tem de ser, nos termos das Regras de Bangkok, e também de nossa legislação processual penal, no que concerne à prisão preventiva (art. 318, IV, do CPP), uma situação de excepcionalidade extrema, pois devem (sim, devem!) os magistrados e magistradas priorizar medidas alternativas ao encarceramento de gestantes.

É desconcertante que a proibição do uso de algemas para parturientes precise ser disciplinado em um decreto. Que precisemos lembrar a delicadeza de tratamento que o parto exige e que a prisão é um espaço desumano elevado à máxima potência neste momento.

É aterrador que o óbvio ululante precise ser lembrado...


Notas e Referências:

[1] A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado Federal também aprovou por unanimidade, em 01 de junho de 2016, o projeto de lei n. 75/2012 (PLS 75/2012) que proíbe a utilização de algemas em presas antes, durante e depois do trabalho de parto.


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. .


Imagem Ilustrativa do Post: My Son // Foto de: Ben Grey // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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