Por Júlio da Silveira Moreira - 11/06/2016
“O homem é um animal político”
Aristóteles
“Não quero que a minha vida tenha passado em vão, como a da maioria das pessoas. Quero ser útil ou trazer alegria a todas as pessoas, mesmo àquelas que jamais conheci. Quero continuar vivendo depois da morte!”
Anne Frank
Não existe na lei brasileira impedimento aos estrangeiros de participar de manifestações políticas ou de integrar associações civis. Este breve artigo aporta reflexões filosóficas e elementos do ordenamento jurídico-constitucional para demonstrar essas afirmações.
Em sua obra sobre a Política, Aristóteles constrói ideias importantes para pensar a origem e sentido dessa palavra. Pólis em grego representa a cidade, o mesmo que Civitas no romano, que significa condição de cidadão. Sua expressão anthropos physei politikon zoon (o homem é por natureza um animal político) aparece em algumas traduções como “o homem é um animal civil”. Em qualquer caso, política e cidadão se refere à participação do indivíduo na vida da cidade, aqui vista como o paradigma máximo da sociabilidade (subsumindo outros agrupamentos humanos, como os bairros e as famílias). Ser da Pólis significa, através da ação (praxis) e da comunicação ou discurso (lexis), agrupar-se, associar-se com as outras pessoas, formar teias de relações em que de alguma maneira todos participam na solução dos problemas comuns. Hannah Arendt (2007, p. 33), analisando Aristóteles e citando a Paideia de Werner Jaeger, diz que:
O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)”.
A política está presente nas três atividades fundamentais do humano: labor, trabalho e ação, sendo a ação, aqui entendida como relação com os demais humanos, a pluralidade, a condição de toda vida política. A condição humana é formada por três formas de vida, além mera sobrevivência e funcionamento biológico do corpo: a vida voltada para os prazeres do corpo; a vida dedicada aos assuntos da Polis; e a vida dedicada à investigação e contemplação das coisas eternas. Giorgio Agamben também remete às formas de vida na filosofia grega em seu conceito de Homo sacer - diferenciando zoé e bios - ambos os léxicos se referem à vida humana, porém o primeiro se refere à vida natural, livre da cultura, da vontade e da liberdade, e o segundo se refere à vida condicionada à ação social e histórica. Tanto Arendt como Agamben, e sobretudo Aristóteles, mostram que a negação da ação histórica e da prática política significam a negação da existência.
CLR James, ativista e escritor revolucionário famoso pelo livro “Jacobinos negros”, uma obra fundamental para compreender a revolução haitiana como paradigma da modernidade, lembra que os gregos recusavam a ideia de que o cidadão comum não seria capaz de realizar qualquer atividade de governo. Retoma também a etimologia da palavra idiota - aquele que não se ocupa de assuntos públicos, se move apenas por interesses particulares. A essência do seu pensamento é de que a política não é um assunto para especialistas e burocratas, mas para todos os membros da sociedade: “todo cozinheiro pode governar” é o título do seu texto. Tampouco é atividade para ocupar o tempo livre, e sim um dever e parte do trabalho social.
Feitas essas considerações, qualquer previsão legal que disponha se um indivíduo ou grupo social pode ou não pode fazer política se torna insignificante, uma impossibilidade jurídica tão clara quanto querer regular o nascer do dia e o cair da noite.
Porém, para usar o código dos juristas, vamos aos argumentos normativos. A Constituição brasileira traz, no seu art. 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, na forma dos 78 incisos seguintes, que trazem uma variedade de garantias, direitos e liberdades individuais, incluindo que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (inc. II), “é livre a manifestação do pensamento” (inc. IV), “é inviolável a liberdade de consciência e de crença” (inc. VI), “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” (inc. VIII), “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (inc. IX), “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização” (inc. XVI), “é plena a liberdade de associação para fins lícitos” (inc. XVII) e “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento” (inc. XVIII).
Esses dispositivos, tomados em conjunto, dão uma visão complexa e completa das liberdades de manifestação e associação, deixando claro, pelo caput do art. 5º, que essas liberdades se aplicam igualmente a brasileiros e estrangeirsos residentes no país. Portanto, estrangeiros residentes no país podem manifestar livremente suas opiniões, crenças e posições políticas, individualmente ou associados a outros indivíduos.
Qualquer pessoa que já tenha se acercado ao tema poderia objetar isso mencionando o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80). Antes de entrar no específico dessa norma, devemos adiantar que qualquer coisa que ela traga que seja contra a Constituição não tem nenhuma validade. Três princípios do direito são suficientes para fulminar um texto inconstitucional: o da supremacia da constituição, o da recepção e revogação tácita da legislação anterior à constituição, e o do bloco de constitucionalidade.
O princípio da supremacia da constituição aponta que a constituição é o texto base de um ordenamento jurídico, a fonte de referência para qualquer outra norma. Na hierarquia ou pirâmide das normas, à qual a obra de Kelsen faz referência, o fundamento de validade de uma norma jurídica só pode ser outra norma jurídica, e a Constituição, fruto de um poder constituinte originário, dá fundamento de validade para todas as normas geradas por qualquer instância legislativa ou administrativa do Estado.
O princípio da recepção e revogação tácita trata da validade temporal de uma norma frente à Constituição. É certo que, após a criação de uma constituição, o sistema de Estado e o sistema normativo prevêem os critérios de verificação de constitucionalidade das normas posteriores a ela - aí estão o controle concentrado e o controle difuso de constitucionalidade. O que acontece, na teoria jurídico-constitucional, com normas anteriores à constituição? Elas não são invalidadas em bloco por terem sido criadas antes da vigência de uma nova constituição. A constituição e o sistema normativo e político-estatal trarão mecanismos para incorporar - ou não - a norma antiga. Se ela está de acordo com a constituição, ela é recebida - dá-se a recepção da norma. Se ela é contrária à constituição, e se nenhuma lei posterior tiver declarado expressamente sua revogação, ela é tacitamente revogada. Isso significa que a força da constituição derruba a norma anterior que lhe seja contrária, sem que para isso seja preciso qualquer texto normativo expresso dizendo que tal norma não tem validade.
Por fim, o princípio do bloco de constitucionalidade (o que chamo de princípio aqui é, na verdade, uma constatação sobre a dimensão e transcendência da constituição para além do seu próprio texto) está demonstrado pelo parágrafo segundo do art. 5º, que diz que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ou seja, a ordem constitucional é maior que o próprio texto da constituição. Como versa Flávia Piovesan, o bloco de constitucionalidade é formado por: (1) os direitos e garantias expressos na Constituição; (2) o regime e os princípios por ela adotados; (3) os tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Para se chegar a determinar o que cabe e o que não cabe nesse bloco, é necessária a interpretação sistemática e integrada desses três elementos ou pilares.
Vamos agora analisar o que diz o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/80), sobre o direito de manifestação e o direito de associação dos estrangeiros residentes no Brasil. Seu art. 107 diz que
O estrangeiro admitido no território nacional não pode exercer atividade de natureza política, nem se imiscuir, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente vedado: I - organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de caráter político, ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente entre compatriotas, de idéias, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem; II - exercer ação individual, junto a compatriotas ou não, no sentido de obter, mediante coação ou constrangimento de qualquer natureza, adesão a idéias, programas ou normas de ação de partidos ou facções políticas de qualquer país; III - organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza, ou deles participar, com os fins a que se referem os itens I e II deste artigo.
Desde o princípio, se percebe que a afirmação isolada de que o estrangeiro “não pode exercer atividade de natureza política” não tem nenhum sentido. Como demonstramos anteriormente, proibir um ser humano de exercer atividade de natureza política é o mesmo que impedir o movimento das ondas do mar. Em outras palavras, está fora do campo de tutela do direito. O exercício de atividade política se dá pelo simples o uso da razão, da rel-ação e da comunicação. Só se poderia impedi-lo com o mecanismo de privação da zoé (vida natural) e da bios (vida social, cultural e histórica), que, conforme mostra Agamben, é a fabricação de não-seres humanos através do campo de concentração. Aprofundando nesse caminho de compreensão, a admissão do fato de que o Estado brasileiro, através de suas instituições, cerceie ou impeça um estrangeiro ou qualquer outra pessoa de exercer atividade política, equivale a compará-lo com o Estado nazista, e considerar esse Estado como Estado de Exceção, cuja finalidade é produzir a vida nua. A pretendida exclusão de estrangeiros de um ordenamento de direitos e liberdades é a figura do Homo sacer. em sua forma mais típica, já que Agamben toma a expressão de uma categoria do direito romano arcaico atribuído a pessoas excluídas das possibilidades da vida social, a quem o poder soberano não permitia viver, mas tampouco permitia que sua morte fosse tomada como sacrifício.
Mas vamos retomar o texto completo do art. 107 e interpretar o seu sentido. Cabe agora fazer uma interpretação histórica e teleológica da norma (métodos de interpretação plenamente válidos no direito). Tal lei foi criada durante a ditadura militar brasileira, mais precisamente durante a presidência de João Figueiredo. O fio condutor da legislação sobre o estrangeiro era o da segurança nacional. Neste e em outros dispositivos, a norma se destinava a proteger uma suposta soberania nacional contra instabilidades e abalos às instituições, e sobretudo ao “poder nacional”, conceito cunhado na Escola Superior de Guerra. A leitura dos três incisos do art. 107 mostram claramente que o exercício de “atividade de natureza política” se refere, por exemplo, à atuação de partidos políticos do país de origem do estrangeiro. Com claro teor de segurança nacional, a norma pretende evitar a intromissão de outros países na condução da vida política deste país, ou seja, proteger a soberania nacional.
Tratemos agora do direito de associação na referida norma. O art. 106 diz que é vedado ao estrangeiro, entre outras coisas, “participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional, bem como de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada” (inc. VII). Porém, em sentido contrário, o art. 108 diz que “é lícito aos estrangeiros associarem-se para fins culturais, religiosos, recreativos, beneficentes ou de assistência, filiarem-se a clubes sociais e desportivos, e a quaisquer outras entidades com iguais fins, bem como participarem de reunião comemorativa de datas nacionais ou acontecimentos de significação patriótica.”
Da leitura e interpretação acima, pode-se concluir que, nos termos dessa lei (ainda sem analisar sua constitucionalidade), as únicas atividades associativas proibidas aos estrangeiros seriam: (1) participar da administração ou representação de sindicato; (2) participar da administração ou representação de associação profissional; (3) participar da administração ou representação de entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada. As normas que reduzem direitos e garantias fundamentais, como no caso acima, devem ser interpretadas restritivamente, não sendo permitidas a analogia e a interpretação extensiva. Portanto, o estrangeiro pode participar da administração ou representação de qualquer entidade associativa que não se enquadre como sindicato, associação profissional ou entidade fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada. Além disso, a norma não faz restrição à participação, ou seja, associação, do estrangeiro a qualquer das entidades mencionadas ou quaisquer outras.
Torna-se um problema quando o leitor descuidado da norma, em vez de fazer uma interpretação sistemática, se apega a frases isoladas e sustenta qualquer consequência absurda dessa leitura. E mais, a interpretação teleológica significa compreender a finalidade da norma, o que ela pretendia quando foi criada, ou, melhor dizendo, de que maneira maneira ela se legitimava no contexto histórico em que fora criada, o que faz com que possa deixar de se legitimar no contexto histórico atual.
Ainda assim, retomando as questões da supremacia da constituição, da revogação tácita e do bloco de constitucionalidade, chega-se ao fato de que qualquer interpretação da norma que contrarie os direitos e liberdades de manifestação e associação, previstos na constituição e assegurados igualmente a brasileiros e estrangeiros residentes no país, é inválida e descabida. As normas do Estatuto do Estrangeiro devem ser lidas com os mesmos olhos que lêem a Constituição. Isso leva necessariamente que algumas daquelas disposições sejam tacitamente revogadas pela presente ordem normativa constitucional.
Constatamos ainda que qualquer decreto, portaria, ordem administrativa ou mesmo termos de compromisso assinados por imigrantes, de maneira coercitiva ou não, em que supostamente se comprometam a não exercer atividades políticas no país, é um documento sem nenhuma validade jurídica, já que desconforme com a legislação e a ordem constitucional.
O Projeto de Lei do Senado n. 288/2013, transformado em Projeto de Lei n. 2516/2015, já em avançado processo de tramitação na Câmara de Deputados e no Senado, e fruto de um largo processo de debates - algumas vezes frustrados - com organizações da sociedade civil, pretende lançar uma nova lei de migração, fundada supostamente na cidadania do migrante e não num dogma de defesa nacional, sepultando definitivamente o Estatuto do Estrangeiro de 1980. Essa nova lei substitui o termo estrangeiro por imigrante, definido como “pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil”, e assegura um rol de direitos, garantias e liberdades compatíveis com a constituição, aí incluindo, no art. 4º, o “direito de reunião para fins pacíficos” (inc. VI) e o “direito de associação, inclusive sindical, para fins lícitos” (inc. VII).
Com a aprovação da Lei de Migração, estaria sedimentada a dimensão constitucional sobre a liberdade de manifestação e associação dos imigrantes. Antes que isso se dê, a simples existência desse projeto de lei indica o que precisa ser mudado, e, assim, fornece elementos de interpretação jurídica.
Cabe ainda tecer algumas palavras sobre a ocupação de cargos públicos e postos de governo por estrangeiros, já que tendências e posições políticas restritivas aos direitos dos imigrantes podem gerar dúvidas sobre isso. A Constituição traz no art. 12, parágrafo 3º, um rol taxativo de cargos públicos privativos de brasileiros natos: I - Presidente e Vice-Presidente da República; II - Presidente da Câmara dos Deputados; III - Presidente do Senado Federal; IV - Ministro do Supremo Tribunal Federal; V - carreira diplomática; VI - oficial das Forças Armadas; VII - Ministro de Estado da Defesa. O art. 89, que trata da composição de um certo Conselho da República, também fala em cargos de brasileiros natos. Haverá uma infinidade de outras funções ou cargos públicos, em todos os órgãos da administração pública direta ou indireta, cujo acesso seja mediante eleições, concursos ou outras formas, e todas elas se permitem ser ocupadas por imigrantes.
É preciso, portanto, superar quaisquer distinções entre direitos, garantias e liberdades baseadas na nacionalidade. Mesmo quando a Constituição estabelece a igualdade entre brasileiros e estrangeiros residentes no país, deixa aparentes lacunas sobre o que seriam estrangeiros não residentes. Sobre isso, cabe ressaltar que os agentes do Estado não podem criar regras que dificultem ou especifiquem os meios pelos quais a residência no país seja provada, pois, se o fizerem, estão agindo para além da Constituição para restringir direitos. Residente no país é qualquer pessoa que estabeleça sua moradia habitual no território brasileiro.
E mesmo assim, o estrangeiro não residente também deve ser tratado em igualdade como sujeito de direito. Retomando o que havíamos dito que a ordem constitucional vai além do seu texto e inclui os princípios implícitos e os tratados internacionais, o princípio da isonomia, como expressão da igualdade, assegura a universalidade dos direitos fundamentais. Seria uma insanidade supor, por exemplo, que um turista ou viajante não tivesse pressupostos o direito à vida, à liberdade ou à segurança em iguais condições que as demais pessoas, durante sua passagem pelo território brasileiro.
A partir da universalidade dos direitos fundamentais, os Estados não podem criar diferenciações de direitos, garantias e liberdades com base na nacionalidade. Muito menos quando percebemos como as questões de nacionalidade vão se tornando cada vez mais fluidas. Enquanto a racionalidade jurídica busca classificar o mundo e criar regras definidas para cada classificação, o mundo em sua totalidade não se vê refletido nessa racionalidade jurídica. Se, diante do direito, pode parecer clara e simples a definição da nacionalidade de uma pessoa, diante da realidade as pessoas estão se movendo constantemente entre um lugar e outro, estabelecendo relações humanas interculturais e tornando cada vez mais cinza a atribuição de nacionalidade. A racionalidade jurídica não consegue responder se o critério de definição da nacionalidade é jurídico, cultural, político, geográfico, ou mesmo se é fruto de uma auto-definição do sujeito.
Se estamos estabelecendo que as diferenças baseadas na nacionalidade são cada vez mais porosas, então não podemos admitir a redução de direitos aos estrangeiros sem admitir uma correspondente redução de direitos para toda a sociedade.
Em 1844, Marx denunciava a dicotomia entre homem e cidadão lançada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789 na França. Tratou-se de um artifício jurídico criado pela burguesia para justificar que sua proclamação universal de direitos, na prática, só servia para o homem burguês: ainda que todos sejam reconhecidos como pessoas, nem todos são reconhecidos como cidadãos.
Acontece que, como demonstra o jurista italiano Luigi Ferrajoli, as classes de direitos civis, políticos e sociais pertencem à categoria de pessoas mesmo, e não de cidadãos. Há uma contradição entre a noção comunitária de cidadão e a base jusfilosófica individualista burguesa que marca o direito moderno. Isso resulta que os direitos proclamados como fundamentais são direitos da pessoa (atribuição individual) e não do cidadão (relação com a comunidade). Portanto, essa base jurídica, ao mesmo tempo em que tenta excluir uma parte da população da condição de cidadão, atribui seus direitos à condição de pessoa, da qual não se pode excluir ninguém.
Ao se desvincular os direitos fundamentais dos direitos do cidadão, se sobrepassam os limites da soberania nacional na definição do direito e se alcança uma esfera jurídica supra-estatal:
Tomar en serio estos derechos significa hoy tener el valor de desvincularlos de la ciudadanía como «pertenencia» (a una comunidad estatal determinada) y de su carácter estatal. Y desvincularlos de la ciudadanía significa reconocer el carácter supra-estatal —en los dos sentidos de su doble garantía constitucional e internacional— y por tanto tutelarlos no sólo dentro sino también fuera y frente a los Estados, poniendo fin a este gran apartheid que excluye de su disfrute a la gran mayoría del género humano contradiciendo su proclamado universalismo. Significa, en concreto, transformar en derechos de la persona los dos únicos derechos que han quedado hasta hoy reservados a los ciudadanos: el derecho de residencia y el derecho de circulación en nuestros privilegiados países. (Ferrajoli, 2004, p. 117)
Em um tratado geral sobre direios fundamentais, Ferrajoli estabelece os direitos de mobilidade humana (incluindo o direito de migrar de um país a outro) como os mais importantes para pensar os dilemas jurídicos do mundo atual. Retoma o jesuíta espanhol Francisco de Vitoria que, em 1539, ao justificar a colonização da América pelos europeus, definiu que o ius migrandi é um direito natural e fundamental, abarcando os direitos de viajar, emigrar e residir (peregrinandi, migrandi, degendi).
Para Flávia Piovesan e Luigi Ferrajoli, qualquer teoria da democracia que se sustente na contemporaneidade deve ter a base de um constitucionalismo mundial já instaurado pelo diálogo entre os direitos constitucionais e as convenções internacionais, resultando em “un ordenamiento que rechace finalmente la ciudadanía: suprimiéndola como status privilegiado que conlleva derechos no reconocidos a los no ciudadanos, o, al contrario, instituyendo una ciudadanía universal” (Ferrajoli, 2004, p. 119).
A cidadania universal está baseada na universalidade dos direitos fundamentais e no pressuposto de que os Estados não podem discriminar as pessoas com base na nacionalidade. Restringir o direito do imigrante a lutar por direitos e se associar com outras pessoas para fazê-lo é negar a condição humana, da qual a política é inerente.
Notas e Referências:
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2002.
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. 4. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2004.
JAEGER, Werner. Paideia. A formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
JAMES, C.L.R. A New Notion: Two Works by C. L. R. James: Every Cook Can Govern and The Invading Socialist Society. Oakland (CA): PM Press, 2010.
MARX, Karl. “A questão judaica”. In: _____. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2004.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil. Sobre los indios. Sobre el derecho de la guerra. Madrid: Tecnos, 1998.
. . Júlio da Silveira Moreira é Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: julio.moreira@unila.edu.br . .
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