Por Thomas da Rosa de Bustamante - 12/04/2016
O prof. de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Thomas da Rosa de Bustamante, emitiu parecer sobre as hipóteses juridicamente autorizadas de controle judicial de constitucionalidade e legalidade da decisão do Sr. Presidente da Câmara dos Deputados que, após admitir processo de impeachment contra a Sra. Presidente da República negou seguimento a pedido similar (fundado em atos supostamente idênticos em seus efeitos jurídicos) contra o Sr. Vice-Presidente da República;
Ainda, o parecer versou também sobre a eventual decisão colegiada do Plenário da Câmara que, modificando em parte a denúncia originalmente recebida pelo Presidente da Câmara, autorizou o Senado a instaurar processo de impeachment contra a Presidente da República fora dos contornos específicos fixados na decisão do Presidente da Casa que recebera a Denúncia na primeira fase do processo.
PARECER JURÍDICO
O Processo de Impeachment e as Esferas de Autorização pela Câmara dos Deputados. Limites e Possibilidades de Controle Judicial
Consulente: Reginaldo Lazaro de Oliveira Lopes
Ementa: Crime de Responsabilidade – Processo Político-Jurídico de Apuração – Impeachment – Revisão Judicial – Limites – Aspectos Processuais – Competências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal –Decisão do Presidente da Câmara – Natureza Jurídica – Impossibilidade de Controle de Mérito pelo Judiciário – Efeitos Sistêmicos – Questões de Mérito e Questões Processuais – Interpretação – Possibilidade de Exigência de Coerência e Razoabilidade na Apreciação de Fatos Idênticos – Comissão Especial designada para Apreciar Pedido de Impeachment da Presidente da República – Restrição do Debate aos Limites da Denúncia Recebida pelo Presidente da Câmara – Possibilidade de Intervenção do Judiciário para Garantia da Observância ao Devido Processo Constitucional.
I. Conteúdo da Consulta
Consulta-nos o Deputado Federal Reginaldo Lopes, do Partido dos Trabalhadores, eleito por Minas Gerais, acerca das hipóteses juridicamente autorizadas de controle judicial de constitucionalidade e legalidade de duas decisões: 1) a decisão do Sr. Presidente da Câmara dos Deputados que, após admitir processo de impeachment contra a Sra. Presidente da República – para apurar atos que, em tese, podem constituir crimes de responsabilidade – negar seguimento a pedido similar (fundado em atos supostamente idênticos em seus efeitos jurídicos) contra o Sr. Vice-Presidente da República; e 2) eventual decisão colegiada do Plenário da Câmara que, modificando em parte a denúncia originalmente recebida pelo Presidente da Câmara, autorizar o Senado a instaurar processo de impeachment contra a Presidente da República fora dos contornos específicos fixados na decisão do Presidente da Casa que recebera a Denúncia na primeira fase do processo.
Formula, em especial, os seguintes Quesitos, que devem ser respondidos à luz da Constituição, da Lei 1.079/1950, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do contexto político instaurado pela tramitação, na Câmara dos Deputados, do pedido de impedimento da Presidente da República, Sra. Dilma Rousseff, e, mais recentemente, do Vice-Presidente da República, Sr. Michel Temer.
1. Em vista do texto da Constituição de 1988, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da literatura jurídica consolidada, que fixa um aparato analítico e conceitual para o entendimento do instituto do impeachment, qual é a natureza do juízo realizado pela Câmara dos Deputados, ao deliberar sobre a “autorização” ao Senado para instaurar processo de apuração de crime de responsabilidade contra o Presidente da República, e pelo Senado, ao avaliar a admissibilidade desse processo e emitir um juízo sobre o seu “mérito”?
2. No caso específico da “autorização” da Câmara ao Senado para processar o Presidente da República, por crime de responsabilidade, quais são os elementos e requisitos de admissibilidade que devem ser considerados pelo Presidente da Câmara, ao deliberar pelo recebimento da Denúncia, e pela Comissão Especial instaurada para dar Parecer no Processo de Impeachment?
3. Uma vez recebida a Denúncia pelo Presidente da Câmara dos Deputados, pode a Comissão Especial, em seu Parecer, ampliar o objeto da Denúncia, para apurar fatos não contidos originalmente na Denúncia, ou não considerados juridicamente relevantes pelo Presidente da Casa no momento de seu juízo de admissibilidade?
4. Caso se adote uma resposta negativa ao Quesito anterior (n.3), pode o Parecer eventualmente acatado pela Comissão Especial fazer alusão a fatos e anexar documentos relativos a elementos não apreciados ou considerados carentes de justa causa no Despacho do Presidente da Câmara que recebeu a Denúncia?
5. Há possibilidade de revisão judicial do juízo jurídico-político do Presidente da Câmara, no momento do recebimento da Denúncia, ou do Plenário da Câmara, no momento da votação do Parecer da Comissão Especial?
6. Em caso de múltiplos pedidos de impeachment contra a Presidente da República ou o Vice-Presidente da República por atos cometidos no exercício da Presidência, é possível a revisão judicial do Despacho do Presidente da Câmara que recebe a Denúncia ou da decisão Plenário que autoriza o Senado a instaurar o Processo?
a. Estão corretos, do ponto de vista da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os argumentos aduzidos pelos Srs. Ministros Marco Aurélio de Mello, na liminar deferida no MS 34087, e Celso de Mello, na decisão monocrática do MS 34099?
b. É possível se exigir coerência do Presidente da Câmara entre decisões de pedidos fundados em fatos idênticos, contra a Presidente e o Vice-Presidente?
c. Quais as consequências jurídicas dos vícios apontados nos itens anteriores?
7. É passível de nulidade uma deliberação do Plenário da Câmara dos Deputados que autorize o Senado a instaurar processo contra a Presidente da República com fundamento em elementos não considerados no despacho do Presidente da Câmara dos Deputados que receber a Denúncia?
a. À luz da resposta a esse Quesito, foram encontrados vícios no Parecer do Deputado Jovair Arantes apresentado à Comissão Especial destinada a dar Parecer sobre a Denúncia apresentada pelos Srs. Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Conceição Paschoal contra a Presidente Dilma Rousseff?
II. Considerações Introdutórias
A Constituição de 1988, quando da sua elaboração, foi recebida com profundo entusiasmo pela classe política e pela população, alcançando a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 um grau de engajamento dos diferentes setores da sociedade e um grau de participação democrática raramente experimentado, se é que algum dia foi experimentado, na história política brasileira.
Sem embargo, o mesmo tipo de entusiasmo com a Constituição de 1988 não logrou ser alcançado na Ciência Política. Nesse sentido, Sérgio Abranches advertia – em um artigo elaborado durante a fase de conclusão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, que se tornou um dos clássicos da nossa Ciência Política – acerca dos riscos do denominado “Presidencialismo de Coalizão” que emergira juntamente com a Constituição de 1988. Como explica Abranches,
“O Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipardidarismo e o ‘presidencialismo imperial’, organiza o Executivo com base em grandes coalizões. A esse traço particular da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, ‘presidencialismo de coalizão’, distinguindo-o da Áustria e da Finlândia (e da França gaullista), tecnicamente parlamentares, mas que poderiam ser denominados ‘presidencialismo de gabinete’ (...). Fica evidente que a distinção se faz fundamentalmente entre um ‘presidencialismo imperial’, baseado na independência entre os poderes, se não na hegemonia do Executivo, e que organiza o ministério com amplas coalizões, e um presidencialismo ‘mitigado’ pelo controle parlamentar sobre o gabinete e que também constitui esse gabinete, eventual ou frequentemente, através de grandes coalizões. O Brasil retorna ao conjunto das nações democráticas, sendo o único caso de presidencialismo de coalizão”.[1]
No raciocínio de Abranches, as características centrais do nosso Legislativo – que é multipartidarista e com eleições proporcionais – não se harmonizariam bem com o presidencialismo imperial importado dos Estados Unidos, já que o Executivo, em que pese os votos e a legitimidade que lhe é atribuída pelas eleições majoritárias, dificilmente consegue governar com maioria parlamentar e tem a sua atuação submetida a um rigoroso controle orçamentário para implantação de suas decisões políticas. A governabilidade, nesse sistema, depende da construção – posterior ao processo político eleitoral – de grandes coalizões que são logradas muitas vezes com um alto preço político e moral, e nem sempre são possíveis. O modelo político brasileiro, sob a Constituição de 1988, permitiria um retorno aos impasses que produziram a instabilidade característica do período de 1946 a 1964, que antecedeu ao desastre político da ascensão do autoritarismo e da Ditadura Militar.
O ceticismo de Abranches, no entanto, foi gradativamente perdendo força na Ciência Política brasileira graças à capacidade que os governos Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva revelaram para construir maiorias parlamentares sólidas e para gerar estabilidade política em meio às negociações com os líderes partidários. Nesse sentido, Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, a partir de estudos empíricos sobre o funcionamento do Legislativo e a proeminência do Executivo na formulação de políticas públicas, rejeitam de maneira categórica as teses céticas que Abranches havia sustentado quando da promulgação da Constituição de 1988:
“O quadro institucional que emergiu após a promulgação da Constituição de 1988 está longe de reproduzir aquele experimentado pelo país no passado. A Carta de 1988 modificou as bases institucionais do sistema político nacional, alterando radicalmente o seu funcionamento. Dois pontos relativos ao diagnóstico [de Abranches] resumido acima foram alterados sem que a maioria dos analistas desse conta dessas alterações. Em primeiro lugar, em relação à Constituição de 1946, os poderes legislativos do Presidente da República foram imensamente ampliados. Na realidade, como já observamos em outra oportunidade, neste ponto, a Constituição de 1988 manteve as inovações constitucionais introduzidas pelas constituições escritas pelos militares com vistas a garantir a preponderância legislativa do Executivo e a maior presteza à consideração de suas propostas legislativas. Da mesma forma, os recursos legislativos à disposição dos líderes partidários para comandar suas bancadas foram ampliados pelos regimentos internos das casas legislativas. A despeito de todas as mazelas que a legislação eleitoral possa acarretar para os partidos políticos brasileiros, o fato é que a unidade de referência a estruturar os trabalhos legislativos são os partidos e não os parlamentares. (...)
Não encontramos indisciplina partidária e nem tampouco um Congresso Nacional que agisse como um veto player institucional. Os dados mostram, isto sim, forte e marcante preponderância do Executivo sobre um Congresso que se dispõe a cooperar e vota de maneira disciplinada”.[2]
Esse diagnóstico foi, por certo tempo, aceito como incontroverso pela Ciência Política mais recente.
Sem embargo, o momento político contemporâneo parece demonstrar o renascimento de certos impasses que dramatizam as dificuldades do nosso presidencialismo de coalizão. A própria ideia de “presidencialismo de coalizão”, nesse sentido, passa a ser interpretada de uma maneira mais ampla e a se referir não mais apenas a um dado estrutural ou aos desenhos institucionais existentes para compartilhar ou dividir tarefas entre o Executivo e o Legislativo, mas também à forma como são formuladas as coalizões necessárias para a estabilidade do governo.
Nesse sentido, Leonardo Avritzer acredita que podemos entender o presidencialismo de coalizão de duas formas: “como solução institucional para resolver um problema político específico, a saber, uma configuração da relação entre eleições presidenciais e representação proporcional no Congresso, na qual o presidente não alcança a maioria nas Casas”; ou como “maneira de realizar amplas coalizões que despolitizam uma agenda progressista da política no Brasil”.[3] Enquanto a primeira, para o autor, não representaria necessariamente um grande problema para a governabilidade, a segunda tem um potencial mais destrutivo para a estabilidade democrática, pois pode gerar impasses semelhantes ao que temos observado no presente momento político. Para Avritzer,
“a relação entre presidencialismo de coalizão e governabilidade não é estável, e o que vem ocorrendo nos últimos cinco anos é uma deterioração na qual os problemas de legitimidade em relação aos acordos para a formação de maiorias do Congresso superam os elementos positivos de produção de capacidade de decisão”.[4]
No que concerne ao governo Dilma Rousseff, em especial, Avritzer cita ao menos dois fatores que contribuíram, do ponto de vista político, para a sua desestabilização: i) uma profunda guinada conservadora do PMDB e do Congresso, que tornaram difícil a compatibilização do projeto político do Executivo com a agenda que gradativamente se impôs na Câmara dos Deputados, mormente sob a Era Cunha; e ii) a derrota do PT nas eleições proporcionais de 2014, que em conjunto com as mazelas do financiamento de campanha apontam para “uma mudança na relação” entre o Legislativo e o governo. A manutenção da governabilidade – desde ao menos o denominado escândalo do “mensalão” – é cada vez mais baseada em coalizões não genuínas e, não raras vezes, dependente da corrupção.
Para além desse grave problema, uma coisa parece clara qualquer que seja a explicação política e sociológica para o impasse em que vivemos: a legislação sobre o impeachment em vigor no Brasil parece agravar ainda mais o momento de crise política por que estamos passando, na medida em que a forma como são tipificados os crimes de responsabilidade, na Lei. 1.079/1950, gera um elemento de desestabilização ainda maior, colocando em risco a própria sobrevivência do presidencialismo.
Como é de amplo conhecimento, um dos traços distintivos do presidencialismo é o princípio da estabilidade dos mandatos, que não podem ser cassados apenas por razões de conveniência e oportunidade, por mais forte que sejam estas. É estranho ao presidencialismo o mecanismo da “moção de desconfiança”, por meio do qual o parlamento, atuando discricionariamente, decide destituir o Primeiro-Ministro e pôr fim a um governo com base em um juízo puramente político.
Uma interpretação do instituto do impeachment que, do ponto de vista prático, neutralizar a distinção entre esses institutos, tornando o impeachment uma mera decisão política sem qualquer balizamento por critérios jurídicos, constituiria uma espécie de “cavalo de Tróia parlamentarista”, na expressão feliz de Rafael Mafei. Ao falar em um “cavalo de Tróia parlamentarista”, o autor está a aludir à aparente incoerência ideológica entre o texto da Constituição de 1988, que promete um sistema de governo presidencialista com mandatos que só podem ser cassados em circunstâncias excepcionais, e a Lei 1.079/1950, que define os denominados “crimes de responsabilidade” de maneira extremamente ampla, de modo que “às vezes nem mesmo se parecem com ‘crimes’”. No âmbito do direito municipal, aliás, essas contradições já podem ser observadas há muito tempo: “é possível que qualquer prefeito ou governador tenha feito alguma coisa que, aos olhos de seus adversários, se encaixe em alguns dos muitos ‘crimes’ daquela lei (‘atuar contra a probidade da administração’, por exemplo)”.[5]
Como denuncia o autor, é indisfarçada a inspiração parlamentarista de nosso diploma normativo que regula o instituto do impeachment, como se pode facilmente constatar tanto por meio de uma análise do contexto histórico de sua elaboração como pela “exposição de motivos” da própria Lei 1.079/1950. Como explica o autor, “a exposição de motivos do projeto da LCR não deixa a menor dúvida desse propósito”, pois os denominados “crimes de responsabilidade” eram “malfeitos em um sentido muito amplo, abrangendo crimes, claro, mas também outras formas de ‘mau procedimento’”, de modo que o impeachment não se revestiria propriamente de uma punição por um ilícito propriamente configurado, “mas sim um grande controle da qualidade e aptidão do governo pelo Congresso”.[6]
É nesse contexto que se faz necessário refletir com a devida cautela sobre os limites e os critérios jurídicos de validade para decisões tomadas no curso dos processos de impeachment, com vistas a garantir, ao menos do ponto de vista formal – uma vez que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é bastante restrita quanto à possibilidade de uma revisão do juízo da Câmara ou do Senado Federal sobre o mérito de um pedido de impeachment –, os direitos fundamentais tanto dos acusados como dos eleitores na tramitação dos processos de cassação de mandatos eletivos.
A inobservância desses implicaria um perigoso desmonte do Estado de Direito, com o esvaziamento do conteúdo normativo da Constituição Federal e um consequente estado de “frustração constitucional”, onde o projeto de democracia constitucional é vítima de uma “insinceridade normativa”, um “antagonismo entre o dever-ser tipificado na norma e o ser da realidade social”.[7] Se decisões puramente discricionárias aparecem travestidas de julgamentos pseudo-jurídicos sobre a correção dos atos governo, abre-se caminho para um perigoso tipo de ditadura parlamentar onde a vigência da ordem constitucional passa a ser meramente simbólica. É contra esse risco que devemos nos posicionar. Como adverte Luís Roberto Barroso, em um dos mais importantes trabalhos acadêmicos do Direito Público dos anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, “não é incomum a existência formal e inútil de Constituições que invocam o que não está presente, afirmam o que não é verdade e prometem o que não será cumprido”.[8]
A única diferença entre uma constituição e uma “folha de papel”, na imagem tradicional de Ferdinand Lassalle, é o sentimento constitucional que se reinventa a cada dia por meio da interpretação moralmente responsável de suas normas.
Feitas essas advertências iniciais, passamos a abordar os quesitos que nos foram formulados sobre os pedidos de impeachment em curso na Câmara dos Deputados no exato momento em que escrevemos este parecer jurídico.
III. Resposta aos Quesitos
1. Em vista do texto da Constituição de 1988, da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da literatura jurídica consolidada, que fixa um aparato analítico e conceitual para o entendimento do instituto do impeachment, qual é a natureza do juízo realizado pela Câmara dos Deputados, ao deliberar sobre a “autorização” ao Senado para instaurar processo de apuração de crime de responsabilidade contra o Presidente da República, e pelo Senado, ao avaliar a admissibilidade desse processo e emitir um juízo sobre o seu “mérito”?
A diferenciação entre juízos “políticos” e “jurídicos” é assunto controvertido no âmbito da teoria política e da filosofia do direito, não sendo raro o ceticismo quanto à própria possibilidade de diferenciá-los segundo algum parâmetro racional. No pensamento jurídico de Hans Kelsen, por exemplo, têm contornos pouco nítidos tanto a diferença entre “aplicação” e “criação” de normas jurídicas quanto a diferença entre as atividades de “legislação” e “jurisdição”. Para o grande teórico do normativismo jurídico, tanto a criação quanto a aplicação do direito se realizam por meio de um ato de vontade que determina, dentre os significados possíveis para uma norma jurídica, aquele que vai ser dotado do sentido objetivo de uma norma jurídica válida. A chave para entender a denominada “estrutura escalonada da ordem jurídica”, que constitui um dos elementos centrais do pensamento de Kelsen, está nas ideias de que “toda norma necessita de extrair o seu fundamento de validade em outra norma jurídica” e de que “o direito regula a forma de sua própria produção”.
A distinção humeana entre “ser” e “dever-ser”, segundo Kelsen, implica a impossibilidade de se derivar qualquer norma jurídica de um simples fato social. Para ser válida, uma norma há que ser criada por um “ato de vontade” de alguém que esteja autorizado por outra norma a estabelecê-la como parte de um ordenamento. O conteúdo da norma é fixado pela vontade de seu autor, de uma maneira que pode ser mais ou menos arbitrária dependendo do grau de liberdade outorgado pela norma jurídica superior. Uma norma jurídica de grau hierárquico superior, portanto, determina o processo de produção de normas inferiores de duas maneiras: 1) ao autorizar determinado agente a criar normas inferiores e estabelecer o procedimento para essa criação; e 2) ao vincular esse agente por meio de seu próprio conteúdo, na medida em que a norma jurídica inferior não pode possuir conteúdo incompatível com o da norma superior.
Uma das consequências desse raciocínio é a inexistência de uma diferença clara entre os atos de “criação” e “aplicação” do direito.[9] Todo ato de criação de uma norma mais concreta ou individual (seja ela uma lei criada com fundamento na constituição ou uma ordem judicial criada com base na lei) é também um ato de aplicação da norma superior que determina o processo e os limites de sua criação.
Pode-se afirmar, como vimos, que essa necessidade de buscar fundamento em uma norma superior é uma característica das normas jurídicas em geral. Toda norma jurídica, para ser válida, há que ser validada por uma certa “fonte” do direito. E essa “fonte”, para Kelsen, só pode ser uma norma: “efetivamente, só se costuma designar-se como ‘fonte’ o fundamento de validade jurídico-positivo de uma norma jurídica, quer dizer, a norma jurídico-positiva do escalão superior que regula a sua produção”.[10]
Um aprofundamento nessa teoria nos levará, pois, a uma distinção frágil entre as atividades de “legislação” e “jurisdição”. Não existe nenhum critério do tipo ontológico para diferenciá-las. Não se trata, para Kelsen, de uma distinção de qualidade, mas apenas de grau. A única diferença entre legislação e jurisdição, para o autor, está no grau de generalidade da norma que é produzida pelo aplicador da norma geral. Enquanto o legislador, ao interpretar as normas da constituição e aplicá-las para exercer as suas competências, produz uma norma geral, o juiz, ao interpretar as leis e aplicá-las diante de um caso concreto, produz uma norma individual.
Podem-se encontrar, porém, algumas tentativas interessantes de diferenciar de maneira mais rígida os juízos que se realizam com fundamento no direito e na política (e com isso os juízos próprios da jurisdição e da atividade política propriamente dita). A teoria dos sistemas de Luhmann, por exemplo, vislumbra o direito e a política como dois subsistemas independentes, cujas diretrizes são produzidas a partir de dentro, ainda que estimuladas a partir de interações ocasionais que esses sistemas realizam com os demais. Cada subsistema opera com uma lógica ou uma racionalidade própria, sendo que o direito opera com o código binário “lícito/ilícito” e a política opera com o código binário “poder/não-poder”. É a qualificação segundo cada um desses códigos binários que determina se um fato, um ato ou uma decisão integra algum dos subsistemas de que estamos falando.[11]
A teoria de Dworkin, por sua vez, propõe também um critério rígido para distinguir entre os princípios de direito e as políticas (policies), que pode ser enunciado da seguinte maneira:
“Argumentos de política (policy) justificam uma decisão política ao mostrar que a decisão avança ou promove algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. O argumento em favor de um subsídio para a indústria aeronáutica, de que esse subsídio irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política. Argumentos de princípio justificam uma decisão política ao mostrar que a decisão respeita ou assegura um direito de um indivíduo ou de um grupo. O argumento em favor de leis antidiscriminação, de que uma minoria tem um direito ao igual respeito e consideração, é um argumento de princípio”.[12]
A racionalidade própria do direito, para Dworkin, é baseada em argumentos de princípio, que indicam o que é “certo” ou “errado”, ou o que é “devido”, “proibido” ou “permitido”, e não em argumentos de política, que fixam um determinado objetivo a ser alcançado por certa comunidade. O direito não opera com critérios de conveniência e oportunidade, mas segundo critérios de justiça.
O cerne dos juízos “políticos”, por outro lado, não se situa na aplicação de uma norma que se materialize nos modais deônticos “proibido”, “obrigatório” ou “permitido”, mas na valoração estratégica de considerações de conveniência e oportunidade, que determinam a forma de construção da decisão a ser adotada.
Impera uma certa incerteza, no entanto, ao se caracterizar o tipo de juízo realizado pelas Casas do Poder Legislativo no momento em que os estudiosos se dedicam a determinar a “natureza jurídica” do impeachment. Nesse sentido, Paulo Brossard propõe a seguinte caracterização do instituto do impeachment no Direito Brasileiro:
“Entre nós, como no direito norte-americano e argentino, o ‘impeachment’ tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e julgado segundo critérios políticos (julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos)”.[13]
Em vista de seu comprometimento histórico com ideias parlamentaristas, que inspiraram tanto a redação da Lei 1.079/1950 como a sua própria atuação político-partidária, Brossard enfoca, claramente, o aspecto político do processo de impeachment, ao deixar claro que este “tem feição política”, tem como causa exclusiva a política, busca resultados políticos, e é julgado “segundo critérios políticos”.[14] Se parássemos por aí, poderíamos dizer, sem receio, que impeachment é assunto “exclusivamente político”, e não há qualquer limite jurídico a ser fixado sobre a decisão que realiza o impeachment do ponto de vista prático.
Parece ser esse, aliás, o principal mote do argumento de Brossard, pois em vários momentos de sua obra ele parece esquecer a sua afirmação, colocada entre parênteses, de que o impeachment “não exclui, antes supõe, a adoção de critérios jurídicos”. É o que se depreende, por exemplo, quando sustenta abertamente que “as decisões do Senado são incontrastáveis, irrecorríveis, irreversíveis, irrevogáveis, definitivas”,[15] sendo matéria “por inteiro estranha” à competência do Judiciário.[16]
Como relatado no Parecer do Deputado Federal Jovair Arantes, Relator da Comissão Especial criada para dar Parecer no Processo de Impeachment em tramitação na Camada dos Deputados contra a Presidente Dilma Rousseff, Brossard adotava uma concepção de índole marcadamente política sobre o impeachment, pois sustentava que “as decisões podem ser as mais chocantes, e delas não cabe recurso, não cabe recurso para tribunal algum”.[17] No seu entendimento, em matéria de impeachment, “tudo se passa, do início ao fim, no âmbito legislativo, convertido em juízo de acusação, ou de autorização, na linguagem da atual Constituição, e em tribunal de julgamento, exclusivo e irrecorrível”.[18]
Combinadas, essas conclusões de Brossard colocam em xeque, do ponto de vista prático, qualquer diferença entre o processo de impeachment, que cassa o mandato do Presidente por motivo de crime de responsabilidade, e as moções de desconfiança, que, no parlamentarismo, revogam o mandato do Primeiro-Ministro por razões de conveniência e oportunidade. Se os critérios de julgamento são políticos e a decisão é, em toda e qualquer circunstância, final e irrecorrível, ainda que possa estar entre “as mais chocantes”, então a justificativa jurídica apresentada para o impeachment se aproxima de um adorno, uma maquiagem para esconder o caráter verdadeiramente político do ato de cassação.
Felizmente, no entanto, esse posicionamento não encontrou ressonância no Supremo Tribunal Federal, como reconhece o Deputado Jovair Arantes em seu Parecer. O entendimento de Brossard não foi acatado pelo STF no julgamento do MS 20.941, pois o tribunal expressamente reconheceu que embora o juízo de mérito seja das Casas do Legislativo, a revisão da decisão do Parlamento, pelo Judiciário, pode ocorrer em circunstâncias excepcionais, “quando presente induvidosa ilegalidade ou abuso de poder, aferível a partir de fatos absolutamente certos e inequívocos”.[19] Compete ao Judiciário, como ressaltado na ementa do aludido julgado, não revisar o juízo de mérito realizado pelo Legislativo, mas garantir a regularidade formal do procedimento e o direito das partes envolvidas no processo, quando verificada a sua violação.[20]
O critério que deve presidir o julgamento do Senado, por sua vez, não pode ser classificado corretamente como “político”, ainda que a “conveniência e oportunidade” da instauração do processo seja também analisada no juízo de admissibilidade (realizado por esta Casa Legislativa após receber a “autorização” da Câmara dos Deputados) e ainda que a interpretação do direito realizada pelo Senado seja mais sensível ao contexto político e atribua um peso maior para os fatores extrajurídicos que se fazem presentes, em maior ou menor grau, em toda interpretação. Nesse sentido, no mesmo julgamento do MS 20.941, o Ministro Sepúlveda Pertence deixou consignado o seu entendimento de que seria “evidente”, ao contrário do que sustentava Brossard, “a natureza penal das sanções, quais as do impeachment, que, aplicadas necessariamente de forma jurisdicional, consistem na privação ou na suspensão de direitos”.[21]
De modo análogo, mais recentemente, sustenta o Ministro Teori Zavascki, em seu voto na ADPF 378, que o impeachment “trata-se de um julgamento de um ato ilícito, mas que é feito excepcionalmente, não por um órgão do Poder Judiciário, mas pelo Poder Legislativo”. Daí não se infere, como observou o Ministro, que se trate de um “julgamento político”, mas apenas de um “modo diferente de interpretar a lei”.[22] Assim como nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, o julgamento no Legislativo tem certas particularidades, mas nem por isso se perde o conteúdo jurídico de suas valorações.
Se essas reflexões de Pertence e Zavascki se encontram corretas, como nos parece, então não cabe confundir a questão da natureza do impeachment ou do critério utilizado para seu julgamento – que é evidentemente jurisdicional, na medida em que o impeachment é ato de aplicação do direito, é dizer, de imposição de uma sanção por descumprimento de dever legal, obedecendo ao código binário do “lícito/ilícito”, no dizer de Luhmann – com a questão acerca da autoridade, é dizer, de qual instituição tem o direito de decidir determinada controvérsia constitucional.[23]
A Constituição de 1988 delimitou, portanto, dois domínios razoavelmente distinguíveis no âmbito da aplicação de suas normas: um domínio reservado às instâncias do Poder Legislativo, para avaliação do mérito político e do mérito jurídico do impeachment, e um domínio reservado ao Poder Judiciário, em particular o Supremo Tribunal Federal, para a defesa da Ordem Constitucional e a garantia do Devido Processo Legal.
Como a materialização do impeachment envolve tanto uma análise de “mérito jurídico” como outra de “mérito político”, a maioria da doutrina e da jurisprudência tende a entender que o processo de impeachment tem um caráter “político-jurídico”, sem contudo que fique sempre claro quais são os atos e juízos de natureza política e jurídica na apreciação do impeachment.
De todo modo, essas considerações despertam hoje mais controvérsia entre os teóricos do que entre os órgãos encarregados da aplicação do direito, pois a jurisprudência do Supremo Tribunal, depois do julgamento da ADPF 378, delimitou de maneira clara quais atos são necessários, em cada Casa do Legislativo, para consumação do impeachment.
Como previsto nos artigos 51, I, e 52, I, da Constituição Federal, compete à Câmara dos Deputados “autorizar” o Senado a julgar o Presidente da República por crime de responsabilidade, e ao Senado Federal “processar e julgar” o Presidente. Como decidiu o STF na ADPF 378, a competência da Câmara envolve, portanto, “um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para prosseguimento da denúncia”, enquanto a competência do Senado abrange tanto um “julgamento inicial de instauração ou não do processo, isto é, de recebimento ou não da denúncia autorizada pela Câmara”, como um julgamento final de mérito sobre o crime de responsabilidade.[24]
Não foram recepcionados, portanto, os preceitos da Lei 1.079/1950 que estabeleciam que a Câmara dos Deputados seria um “tribunal de pronúncia”, o qual tinha que se manifestar sobre a procedência ou improcedência da acusação. Na Constituição em vigor, incumbe ao Senado Federal um novo juízo de admissibilidade após a autorização conferida pela Câmara para processar o Presidente, o qual deve ser realizado por maioria simples, tal como se deu no processo instaurado contra o Presidente Fernando Collor de Mello em 1992.
O afastamento da Presidente do Cargo, durante o processo, só se dará depois de realizado o juízo de admissibilidade pelo Senado (art. 86, § 2º, II, da Constituição Federal).
Na deliberação pela “autorização” (ou não) ao Senado para processar o Presidente, a Câmara realiza sem dúvida um juízo político, em que é considerada não apenas a materialização da infração político-administrativa definida como “crime de responsabilidade”, mas também um juízo de conveniência e oportunidade sobre a instauração do processo de impeachment.
Como explica de maneira didática a manifestação da Presidente Dilma Rousseff perante a Comissão Especial designada para dar Parecer no processo de impeachment, a Câmara deve examinar, em seu juízo preliminar sobre a admissibilidade da Denúncia, a presença de um pressuposto jurídico e um pressuposto político, que podem ser definidos nos seguintes termos:
“O pressuposto jurídico é a ocorrência, no mundo fático, de um ato, sobre o qual não pairem dúvidas quanto à sua existência jurídica, diretamente imputável à pessoa da Presidenta da República, praticado no exercício das suas funções, de forma dolosa, ao longo do seu mandato atual, tipificado pela lei como crime de responsabilidade, e que seja ainda de tamanha gravidade jurídica que possa vir a ser qualificado como atentatório à Constituição, ou seja, capaz de por si materializar uma induvidosa afronta a princípios fundamentais e sensíveis da nossa ordem jurídica.
O pressuposto político é a avaliação discricionária de que, diante do ato praticado e da realidade que o envolve, configura-se uma necessidade intransponível de que a Presidenta da República seja afastada do seu cargo. Em outras palavras: que o trauma político decorrente da interrupção de um mandato legitimamente outorgado pelo povo seja infinitamente menor para a estabilidade democrática, para as instituições e para a própria sociedade do que a sua permanência na Chefia do Poder Executivo”.[25]
Sem embargo, ainda que essa “autorização”, no âmbito da Câmara dos Deputados, tenha um forte conteúdo político, ela está subordinada à presença de certos requisitos jurídicos que devem – independentemente da previsão ou não de controle judicial sobre esses juízos – ser rigorosamente observados na decisão que conceda tal autorização. Ainda que não se exija um exame conclusivo, na apreciação da Denúncia pela Câmara, do lastro probatório apresentado para processamento do impeachment, faz-se necessário ao menos verificar “se a acusação é consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a notícia do fato reprovável tem realmente procedência, não sendo a acusação simplesmente fruto de quizílias ou desavenças políticas”.[26]
Como reconhecido pelo Relator da Comissão Especial para Aprovar Parecer sobre o Pedido de Impeachment em tramitação na Câmara dos Deputados, o Juízo de admissibilidade na Câmara deve analisar a observância dos seguintes requisitos processuais: a) a legitimidade ativa do denunciante; b) a permanência do denunciado no mandato presidencial; c) a correção formal da denúncia; d) o exame da justa causa – lastro probatório mínimo – que “evidencie que o processo tem justa causa e apresenta indícios de conduta pessoal do Presidente da República que se enquadre, ao menos em tese, em crime de responsabilidade previsto na Lei 1.079/1950; e e) a conveniência e oportunidade política do recebimento da denúncia.[27]
Além desses requisitos, parece-me mandatório verificar, também, se o relato contido na denúncia se refere a atos dolosos praticados no exercício do mandato, uma vez que o artigo 86, § 4º, da Constituição expressamente veda que a Presidente da República seja responsabilizada por atos estranhos ao seu mandato (incluindo-se, como reconheceu o Presidente da Câmara em seu despacho inicial de recebimento da Denúncia, atos anteriores ao mandato ou a mandatos exercidos anteriormente pelo atual ocupante da Presidência).
2. No caso específico da “autorização” da Câmara ao Senado para processar o Presidente da República, por crime de responsabilidade, quais são os elementos e requisitos de admissibilidade que devem ser considerados pelo Presidente da Câmara, ao deliberar pelo recebimento da Denúncia, e pela Comissão Especial instaurada para dar Parecer no Processo de Impeachment?
Embora a competência da Câmara dos Deputados, à luz do que dispõe o art. 51, I, da Constituição Federal, seja apenas de “autorizar” o Senado a instaurar um processo de apuração de crime de responsabilidade contra a Presidente da República, o que não exige mais do que uma cognição provisória acerca dos requisitos processuais de admissibilidade, cabe à Câmara dos Deputados tanto um juízo jurídico sobre a presença dos requisitos de admissibilidade da Denúncia quanto um juízo de conveniência e oportunidade sobre a sua instauração.
Entre os elementos jurídicos a serem apreciados na Denúncia destaca-se a análise da “justa causa” para prosseguimento do pedido. A valoração da “justa causa” não constitui, como sabemos, uma análise puramente formal da presença de requisitos objetivos para prosseguimento do processo.
Como explica Afrânio Silva Jardim, no âmbito do processo penal, torna-se necessária a “demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que rastreada em um mínimo de prova. Esse suporte probatório mínimo se relaciona com indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade”.[28]
O requisito da justa causa não se limita, porém, a um juízo sobre a existência de uma “prova mínima”, como parece acreditar o Relator do Processo na Comissão Especial, Deputado Jovair Arantes. Ele envolve, também, um igualmente importante juízo sobre a existência de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
Esse juízo sobre a justa causa deve ocorrer nas duas fases em que a Denúncia é apreciada na Câmara dos Deputados: na admissão inicial, pelo Presidente, e na deliberação em Plenário sobre o mérito da autorização ao Senado para instaurar o processo.
A Lei 1.079, em seu artigo 19, não apenas faculta ao Presidente da Câmara, no seu despacho inicial sobre o recebimento da Denúncia, realizar uma análise do requisito da justa causa. Bem interpretada, a lei também exige que essa valoração seja cuidadosa e fundamentada, prevendo a possibilidade de recurso ao Plenário caso ela seja feita de maneira viciada.
Nesse sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões, decidindo sempre no mesmo sentido. No MS 30.672 AgR, por exemplo, fixou-se em termos literais que “na linha da jurisprudência firmada em Plenário desta Corte, a competência do Presidente da Câmara dos Deputados e da Mesa do Senado Federal para recebimento, ou não, da denúncia no processo de impeachment não se restringe a uma admissão meramente burocrática, cabendo-lhes, inclusive, a faculdade de rejeitá-la, de plano, caso entendam ser patentemente inepta ou desprovida de justa causa”.[29]
Da decisão que não recebe a Denúncia, por sua vez, cabe recurso ao Plenário caso o Presidente entenda estarem ausentes os requisitos da “justa causa”, embora não seja tarefa do Poder Judiciário (ressalvados casos excepcionais que abordaremos na resposta ao Quesito 5) realizar qualquer controle de legalidade sobre o mérito desse juízo.[30]
O exame da “justa causa” se realiza, portanto, em dois momentos distintos: na apreciação inicial, pelo Presidente, e na deliberação em Plenário.
Neste ponto, aliás, o entendimento do Ministro Edson Fachin foi acatado de maneira unânime pelo Supremo Tribunal Federal, e pode ser sintetizado no seguinte fragmento:
“Importante enfatizar que o ato do Presidente da Câmara, embora acarrete o recebimento da denúncia no contexto do processo instaurado no âmbito daquela Casa Legislativa, não encerra de forma definitiva o juízo de admissibilidade da denúncia. Se a denúncia for recebida pelo Presidente da Câmara dos Deputados, incumbirá ao Plenário o juízo conclusivo quanto à viabilidade da denúncia.
Essa sistemática também guarda similitude com a lógica do processo penal ordinário, em que o juiz recebe a denúncia e, à vista de defesa escrita, na fase prevista no artigo 397 do CPP, revisita a adequação da acusação a justificar a produção de provas voltadas a formar o juízo de mérito. É por isso que, embora não se reconheça a existência de dois recebimentos, parte da doutrina trata de dupla admissibilidade da denúncia:
‘Em suma, teria o juiz duas oportunidades de verificar a admissibilidade da demanda: a primeira, de modo bem superficial, apoiado tão somente nos elementos constantes do inquérito policial ou das peças de informação; o segundo, já em grau de cognição mais vertical - mas ainda sumário – com suporte não apenas no material colhido inquisitorialmente mas também nas alegações e nos documentos eventualmente apresentados pela defesa técnica do denunciado, no prazo que lhe foi disponibilizado por força do comando do artigo 396 do Código de Processo Penal. O propósito parece ter sido o de conferir maior grau de proteção ao acusado contra acusações infundadas e até temerárias, que, se não constituírem a regra, podem ocorrer como fruto do açodamento, errônea interpretação dos fatos apurados na investigação preliminar, ou quiçá, de distorcida concepção dos fins do processo penal’. (Cruz, Rogério Schietti Machado. O juízo de admissibilidade após a reforma processual de 2008. In: Calabrich, Bruno; Fischer, Douglas; Pelella, Eduardo (Orgs.). Garantismo Penal Integral, 2. ed. Salvador: Juspodium, 2013. p. 204, grifei)”.
A analogia com o Processo Penal deve ser aceita, porém, cum grano salis, pois existe uma diferença importante entre o processo de impeachment e o recebimento inicial da Denúncia no Processo Penal. No âmbito da apreciação da Denúncia de impeachment pela Câmara, diferentemente do processo penal, não há uma identidade física do juiz, e estamos falando de dois órgãos de decisão diferentes (o Presidente e o Plenário). Essa circunstância, como veremos na resposta ao próximo Quesito, traz importantes consequências práticas ligadas à observância do Devido Processo Legal.
3. Uma vez recebida a Denúncia pelo Presidente da Câmara dos Deputados, pode a Comissão Especial, em seu Parecer, ampliar o objeto da Denúncia, para apurar fatos não contidos originalmente na Denúncia, ou não considerados juridicamente relevantes pelo Presidente da Casa no momento de seu juízo de admissibilidade?
Em vista do conteúdo político da autorização conferida pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal para instaurar processo de impedimento contra o Presidente da República, alguns Deputados sustentam que o juízo do Presidente da Câmara, sobre o recebimento inicial da Denúncia, é “meramente precário, sumário e não vinculante”, o que autorizaria à Comissão Especial designada para elaborar o Parecer sobre o impeachment (na Câmara) a analisar a denúncia “por inteiro”, incluindo-se as acusações consideradas ineptas ou carentes de justa causa pelo Presidente no despacho inicial.[31]
Com isso os termos do Despacho do Presidente da Câmara não seriam vinculantes para a Comissão. Tal como no Processo Penal ordinário, que tramita perante o Poder Judiciário, seria possível o aditamento da Denúncia seja para agregar novos elementos probatórios ou para mudar a qualificação jurídica do delito, através da denominada “mutatio libeli”, prevista no artigo 384 do Código de Processo Penal.
No processo penal, esse aditamento pode acontecer inclusive depois de concluída a instrução processual, como está inequivocamente autorizado pelo caput do artigo 384 do CPP. A linguagem da lei é precisa, e estabelece inclusive um dever para o Ministério Público. Nesse sentido, dispõe a lei: “encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente (artigo 384, caput, do CPP).
A comparação entre o processo de impeachment e o processo penal, no entanto, não pode ser superdimensionada, principalmente depois do advento da Constituição de 1988.
Sob a égide da Constituição de 1988, a Câmara dos Deputados não mais atua como “tribunal de pronúncia” e não mais promove, depois de concedida “autorização” ao Senado para processar o Presidente, qualquer tipo de “acusação” ao Denunciado.
O princípio do Devido Processo Legal, previsto no art. 5º, LIV, da Constituição Federal (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”), e o princípio do Contraditório e da Ampla Defesa, previsto no art. 5º, LV, da mesma Constituição (“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”) impõem uma diferenciação clara entre os dois tipos de processo.
No caso do Processo Penal, há pelo menos três circunstâncias essenciais para admitir a alteração ou ampliação da Denúncia que estão ausentes no Processo político-administrativo de impeachment:
Em primeiro lugar, a titularidade da ação penal, nos casos em que se permite a ampliação da Denúncia, é do próprio Ministério Público, ou seja, da mesma instituição que apresentou a Denúncia em primeiro lugar. É ela quem realiza a subsunção do “fato novo” à legislação penal, e com isso realiza o “ato de aplicação do direito” consistente no enquadramento da conduta em um novo tipo penal para a modificação da acusação. Essa circunstância não está presente na Comissão Especial que elabora Parecer sobre um pedido de impeachment. A Denúncia que ela examina há que ter sido apresentada por cidadão, submetida a uma série de requisitos formais e a um juízo de admissibilidade prévio do Presidente da Câmara dos Deputados.
O Presidente da Casa, como o Supremo Tribunal Federal decidiu em diversos julgados citados neste Parecer, atua como órgão responsável pelo julgamento político-jurídico da admissibilidade da Denúncia. O ato de recebimento da Denúncia, pelo Presidente, guarda muito mais contornos comuns com o Processo Administrativo do que com o Processo Penal, pois uma eventual ampliação do objeto da Denúncia implicaria “queimar uma etapa” importante do juízo de admissibilidade do pedido de impedimento. A Comissão Especial, caso admitisse a ampliação do objeto da Denúncia, não estaria mais apenas apresentando um “parecer” ou uma “análise de mérito” do pedido, mas passaria a integrar o pólo ativo e a atuar como “órgão de acusação”, o que é vedado pela Constituição de 1988, tal como interpretada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 378.[32]
Obviamente, isso representa uma violação palmar ao princípio do devido processo legal.
Em segundo lugar, e por iguais razões, no processo penal vigora o princípio da indivisibilidade do juízo. O juiz que recebe a denúncia, no primeiro momento, é o mesmo juiz que realiza a instrução processual e que admite, caso seja encontrado algum fato novo, a modificação da denúncia originalmente apresentada.
Isso também não ocorre, obviamente, no processo de impeachment, pois qualquer modificação realizada pela Comissão Especial do pedido de impedimento implicaria ampliar o objeto da pré-autorização que o Presidente da Câmara deu à própria Comissão para analisar a Denúncia.
Em terceiro lugar, a possibilidade de modificação (para ampliar) a Denúncia no Processo Penal está subordinada ao exercício amplo, inequívoco e regular do Direito de Defesa, que se materializa por meio de uma nova oportunidade processual para contraditar os termos da Denúncia (já revisada) e para produzir novas provas em benefício do acusado.
Como deveria ser óbvio – mas infelizmente não foi para o Relator da Comissão Especial para dar Parecer em Processo de impeachment – a mutatio libeli no Processo Penal só pode ser considerada consistente com os princípios do Devido Processo Legal e do Contraditório porque está previsto expressamente no art. 384, § 2º, do Código de Processo Penal, o direito de o acusado ser ouvido e apresentar novas provas (incluindo-se novas testemunhas) depois do aditamento e antes do julgamento final pelo mesmo juiz que autorizou a ampliação do objeto da Denúncia.
No processo de impedimento, por outro lado, qualquer ampliação do objeto da Denúncia só pode ser realizada, sob pena de uma clara violação aos princípios do Devido Processo Legal e do Contraditório, por meio do procedimento próprio, que é um recurso ao Plenário contra a Decisão do Presidente da Câmara dos Deputados que limitou o objeto da Denúncia recebida, com a necessidade de reabertura do prazo de defesa da Denunciada caso esse recurso seja julgado procedente. A Comissão Especial criada para dar Parecer em processo de apuração de crime de responsabilidade não pode, em hipótese alguma, ampliar o objeto da Denúncia.
4. Caso se adote uma resposta negativa ao Quesito anterior (n.3), pode o Parecer eventualmente acatado pela Comissão Especial fazer alusão a fatos e anexar documentos relativos a elementos não apreciados ou considerados carentes de justa causa no Despacho do Presidente da Câmara que recebeu a Denúncia?
Em decorrência do raciocínio exposto no Quesito anterior, parece claro que o Parecer da Comissão Especial não pode, sob pena de nulidade, fazer quaisquer alusões a fatos e admitir a anexação de documentos relativos a elementos não apreciados ou considerados “carentes de justa causa” no Despacho do Presidente da Câmara.
O vício, aqui, não está no fato de esses documentos serem submetidos à Comissão, mas na forma como esses fatos chegam à Comissão. Como explicamos na resposta ao Quesito anterior, a decisão do Presidente da Câmara que admite parcialmente uma Denúncia não é irreversível. Ela pode ser reformada por meio de Recurso ao Plenário, que amplie o objeto da Denúncia e permita a juntada de novos documentos para comprovar os fatos alegados.
De todo modo, qualquer juntada de documento ou qualquer elemento de prova que modifique o contexto probatório vigente ao tempo do início da contagem do prazo de defesa da Denunciada deve supor, obviamente, a reabertura do prazo de defesa da Presidente e também uma nova oportunidade para juntar documentos destinados a provar a irrelevância, inveracidade ou inautenticidade dos documentos juntados a posteriori pela acusação.
Não há nenhuma razão de boa fé que se pode imaginar para a juntada de novos documentos, mormente se esses documentos se referirem a fatos estranhos ao objeto da Denúncia tal como ela foi recebida pelo Presidente da Câmara. A única razão que se pode imaginar para a Comissão Especial fazer referência ou menção a fatos estranhos à Denúncia recebida ou permitir a juntada de tais documentos é a de influir no juízo de mérito dos integrantes do Plenário que analisarão a Denúncia, trazendo por vias oblíquas elementos de valoração não submetidos ao Contraditório e ao Devido Processo Legal.
5. Há possibilidade de revisão judicial do juízo jurídico-político do Presidente da Câmara, no momento do recebimento da Denúncia, ou do Plenário da Câmara, no momento da votação do Parecer da Comissão Especial?
A regra geral fixada pela jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal não permite controvérsias: o juízo de mérito realizado por cada Casa do Poder Legislativo, seja ele o mérito político ou o mérito jurídico, não pode ser objeto de revisão pelo Poder Judiciário.
Como apontamos na resposta ao Quesito n. 1, não se trata aqui de uma discussão sobre a “natureza do juízo”, se a decisão sobre o impeachment tem caráter “jurídico” ou “político”. Trata-se, sim, como observamos, de uma questão de autoridade, é dizer, saber a quem compete decidir, ou qual instituição está melhor posicionada para decidir, uma questão constitucional de tamanha magnitude.
Sobre esse ponto, como apontamos, há farta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e esta parece ser uníssona.
A exigência de que as decisões da Câmara e do Senado sejam finais – é dizer, tenham a última palavra sobre o mérito do pedido – não implica, no entanto, que não sejam aplicáveis a essas decisões os vícios de forma e conteúdo que atuam como requisitos de validade para atos administrativos em geral. Uma decisão de admissibilidade tomada por agente incompetente, por exemplo, pode ser facilmente anulada pelo Judiciário.
Sobre a insusceptibilidade de controle meritório pelo Poder Judiciário, é pertinente a analogia realizada pelo Ministro Luís Roberto Barroso entre a competência do Supremo Tribunal Federal para realizar o controle da legalidade do impeachment e a competência de um árbitro de futebol:
“Não é papel do Supremo fazer escolhas substantivas entre alternativas políticas. Esse é um papel da soberania popular, em primeiro lugar, e do Congresso Nacional, em segundo lugar. Portanto, o nosso papel aqui é um papel de um árbitro de futebol, que aplica as regras e, quanto menos aparecer, melhor. O papel do Supremo aqui é o de preservar as instituições, promover justiça e resguardar a segurança jurídica à luz da melhor interpretação possível da Constituição e das leis. E segurança jurídica significa normas claras, estáveis e fixadas anteriormente aos fatos”.[33]
Não obstante, nem por isso não está excluída, por uma espécie de a priori lógico ou princípio absoluto, a possibilidade de controle judicial de constitucionalidade de atos praticados durante o processo de impeachment, pois a atribuição de autoridade para realizar, de maneira final, um juízo de mérito sobre a acusação de crime de responsabilidade não implica uma autoridade para fazê-lo por qualquer procedimento ou para realizar esse juízo com “abuso de poder” ou desvio de finalidade.
Nesse sentido, o voto do Ministro Celso de Mello na ADPF 378 é contundente ao rejeitar a tese de que a denominada “doutrina das questões políticas” poderia ser invocada contra a revisão judicial de violações de direitos por parte dos corpos legislativos durante o processo de impeachment. Afirma o Ministro que “a discrição dos corpos legislativos não se legitima quando exercida em desarmonia com os limites estabelecidos pelo estatuto constitucional, eis que as atividades dos Poderes do Estado sofrem os rígidos condicionamentos que lhes impõe a Constituição da República, especialmente nas hipóteses de inflição de sanção punitiva, ainda que de índole política, como a decretação da perda do mandato presidencial”.[34]
Em outros termos:
“É imperioso assinalar, portanto, em face da alta missão de que se acha investido o Supremo Tribunal Federal, que os desvios jurídico-constitucionais eventualmente praticados pelas Casas legislativas – mesmo quando surgidos no contexto de processos políticos – não se mostram imunes à fiscalização judicial desta Suprema Corte, como se a autoridade e a força normativa da Constituição e das leis da República pudessem, absurdamente, ser neutralizadas por estatutos meramente regimentais ou pelo suposto caráter “interna corporis” do ato transgressor de direitos e garantias assegurados pela própria Lei Fundamental do Estado”.[35]
No pensamento do Ministro, no regime democrático “nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo – é imune à força da Constituição e ao império das leis. Uma decisão judicial que restaure a integridade da ordem jurídica e que torne efetivos os direitos assegurados e os princípios contemplados nas leis e na própria Constituição da República não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já proclamou, em unânimes decisões, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (RTJ 175/253, Rel. Min. Octavio Gallotti – RTJ 176/718, Rel. Min.Néri da Silveira, v.g.)”.[36]
Levando adiante esse tipo de raciocínio, alguns autores chegaram a sustentar que competiria ao Poder Judiciário revisar o juízo do Presidente da Câmara, na fase preliminar, ou do Plenário, na fase posterior, acerca do requisito da “justa causa” para admissão da Denúncia por crime de responsabilidade. É essa a posição dos juristas Alexandre Bahia, Marcelo Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, que defendem a viabilidade de um controle judicial sobre a decisão do Presidente quando o fato relatado na Denúncia obviamente não consistir em crime de responsabilidade, por ausência de tipicidade. Nesse sentido, argumentam os autores:
“Enquanto a ADPF 378 focou-se no aspecto formal (procedimental) do impeachment, neste artigo nos focamos nesse aspecto de Direito Material (Substantivo), a saber, aquilo que pode ou não ser considerado causa de impeachment. É nossa conclusão, dado o caráter penal dos crimes de responsabilidade (cf. Súmula 722 do STF), que só podem ser os fatos taxativamente tipificados como tais pela Lei do Impeachment. Taxatividade que se sustenta ainda que em suposto caráter não-penal do impeachment (para quem disso discordar), ante o parágrafo único do art. 85 da CF/88 exigir que lei especial defina (taxativamente) os crimes de responsabilidade. Logo, o que se defende aqui é que o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional de trancar a ação de impeachment, por atipicidade da conduta imputada (logo, por ausência de requisitos materiais para instauração de um processo de impeachment), caso ela (conduta) não se enquadre no rol taxativo de crimes de responsabilidade legalmente fixado (da mesma forma que a Justiça pode trancar uma ação penal, por atipicidade da conduta: seja pelo caráter penal dos crimes de responsabilidade, seja pelo seu caráter “taxativo não-penal”, para os que negarem aquele). Ou, caso tenha havido imposição pelo Senado de impeachment por fato atípico, defende-se aqui que o STF tem o dever constitucional de declarar a nulidade de impeachment decretado por fato materialmente atípico”.[37]
Embora pressuponha uma mudança radical na doutrina historicamente aceita pelo Supremo Tribunal Federal, essa tese goza de uma plausibilidade inicial, pois o próprio Supremo Tribunal Federal tem reconhecido que o juízo da Câmara dos Deputados, em que pese o seu relevante conteúdo político, compreende também uma valoração da “justa causa” para a Denúncia, que constitui um elemento de análise que não estava reconhecido, ao menos de forma expressa, pela legislação processual penal vigente à época da promulgação da Lei 1.079/1950.
No caso concreto do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, essa interpretação goza de uma atratividade inicial ainda maior porque o conteúdo da Denúncia em tramitação foi reconhecido pela comunidade jurídica como extremamente frágil, já que os únicos fatos apontados como “crimes de responsabilidade” atribuídos à Sra. Presidente são a prática de “pedaladas fiscais” (isto é, atrasos de repasses a bancos públicos para quitação de despesas com programas sociais custeados por esses bancos) e a edição de “decretos abrindo créditos suplementares” antes da aprovação da lei que revisou a meta fiscal do orçamento (ampliando-a para permitir a abertura de tais créditos suplementares).
Ainda que esses fatos possam ser considerados irregularidades contábeis, que podem levar a uma “aprovação com ressalvas” (e, para alguns, “reprovação”) de contas de um agente político, daí não se infere que tal irregularidade possa ser tipificada como “crime de responsabilidade” para fins de caracterização do instituto do impeachment na Constituição Federal de 1988. É que o impedimento, no direito brasileiro, se diferencia do recall porque pressupõe que o chefe do executivo tenha cometido um ato ilícito subsumível às normas previstas no artigo 85 da Constituição e na legislação que o regulamenta, que exigem mais do que essas simples irregularidades contábeis para sua caracterização. Os melhores argumentos que conseguimos encontrar, sobre o mérito deste pedido, estão com os que sustentam que as denominadas “pedaladas fiscais” não constituem operações de crédito não autorizadas, já que operações de crédito necessariamente pressupõem a transferência da propriedade dos recursos financeiros da instituição financeira para o mutuário, e não se confundem com meros passivos decorrentes de mora no adimplemento de obrigações de natureza contratual.[38] Da mesma forma, a simples publicação de um decreto abrindo novos créditos suplementares não pode ser caracterizada como crime de responsabilidade contra a lei orçamentária, uma vez que a verificação da obediência aos limites de gastos fixados no orçamento deve ser apurada no final do exercício financeiro, e não durante a sua execução, quando as metas fiscais estabelecidas ainda são passíveis de revisão pela legislação federal.[39]
Sem embargo, é difícil imaginar que a tese da revisabilidade judicial da decisão do Presidente da Câmara (ou do Plenário) que reconhece a presença do requisito da “justa causa” venha a ser adotada em um futuro próximo pelo Supremo Tribunal Federal, e há boas razões para que esta corte mantenha a sua “doutrina oficial” segundo a qual a ausência de previsão expressa de revisão judicial, no texto da Constituição, impede a reapreciação pelo Judiciário não apenas do julgamento final acerca da procedência da acusação de crime de responsabilidade, mas também o juízo próprio de cada Casa do Legislativo acerca da admissibilidade da Denúncia.
Ainda que o juízo sobre o impeachment seja mais do que um juízo puramente político, exigindo a configuração de violação a normas jurídicas tipificadas em crimes de responsabilidade, nada há na “natureza das coisas” que torne impossível que a titularidade desse juízo seja atribuída a uma das Casas do Congresso Nacional, sem possibilidade de revisão judicial da qualificação jurídica atribuída pelo Poder Legislativo, no caso concreto, às denominadas “pedaladas fiscais” e à abertura de créditos suplementares antes da revisão da meta fiscal. A Separação dos Poderes não exige, necessariamente, que apenas o Judiciário exerça funções judicantes e apenas o Legislativo exerça funções normativas. Tanto é assim que há uma importante quantidade de situações em que o Executivo e o Judiciário, seja sozinhos ou em conjunto com outros poderes, exercem atividades legislativas (no caso do primeiro, por meio de medidas provisórias, leis delegadas, tratados internacionais e alguns tipos específicos decretos autorizados pela Constituição, e no caso do segundo, por meio de súmulas – vinculantes ou não –, precedentes normativos e as resoluções que aprovam seus regimentos internos).
Não parece absurdo, portanto, nem o fato de que a autorização da Câmara seja considerada um ato privativo e insusceptível de revisão judicial, e nem que a última palavra sobre o mérito do impeachment seja do Senado Federal. Basta que a Constituição tenha decidido fazê-lo, como se acredita ter sido o caso.
Por conseguinte, mesmo estando convencido de que pedaladas fiscais e decretos abrindo créditos suplementares sejam coisas rotineiras e meras irregularidades contábeis, um juiz coerente poderia entender (como historicamente fez o STF) que não cabe ao Judiciário impugnar a validade do ato do Congresso que instaura e aprova um impeachment por esses motivos.
De acordo com a jurisprudência do STF, os titulares do juízo político-jurídico sobre o impeachment são a Câmara dos Deputados (no momento da admissibilidade da denúncia e na decisão de “autorizar” a instauração do processo) e o Senado Federal (em um segundo juízo de admissibilidade e no juízo de mérito sobre a procedência do pedido). O juízo sobre o mérito de um impeachment é das Casas que compõem o Congresso Nacional, e somente das casas que compõem o Congresso Nacional.
Tendo em vista essa última conclusão, há boas razões para afirmar (ainda que estejamos convencidos de que cassar o mandato de um presidente da república sem crime de responsabilidade seja um ato ilícito de extrema gravidade, que pode ser classificado sem exagero como uma ruptura na ordem constitucional) que não é contraditório supor que essa cassação – caso venha a ocorrer – deva ser mantida pelo Supremo Tribunal Federal. Para tanto, basta se assumir a premissa de que a competência para julgar a Presidente da República é privativa do Senado Federal, sem qualquer previsão de revisão judicial dessa decisão.
Ainda que alguns possam pensar que essa interpretação da lei e da Constituição incentiva a hipocrisia, pois não prevê um remédio jurídico eficaz para impedir que pelas vias transversas o Congresso Nacional faça um “recall” sob o pretexto de que está fazendo um “impeachment”, é coerente pensar que não cabe ao Judiciário corrigir esse defeito estrutural da Constituição Brasileira. Somente ao Congresso Nacional, em tempos de normalidade institucional (e não no calor da crise política), é que se deve admitir a possibilidade de corrigir esse defeito da Constituição de 1988, por meio da promulgação de uma Emenda Constitucional para fins de adotar uma das alternativas seguintes: ou (1) criar o instituto do “recall” e acabar de vez com essa hipocrisia, ou (2) criar um procedimento de impeachment menos arbitrário e sujeito a manipulações, com maior grau de fiscalização do Judiciário.
Isso significa, então, que não é possível em qualquer hipótese uma situação em que a decisão do Presidente da Câmara seja passível de revisão judicial?
Acreditamos, em que pese a aparente radicalidade da doutrina majoritária e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que há fundamento para a revisão judicial não apenas na fiscalização do rito processual do impeachment estabelecido na ADPF 378 pelo Supremo Tribunal Fedederal. Essa revisão, como haveremos de apontar nos próximos parágrafos, é restrita a casos extremamente raros e excepcionais.
Quando se afirma que cabe ao Supremo Tribunal Federal realizar um controle sobre o Devido Processo Legal, mas não sobre o mérito da decisão político-jurídica da Câmara ou do Senado Federal, com isso se está afirmando que não é possível à Corte rever o conteúdo jurídico ou político da decisão, e com isso substituir os critérios adotados pelas Casas do Poder Legislativo para julgar como “crime de responsabilidade” um determinado ato praticado pela Presidente da República no exercício de seu cargo.
Não cabe à Corte – como reiteramos várias vezes ao longo deste Parecer – dizer se esse juízo foi “certo” ou “errado”, nem mesmo para a verificação do cumprimento do requisito da justa causa.
Não cabe, tampouco, como reconheceu de maneira unânime o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 378, anular a decisão do Presidente da Câmara dos Deputados (ou, eventualmente, do Relator da Comissão Especial, se for o caso) com base em alegações de quebra do princípio da “imparcialidade” ou de “suspeição” ou “impedimento” para apreciar a Denúncia formulada contra a Presidente da República.[40]
Em que sentido se poderia excepcionar, portanto, a orientação de que é livre de apreciação do judiciário uma decisão do Presidente que reconheça a presença do requisito da justa causa no processo de impedimento?
Parece-nos que há pelo menos uma hipótese plausível para tal revisão, que tem lugar quando houver prova inequívoca, pré-constituída e robusta de que a decisão estaria contaminada por abuso de poder.
Tal hipótese foi reconhecida “em tese” em um precedente histórico do STF mencionado pelo próprio Relator da Comissão Especial para dar Parecer em Processo de apuração de Crime de Responsabilidade contra a Presidente Dilma Rousseff. Segundo o Relatório, o STF teria decidido, no MS 20.941, que “a revisão da decisão do Parlamento, pelo Poder Judiciário, só pode ocorrer em situações excepcionais, quando presente induvidosa ilegalidade e abuso de poder, aferível a partir de fatos absolutamente certos e inequívocos”.[41]
E a mesma possibilidade de controle do “abuso de poder” foi admitida também, ainda que em obiter dictum, no Voto do Ministro Celso de Mello proferido na ADPF 378, onde se lê com clareza:
“Com a finalidade de obstar que o exercício abusivo das prerrogativas estatais possa conduzir a práticas que transgridam o regime das liberdades públicas, que sufoquem, pela opressão do poder, os direitos e garantias individuais, inclusive aqueles assegurados às minorias nas Câmaras legislativas (como o direito de oposição), e que ofendam postulados essenciais da ordem constitucional, atribuiu-se ao Judiciário a função eminente de controlar os excessos cometidos por qualquer das esferas governamentais, quando seus órgãos, agentes ou, até mesmo, grupos majoritários que atuam no Parlamento, p. ex., incidirem em abuso de poder ou em desvios inconstitucionais no desempenho de sua competência institucional”.[42]
Não parece estar excluída, portanto, a anulação de uma Denúncia quando esta, independentemente do erro ou acerto na avaliação sobre a “justa causa” da Denúncia, é praticada com um desvio de finalidade de tal monta que possa ser objetivamente comprovado pela Denunciada. O desvio de finalidade, como explicam Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero, é uma espécie do gênero dos “ilíticos atípicos”, que se contrapõem aos “ilíticos típicos” porque os primeiros são “condutas contrárias a uma regra”, enquanto os últimos são condutas contrárias a um princípio obrigatório” e, por assim dizer, “invertem o sentido da regra”.[43]
Nesse sentido, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que “o desvio de poder não é mácula jurídica privativa dos atos administrativos. Pode se apresentar, igualmente, por ocasião do exercício da atividade legislativa ou jurisdicional. Ou seja: leis e decisões judiciais são igualmente suscetíveis de incorrer no aludido vício, porquanto umas e outras são, também, emanações das competências públicas, as quais impõem fidelidade às finalidades que as presidem”.[44] Como se vê, nesse entendimento, qualquer ato de soberania, é dizer, qualquer ato praticado “em nome do povo”, pode ser anulado se restar comprovado o desvio de poder ou desvio de finalidade, que constitui o “mau uso da competência que o agente possui”,[45] ou a “violação ideológica, ou, por outras palavras, a violação moral da lei”.[46]
Na hipótese de desvio de finalidade, que se materializaria, entre outras situações análogas, quando uma denúncia é – de acordo com prova robusta, pré-constituída e inequívoca – fruto de crimes como extorsão e ameaça, é possível se anular uma decisão do Presidente da Câmara ou um Relatório da Comissão Especial que autorize ou recomende a autorização de instauração de processo de apuração de crime de responsabilidade contra o ocupante do cargo de Presidente da República. Proteger o Presidente da República contra esse tipo de violência institucional é um dever que o Judiciário tem para proteger a democracia.
6. Em caso de múltiplos pedidos de impeachment contra a Presidente da República ou o Vice-Presidente da República por atos cometidos no exercício da Presidência, é possível a revisão judicial do Despacho do Presidente da Câmara que recebe (ou deixa de receber) a Denúncia ou da decisão Plenário que autoriza (ou deixa de autorizar) o Senado a instaurar o Processo?
a. Estão corretos, do ponto de vista da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os argumentos aduzidos pelos Srs. Ministros Marco Aurélio de Mello, na liminar deferida no MS 34087, e Celso de Mello, na decisão monocrática do MS 34099?
b. É possível se exigir coerência do Presidente da Câmara entre decisões de pedidos fundados em fatos idênticos, contra a Presidente e o Vice-Presidente?
c. Quais as consequências jurídicas dos vícios apontados nos itens anteriores?
Resposta ao item “a”
A questão apresentada neste item se torna interessante diante da apresentação, nas últimas semanas, de pedidos de impeachment contra o Vice-Presidente da República Michel Temer, com fundamento em razões análogas às que foram aduzidas pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, para receber, pouco tempo antes, a Denúncia interposta contra a Presidente da República Dilma Roussseff.
Para responder a esses quesitos não iremos, por ser impossível nesse Parecer, adentrar na questão fática de se os pedidos podem ser considerados “idênticos” e de se estão de fato presentes, na realidade, as razões que eu tomarei em conta para a construção de uma resposta hipotética a esses quesitos.
Comecemos pela análise do item “a”, que se refere às decisões monocráticas proferidas pelos Ministros Celso de Mello, no MS 34.099, e Marco Aurélio de Mello, no MS 34.087, ambos em tramitação no Supremo Tribunal Federal.
No MS 34.087, o Ministro Marco Aurélio proferiu uma decisão deferindo uma Medida Liminar para determinar ao Presidente da Câmara dos Deputados a constituição de uma Comissão para apreciar uma Denúncia formulada por um advogado mineiro contra o Vice-Presidente da República Michel Temer, por prática de crime de responsabilidade consistente em ter editado decretos não-numerados abrindo créditos orçamentários fora dos limites globais de endividamento previstos pela Lei Orçamentária e pela Lei de Diretrizes Orçamentárias vigentes ao tempo da promulgação desses decretos. Embora não tenhamos tido acesso ao conteúdo dessa Denúncia, na Câmara dos Deputados, assumiremos, para fins de argumentação, que se trata exatamente do mesmo caso que levou à instauração, no âmbito da Câmara dos Deputados, de um processo para analisar um pedido de impeachment contra a Presidente da República Dilma Rousseff.
No MS. 34.099, por sua vez, o Ministro Celso de Mello proferiu uma decisão indeferindo uma Medida Liminar e não conhecendo um Mandado de Segurança que pleiteava algo semelhante. Assim como no caso relatado no parágrafo anterior, o Presidente da Câmara dos Deputados havia indeferido de plano uma Denúncia de crime de responsabilidade ao fundamento de que estaria ausente o requisito da justa causa para processar o Vice-Presidente Michel Temer.
Comentemos, separadamente, cada uma das decisões.
A decisão do Ministro Marco Aurélio surpreendeu a grande maioria da comunidade jurídica nacional. O Ministro entendeu, em sua decisão, que a análise do Presidente da Câmara dos Deputados deve estar limitada a certos requisitos formais e, portanto, não poderia adentrar no mérito da Denúncia nem mesmo para verificar a observância do requisito da justa causa para persecução do crime de responsabilidade.
Entendeu o Ministro Marco Aurélio, ao apreciar a liminar, que seria aplicável o seguinte raciocínio:
“Tendo em vista a disciplina dos artigos 14, 15, 19 e 22 da Lei n. 1.079/1950, cabe ao Presidente a análise formal da denúncia-requerimento.
A ele não incumbe, substituindo-se ao Colegiado, o exame de fundo. Entender-se em sentido contrário implica validar nefasta concentração de poder, em prejuízo do papel do colegiado, formado por agremiações políticas diversas. Como fiz ver ao votar na ação de descumprimento de preceito fundamental nº 378/DF, não se pode desconsiderar a ênfase dada pela Constituição Federal aos partidos políticos, a refletir na composição da Comissão Especial referida no citado diploma legislativo e no § 2º do artigo 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
Os documentos que instruem a peça primeira permitem concluir pelo desrespeito aos parâmetros relativos à atuação do Presidente da Casa Legislativa, pois, embora tenha reconhecido, de maneira expressa, a regularidade formal da denúncia, procedeu a verdadeiro julgamento singular de mérito, no que consignou a ausência de crime de responsabilidade praticado pelo Vice-Presidente da República, desbordando, até mesmo, de simples apreciação de justa causa, presente a fundamentação e conclusão do ato impugnado”.[47]
Essa decisão, salvo melhor juízo, nos parece equivocada porque não observa com o devido rigor o rito fixado pelo STF no julgamento da ADPF 378, que foi objeto de análise na resposta ao Quesito n. 2 deste Parecer.
Em nosso entendimento, que coincide com a orientação firmada pelo STF na ADPF 378, há na Câmara dos Deputados duas fases distintas em que ocorre uma apreciação do requisito da justa causa: 1) uma primeira fase, consistente na análise monocrática do Presidente, que pode ser objeto de recurso ao Plenário caso o Denunciante não concorde com o conteúdo da decisão; e 2) uma segunda fase, em que a Comissão Especial apresenta o seu Parecer ao Plenário, que tem autoridade para dar a palavra final sobre a autorização ao Senado para processar o Denunciado por crime de responsabilidade.
A decisão do Ministro Marco Aurélio, no entanto, inverte essa lógica. Ela entende que o Presidente da Câmara, no juízo preliminar, não pode avaliar a presença do requisito da justa causa, e tem necessariamente que instaurar uma Comissão Especial para fazê-lo, ainda que esteja plenamente convencido de que a denúncia é inepta ou insubsistente.
Essa decisão sofreu, por isso, uma dura crítica da muitos juristas, inclusive alguns dos maiores críticos ao impeachment da Presidente Dilma Rousseff e alguns dos maiores defensores do controle jurisdicional de constitucionalidade para anular o ato de recebimento da denúncia contra a Presidente. Nesse sentido, Alexandre Bahia, Bernardo Gonçalves Fernandes, Diogo Bacha e Marcelo Cattoni de Oliveira apresentaram a seguinte objeção, que nos parece altamente plausível:
“A decisão do Ministro Marco Aurélio não resiste a uma análise de coerência e integridade e nem a uma mera leitura sistemática da Constituição da República, da lei 1.079/50, do RICD e do Código de Processo Penal, além de trazer um sério risco jurídico para a ampla defesa e para a estabilidade das instituições. Vale dizer, se o Presidente da Câmara dos Deputados somente analisa a denúncia sob o ângulo formal, então por óbvio o Presidente da Câmara dos Deputados não poderá restringir a acusação no despacho que encaminha a denúncia para a Comissão Especial, podendo a Comissão Especial analisar outros aspectos que não estão devidamente recebidos na denúncia. Ademais, a pergunta que resta é: todas as posteriores denúncias que tenham os requisitos formais preenchidos devem ser recebidas? Acaso o entendimento da liminar prevaleça, a Câmara dos Deputados terá uma única função constitucional, inviabilizando todas as outras: analisar as denúncias de crime de responsabilidade contra os Presidentes da República?”[48]
Essa crítica, a nosso ver, parece muito bem construída e chama a atenção não apenas para o risco que a liminar concedida pode oferecer para o Devido Processo Legal (na medida em que o acusado não tem como saber, no despacho inicial, contra quais aspectos da Denúncia ele tem que se defender), mas também, e principalmente, para os efeitos sistêmicos que essa liminar gera para todas as outras Denúncias que eventualmente venham a ser apresentadas contra a Presidente ou o Vice-Presidente da República.
É fato público e notório que a crise política por que passa o nosso país tem produzido um número alarmante de pedidos de impeachment contra a Presidente, contra o Vice-Presidente da República e até mesmo contra Ministros dos Supremo Tribunal Federal.
O raciocínio empregado na decisão do Ministro Marco Aurélio, se generalizado, pode provocar efeitos sistêmicos desastrosos, aumentando substancialmente os “custos de decisão” e os riscos de decisões equivocadas, inviabilizando uma apreciação adequada de todas as denúncias (pela Comissão Especial e pelo Plenário da Câmara), e interferindo de maneira perigosa no funcionamento interno da Câmara dos Deputados.[49]
Como explica Richard Posner – um dos mais entusiasmados defensores de um modelo “pragmatista” de aplicação do direito –, uma reflexão cuidadosa sobre os “efeitos sistêmicos” das decisões judiciais “significa uma consideração adequada (não excludente, nem limitadora de análises de custo-benefício) para os valores políticos e sociais da continuidade, coerência, generalidade, imparcialidade e previsibilidade na definição e na administração dos direitos e deveres jurídicos. Ela reconhece a desejabilidade não de que se extinga, mas de que se circunscreva a discricionariedade judicial”.[50]
Consideramos, assim, que os fundamentos da decisão liminar do Ministro Marco Aurélio de Mello no MS 34.087 não resistem a uma análise crítica dos seus “efeitos sistêmicos”, e por isso não devem ser aceitos como adequados.
Não devem ser aceitos, também, porque abalam os principais argumentos de defesa do processo de impeachment instaurado contra a Presidente da República, já que tornam não-vinculantes para a Comissão Especial os juízos de admissibilidade realizados pelo Presidente da Câmara na fase inicial.[51]
Um dos efeitos sistêmicos mais graves que a liminar do Ministro Marco Aurélio apresenta, com efeito, é o de tornar sem efeitos os argumentos que aduzimos na resposta apresentada ao Quesito n. 3 deste Parecer.[52]
Esses maléficos efeitos sistêmicos não ocorrem, por sua vez, quando tratamos da Decisão Monocrática prolatada pelo Ministro Celso de Mello no MS 34.099, que indeferiu a petição inicial e não conheceu um Mandado de Segurança que também pedia para que se ordenasse ao Presidente da Câmara receber uma Denúncia de impeachment contra Michel Temer.
Diferentemente do Ministro Marco Aurélio (no MS 34.087), o Ministro Celso de Mello (no MS 34.099) reconheceu, de maneira absolutamente correta, que cabe ao Presidente da Casa realizar não apenas uma apreciação formal dos requisitos processuais do pedido, mas verificar também o cumprimento da exigência de justa causa para processamento do feito, antes de enviar a Denúncia a uma Comissão Especial.
Esse raciocínio se mostra alinhado de maneira precisa à orientação assentada pelo Supremo Tribunal na ADPF n. 378 sobre o rito do impeachment na Câmara dos Deputados, de que tratamos em nossa resposta ao Quesito n. 2 deste Parecer.
A fundamentação da decisão do Ministro Celso de Mello, no entanto, não pode ser considerada inteiramente livre de vícios jurídicos, pois guarda importantes incoerências com o Voto que ele próprio proferiu no julgamento da ADPF 378.
Com efeito, como apontamos na resposta ao Quesito n. 5, o Voto do Ministro Celso de Mello na ADPF 378 apresentou excelentes argumentos em favor da tese, que nos pareceu plausível e foi defendida neste Parecer, de que a decisão do Presidente da Câmara que recebe uma denúncia de crime de responsabilidade contra a Presidente pode ser anulada pelo Judiciário se houver uma robusta prova de desvio de poder ou desvio de finalidade nesta decisão. Como explica de maneira precisa o Ministro Celso de Mello, em seu Voto na ADPF 378, “atribuiu-se ao Judiciário a função eminente de controlar os excessos cometidos por qualquer das esferas governamentais, quando seus órgãos, agentes ou, até mesmo, grupos majoritários que atuam no Parlamento, p. ex., incidirem em abuso de poder ou em desvios inconstitucionais no desempenho de sua competência institucional”.[53]
A competência para anular atos ilegais do Presidente da Câmara ou da Comissão Especial do impeachment não estaria adstrita, portanto, aos casos de violação ao rito do impeachment, mas compreenderia também, em casos excepcionais, lastreados em prova robusta, a anulação de tais decisões quando elas houvessem sido praticadas com base em um “abuso de poder”.
O raciocínio aduzido pelo Ministro Celso de Mello no MS 34.099, no entanto, desmente de maneira perigosa todos os avanços dessa sofisticada argumentação aduzida por ele próprio na ADPF n. 378. Na decisão liminar, o Ministro parece retroceder à tão criticada tese das “questões interna corporis”, e sustenta que a decisão do Presidente da Câmara, por ter sido tomada com fundamento no regimento interno da casa, “exauriu-se no domínio estrito do regimento legislativo, circunstância essa que torna inviável a possibilidade jurídica de qualquer atuação corretiva do Poder Judiciário, constitucionalmente proibido de interferir na intimidade dos demais Poderes da República, notadamente quando provocado a invalidar atos que, desvestidos de transcendência constitucional, traduzem mera aplicação de critérios regimentais”.[54]
Retrocedeu-se, assim, à tão-criticada tese das “questões interna corporis”, que ele próprio havia criticado com maestria em seu voto na ADPF 378.
Analisando, portanto, as duas decisões liminares, dos Ministros Marco Aurélio (no MS 34.087) e Celso de Mello (no MS 34.099), verificamos que ambas podem ter decidido de maneira correta os casos em questão, mas o fizeram pelas razões erradas, o que compromete de maneira grave a sua legitimidade.
De um lado, a decisão do Ministro Celso de Mello foi correta quanto ao seu resultado porque ela rejeita a tese genérica de que pode o Poder Judiciário, sem qualquer argumento especial, entrar no mérito do recebimento da denúncia e determinar o seu processamento pelo Presidente da Câmara.
De outro lado, pensamos também que é possível, diante de certas circunstâncias excepcionais (que eu tentarei especificar no subitem abaixo), defender o resultado da decisão do Ministro Marco Aurélio, pelas razões que examinaremos na resposta ao subitem “c” deste Quesito.
Resposta ao item “b”
A resposta a este item envolve um raciocínio mais complexo do que o utilizado para responder aos quesitos anteriores. O contexto fático em que essa pergunta é formulada é absolutamente anormal e nunca havia sido, nem mesmo de maneira hipotética (em obiter dictum), discutido no Supremo Tribunal Federal.
Nem por isso, no entanto, esse problema pode deixar de ser enfrentado, pois suas consequências práticas são cruciais para a integridade e a coerência sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro.
Importante consignar, de início, uma premissa inicial do nosso raciocínio.
Ao indagar se podemos falar em um dever para o Presidente da Câmara dos Deputados de manter algum tipo de coerência entre, de um lado, a decisão que reconheceu justa causa para instaurar processo contra a Presidente Dilma Rousseff e, de outro lado, a decisão que, diante do mesmo tipo de acusação, não reconheceu o mesmo requisito para instaurar um processo contra o Vice-Presidente Michel Temer, estamos pressupondo – como ponto incontroverso – que o STF deve manter a sua jurisprudência histórica e fiscalizar apenas o procedimento do impeachment, abstendo-se de substituir o juízo do Congresso Nacional sobre a legalidade das pedaladas fiscais e dos decretos mencionados por um juízo próprio destinado a anular a decisão política do Congresso sobre o mérito do pedido de impeachment.
É possível, diante dessa premissa, se falar em algum dever de “coerência” entre as duas decisões?
A pergunta se coloca, portanto, diante de um contexto específico em que uma determinada Denúncia já foi admitida pelo Presidente da Câmara contra a Presidente da República, e pouco tempo depois surge uma Denúncia idêntica contra o Vice-Presidente, por atos que ele praticou no exercício da Presidência. Seria possível exigir do Presidente da Câmara que as duas Denúncias recebessem o mesmo tratamento? Seria possível exigir, ao menos, que ambas fossem submetidas em conjunto à Comissão Especial, para que pudessem ser comparadas?
A hipótese que eu gostaria de explorar aqui é de que talvez se possa exigir do Presidente da Câmara a admissão e discussão de um pedido de impeachment contra o Vice-Presidente diante de certas condições, as quais necessariamente devem estar provadas pela parte interessada: o pedido terá procedência apenas se o fundamento do pedido de impeachment for exatamente o mesmo, e se estivermos diante da mesma acusação, baseada em fatos análogos, no mesmo lapso temporal relevante. O núcleo do argumento não implicaria, portanto, uma substituição do juízo realizado pela Câmara ou pelo Senado acerca da licitude dos fatos apontados no pedido de impeachment, mas apenas uma exigência de que esse juízo fosse aplicado de maneira coerente em relação a duas denúncias simultâneas (ou quase simultâneas, já que formuladas na mesma legislatura) por fatos idênticos.
Trata-se, portanto, da mesma situação fática que levou ao ajuizamento do Mandado de Segurança n. 34.087, cuja liminar foi julgada pelo Ministro Marco Aurélio, do STF, e comentada no item “a” deste Quesito.
Nosso objetivo, nas linhas que se seguem, é indagar se por acaso é possível imaginar um argumento melhor do que o fornecido pelo Ministro Marco Aurélio em sua decisão, para fins de manter a liminar que foi concedida no referido processo, determinando a instauração de um processo de impeachment contra o Vice-Presidente Michel Temer.
No caso específico do MS contra o Presidente da Câmara, esse argumento se torna ainda mais forte, pois não estamos falando aqui de um juízo já realizado pela Câmara ou pelo Senado, mas apenas de um ato do Presidente da Câmara que decidiu colocar em discussão um processo de impeachment contra um agente político (a Presidente da República) e rejeitar um pedido praticamente idêntico contra outro (o Vice-Presidente da República), atuando de forma seletiva para decidir sozinho qual agente será avaliado pela Casa e qual não será.
O fundamento primário do nosso raciocínio para forçar a Câmara a apreciar o pedido de impeachment contra o Vice-Presidente Michel Temer não seria, portanto, nenhuma cláusula específica do artigo 85 da Constituição, e nem muito menos da legislação infraconstitucional que disciplina as hipóteses de impedimento do Presidente da República. Não seria, tampouco, qualquer juízo político sobre a reprovabilidade das denominadas “pedaladas fiscais” ou sobre se a promulgação de decretos de créditos suplementares sem prévia autorização legislativa (na medida em que a revisão da meta fiscal sobreveio a esses decretos) constitui crime de responsabilidade. O único fundamento do pedido seria um princípio muito mais abstrato, mas nem por isso menos importante, que deriva diretamente do Princípio Republicano e está presente não apenas na Constituição Federal de 1988, mas em qualquer Ordem Jurídica Democrática: o princípio da igualdade substancial, que estabelece o “direito a uma aplicação consistente dos princípios em que as nossas instituições políticas se apóiam”.[55]
Pode-se falar, em nosso sistema jurídico, que o Presidente da República tem esse direito?
A existência desse direito à “aplicação consistente dos princípios fundamentais” que subjazem à legislação não é incontroversa, mas pode ser estabelecida com uma reflexão político-moral sobre os fundamentos do próprio direito e da ordem constitucional. É necessário um argumento filosófico para estabelecê-lo, mas nem por isso esse direito deixa de ter conteúdo jurídico e caráter vinculante em nossa democracia constitucional.
Entre os que defendem a existência desse direito está o filósofo do direito norteamericano Ronald Dworkin, que é um dos pensadores de maior influência sobre a teoria do direito e o direito constitucional no Brasil.
Talvez um exemplo possa explicar o conteúdo do direito de que estamos tratando. Dworkin tenta explicar o fundamento desse direito a uma “aplicação do direito consistente em termos principiológicos” raciocinando a partir de um caso real decidido nos Estados Unidos pelo Justice Cardozo há 100 anos atrás, que versava sobre a responsabilidade civil por negligência em um acidente de trânsito. Embora o caso seja de direito privado, não guardando relação imediata com uma controvérsia constitucional sobre os pedidos de impeachment, é relevante para o nosso argumento pela seguinte razão: no exemplo, Dworkin sustenta que mesmo quando for possível aos autores do direito escolher qual deve ser o conteúdo da ordem política a que estamos submetidos, dessa escolha derivam direitos para todos, incluindo-se o direito de que essa ordem política seja consistentemente aplicada.
Imaginemos, para testar os argumentos de Dworkin, as seguintes hipóteses:
a) na ausência de previsão expressa na legislação, há um precedente judicial (assumido como vinculante) fixando a regra jurídica de que uma mãe que estiver presente no local de um grave acidente com o seu filho tem direito a uma reparação por danos morais decorrentes do impacto emocional causado pelo acidente com seu familiar, a serem suportados pelos motoristas que atuem com negligência para prevenir o acidente (por exemplo, conduzindo acima da velocidade permitida em uma via pública);
b) imaginemos que o juiz X, por alguma razão de cunho utilitarista que não é necessário especificar nesse momento, esteja convencido de que essa norma é injusta e causa um mal para a sociedade de modo geral; imaginemos, em outras palavras, que o juiz considere um erro a decisão que criou o precedente mencionado na letra “a”;
c) imaginemos agora uma situação análoga, mas não idêntica, à do caso regulado pelo precedente judicial invocado na letra “a”. Imaginemos que não se tratasse da mãe da vítima, mas da avó, ou então que a mãe da vítima não estivesse presente no local do acidente, mas tenha sofrido o choque emocional ao tomar ciência do acidente por meio de uma ligação telefônica.
Diante das premissas “a”, “b”, e “c”, deveria o juiz X – que está convencido de que a solução no precedente citado é equivocada – deferir a indenização pretendida no caso descrito na letra “c”?
A partir de uma reflexão abstrata sobre a natureza do direito e a teoria da decisão adequada para uma democracia constitucional, Dworkin sustenta que o juiz X estaria obrigado, em virtude da doutrina da “responsabilidade política do judiciário” que ele propõe, a estender o direito previsto no caso “a” para o caso “c”, ainda que ele esteja convencido de que a melhor solução do ponto de vista político ou moral seria não reconhecer esse direito em nenhum dos casos.
O exemplo demonstra que ao realizar juízos no âmbito da moralidade política, é possível (e, mais do que isso, desejável) que os julgadores (no caso os juízes) sejam capazes de aplicá-la de maneira consistente independentemente de sua moralidade pessoal ou de suas convicções acerca da correção da decisão tomada pelos órgãos de criação e aplicação do direito.
Segundo a concepção de direito de Dworkin, que mais tarde veio a ser cunhada como “Direito como Integridade” (Law as Integrity), existem direitos que só existem em virtude da história política de uma comunidade. Embora se reconheça que cada ordem política possa ter o conteúdo que os seus fundadores considerarem mais adequado, a existência de uma “obrigação geral de justiça nos atos de governo” estabelece para qualquer governo, em qualquer situação, uma obrigação de “tratar os seus cidadãos como iguais, como igualmente merecedores de consideração e respeito”.
Daí derivam, para Dworkin, duas responsabilidades concretas para qualquer agente estatal: 1) a responsabilidade de “ao criar uma ordem política, respeitar quaisquer direitos morais e políticos subjacentes que os cidadãos possam ter em virtude da igualdade genuína”; e 2) a “obrigação de estender qualquer ordem política que seja criada de maneira igual e consistente para todos os cidadãos”.[56]
Nesse sentido, no exemplo de Dworkin, a mãe que pleiteia o seu direito de receber a indenização no caso “c” tem o direito a recebê-la apenas porque ela tem o direito de ser tratada de maneira semelhante à mãe que recebera um benefício semelhante no caso “a”. O argumento pode ser formulado da seguinte maneira:
“Apesar de ela não ter direito a um regime jurídico sob o qual as pessoas na sua posição recebam indenizações, ela tem o direito de que o regime jurídico em vigor seja consistentemente aplicado a ela. Caso contrário, a sociedade falharia em fazer justiça segundo a sua própria concepção acerca do que a justiça exige, e isso constituiria uma falha em tratá-la com igual consideração e respeito. Por isso um dos seus direitos políticos teria sido violado”.[57]
Creio que uma linha de argumentação semelhante pode ser estabelecida para exigir do Presidente da Câmara, no momento em que ele decide se há requisitos mínimos para instaurar cada um dos processos de impeachment, uma aplicação coerente de sua própria doutrina acerca da legalidade das denominadas “pedaladas fiscais” e da necessidade de que a lei autorizativa de abertura de créditos suplementares tenha sido promulgada antes dos decretos que criaram tais créditos.
Da mesma forma que um juiz vinculado por precedentes pode (e deve), no âmbito do direito privado, ser capaz de diferenciar a moralidade política subjacente ao direito de sua comunidade da sua própria convicção moral sobre determinada matéria, o Supremo Tribunal Federal, caso siga sustentando a “doutrina oficial” (que sustenta que os juízos de mérito sobre o impeachment constituem matéria de competência exclusiva do Poder Legislativo, sem possibilidade de revisão judicial), pode (e deve) diferenciar o juízo de mérito sobre o impeachment dos seus próprios juízos sobre a reprovabilidade das denominadas “pedaladas fiscais” ou da edição de decretos suplementando certas dotações orçamentárias sem prévia aprovação legislativa de uma revisão nas metas fiscais. Em ambos os casos, o Poder Judiciário pode (e deve) exigir que esses juízos sejam consistentemente aplicados, sem qualquer tipo de casuísmo e seletividade.
É nesses termos que se pode imaginar alguma forma de controle de consistência entre as decisões, sem abrir mão do princípio fixado na jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal.
Ainda que o juízo político acerca dessa matéria seja exclusivo do Poder Legislativo, como supõe a “doutrina oficial”, e ainda que se suponha que o juízo político realizado pela Câmara ou o Senado no caso das contas da Presidente Dilma Rousseff tenha sido equivocado, ainda assim se poderia exigir de cada Casa do Congresso Nacional uma aplicação consistente de sua doutrina, pois não estamos aqui diante de um juízo puramente político sobre a continuidade do governo eleito pelo voto popular. Há importantes elementos jurídicos nesse juízo, que constitui um “ato de aplicação do direito” em que pese ele seja de competência exclusiva do Poder Legislativo. Embora cada Casa do Congresso Nacional tenha o direito de decidir sobre os processos de impeachment segundo os seus próprios juízos, elas têm também a correlata responsabilidade de aplicar consistentemente esses juízos para todos os cidadãos que estejam envolvidos.
A negação desse direito implicaria, do ponto de vista prático, um abalo severo no nosso presidencialismo. Como aduzimos acima, o sistema de governo presidencialista repousa sobre uma distinção sem a qual ele se desnatura e se transforma em um sistema de governo instável e perigoso do ponto de vista democrático: a distinção entre o impeachment e o recall. Enquanto o primeiro pressupõe que o mandato só pode ser cassado em vista da prática de um ato ilícito, que é punível de acordo com o “devido processo legal”, no último a decisão de cassar o mandato do chefe de governo é baseada única e exclusivamente em considerações de conveniência e oportunidade.
A perda do mandato, em um sistema presidencialista, pressupõe um “ato de aplicação do direito”, e não uma mera decisão de conteúdo discricionário. E é justamente por ser um “ato de aplicação do direito” (independentemente de ser esse ato de competência do Legislativo ou de qualquer outra instituição) que se pode exigir, sim, a observância de ao menos um requisito básico para que se possa falar em sua validade: “a referência a um parâmetro universalizável”.
Sem apelar para um princípio universalizável, nenhuma decisão jurídica, jamais, poderá ser minimamente justificada. Isso vale para todos os sistemas jurídicos, seja de common law ou de civil law. Mais ainda, isso vale para todos os julgamentos que obedeçam a um critério jurídico, por mais politizados que esses julgamentos sejam.
Quando se analisa uma decisão jurídica – ou uma decisão política que segue critérios jurídicos, se se preferir – fica claro que do ponto de vista do processo de raciocínio necessariamente se deve apelar para um princípio de universalizabilidade. O princípio da universalizabilidade, tido como um postulado para uma ordem jurídica inteligível, implica que em qualquer tipo de discurso prático nós sejamos capazes de expressar as máximas de nossa vontade de forma universal.[58] Ao resolver um problema jurídico concreto, “nós devemos nos comprometer” com a “proposição jurídica” implícita em nossa decisão, qualquer que seja a nossa resposta ao problema jurídico suscitado.[59]
Como tivemos oportunidade de aduzir em um escrito anterior,
“Qualquer que seja o sistema jurídico em questão, a referência a uma regra universal para solucionar um problema jurídico particular é um elemento indispensável da justificação jurídica, ainda que a enunciação em termos universais não esgote todos os problemas que podemos encontrar na fundamentação da decisão particular. Pouco importa se estamos diante de um sistema de common law ou de civil law. (...) Há uma conexão incindível entre as ideias de justificação e universalização. (...)
O princípio da universalizabilidade – que ganha expressão na exigência de se tratar ‘casos semelhantes de modo semelhante’ (justiça formal) – exige que toda decisão jurídica em que surjam disputas sobre o Direito ‘deva estar fundada em um regramento jurídico que não seja nem ad hoc e nem ad hominem’ [MacCormick 2005: 148]: ‘Para justificarmos [um ato, uma norma etc.] devemos reconduzir a decisão, defesa ou pretensão de alguém à asserção segundo a qual ‘porque os fatos F1, F2, ... , Fn estão presentes, o julgamento j deve ser pronunciado’. Mas esse ‘porque’ exige um comprometimento com a universalizabilidade’ [MacCormick 1987: 162]”.[60]
O problema da aplicação de uma norma jurídica envolve, sempre, um dever de apelar a critérios universais. Critérios de decisão jurídicos são, portanto, sempre e invariavalmente critérios submetidos a uma norma universal. Não serão critérios jurídicos se não forem universalizáveis.
Por essa razão, se as decisões sobre o impeachment, mesmo no âmbito da Câmara ou do Senado, não forem aplicadas segundo o princípio da universalizabilidade, é dizer, segundo um critério universalmente válido, essas decisões não têm mais nada que se possa chamar de “jurídico”. E com isso, a distinção entre “impeachment” e “recall” se esvanece por completo.
Se o critério da universalizabilidade não for aplicado pelas Casas do Poder Legislativo na justificação pública de seus juízos sobre um pedido de impeachment, o impeachment será, por essa única razão, uma ruptura institucional indevida, e não há absolutamente nenhuma razão para se impedir que o Judiciário possa fiscalizar a sua validade jurídica.
Talvez haja, portanto, um espaço importante para se realizar um “distinguishing” e excepcionar a orientação jurisprudencial do STF segundo o qual o Poder Judiciário não pode adentrar no mérito do juízo político da Câmara e do Senado Federal acerca do impeachment.
O argumento aqui defendido é, portanto, propositalmente colocado sob uma forma hipotético-condicional. Se restar comprovado que o pedido de impeachment formulado contra o Vice-Presidente Michel Temer tem os mesmos fundamentos que o pedido formulado contra a Presidente Dilma Rousseff, e que as duas situações são indistinguíveis com base em qualquer argumento válido fundado em critérios jurídicos, haverá um direito titularizado não apenas pela Presidente, mas também por todo o povo brasileiro, a que esses dois processos sejam julgados da mesma maneira, segundo a mesma medida e os mesmos parâmetros de decisão.
O fundamento do dever do Presidente da Câmara de colocar ambos os pedidos em discussão seria, portanto, a responsabilidade moral que cada agente político tem pelas interpretações que construímos do direito e do sistema político. Esse princípio da “reponsabilidade moral” pelas nossas interpretações está na raiz dessa exigência de que todos sejam tratados segundo critérios semelhantes. Trago, aqui, mais um exemplo de Dworkin, dessa vez em sua obra seminal “Justice for Hedgehogs”, onde ele comenta, por exemplo, a possibilidade de um juízo formulado na primeira e na terceira pessoa em um debate entre um crítico e o defensor do direito ao aborto:
“Eu posso julgar que as suas convicções (sobre o aborto) são seriamente equivocadas, mas ainda assim aceitar que você agiu com completa responsabilidade ao formá-las. Essa diferença é substancialmente erodida na primeira pessoa: eu não posso pensar que eu mesmo ajo de maneira responsável ao acreditar que o aborto é errado a não ser que eu acredite que o abordo é errado”.[61]
A perspectiva de análise que proponho para o Judiciário, em relação à decisão do Legislativo sobre o impeachment, é uma perspectiva construída na terceira pessoa.
Nesse sentido, apenas as duas Casas do Poder Legislativo poderiam formular um juízo na primeira pessoa sobre se uma “pedalada fiscal” ou um desses decretos que abrem créditos suplementares constitui uma hipótese de “crime de responsabilidade” contra o orçamento. Sem embargo, poderia o Supremo Tribunal Federal exigir que essas Casas (e, em particular, o Presidente delas, ao despachar um pedido de impeachment) ajam de maneira moralmente responsável ao formular esses juízos na primeira pessoa. Ele (o Judiciário) poderia, portanto, formular um juízo na terceira pessoa sobre se, à luz da própria doutrina moral aduzida pelo legislativo na fundamentação de sua decisão, o legislativo age de maneira moralmente responsável.
Os juízos na “terceira pessoa” feitos pelo Poder Judiciário teriam o tipo de “função de distanciamento” que, segundo Scott Shapiro, têm os enunciados jurídicos em geral. “Eles permite que nós falemos sobre a concepção moral de um sistema jurídico particular sem necessariamente endossar essa concepção”. A título de exemplo, se um sistema jurídico autoritário considera “juridicamente proibida” a prática de sodomia, podemos dizer que ela é juridicamente errada. Mas isso significa, obviamente, que ela seria errada apenas do ponto de vista jurídico. Do nosso próprio ponto de vista, é óbvio que podemos considerá-la moralmente permissível.[62]
Por isso, se poderia dizer que, em casos excepcionais, potencialmente inquinados de flagrante injustiça e uma arbitrária violação ao princípio da igualdade (na medida em que critérios “jurídicos” são modificados ad hoc e ad hominem), não parece de todo proibida uma fiscalização da coerência valorativa e da aplicação universal das regras, critérios e diretivas estabelecidas pelo próprio juízo político-jurídico nas Casas do Poder Legislativo.
Não acredito que haveria, aqui uma interferência na prerrogativa que as duas Casas do Congresso Nacional têm de realizar o seu próprio juízo acerca da validade jurídica de “pedaladas fiscais” ou de “decretos abrindo créditos suplementares antes da revisão da meta fiscal”. Esse juízo político estaria, sem dúvida alguma, livre de qualquer interferência judicial.
O Legislativo tem a prerrogativa de valorar, por meio de juízos próprios na primeira pessoa, os motivos que constituem causa suficiente para caracterização de crimes de responsabilidade, e o Presidente da Câmara, em especial, pode fazer um juízo preliminar sobre quais pedidos de impeachment serão examinados e quais devem ser liminarmente rejeitados, mas essa prerrogativa é condicionada aos princípios da moralidade e da impessoalidade. Não existe um direito, por parte do Presidente da Câmara, de utilizar as suas prerrogativas de maneira seletiva, para perseguir politicamente os seus adversários. A prerrogativa do legislativo de dar a última palavra sobre o impeachment só existe enquanto seja utilizada de maneira republicana e moralmente responsável, sob pena de uma autêntica fraude à democracia e à vontade popular. Não há lugar para casuísmo em um Estado Democrático de Direito.
Resposta ao item “c”
Esse último item “c” há de ser respondido com referência específica aos pedidos de impeachment, por fatos idênticos (ou assumidos como idênticos para fins de argumentação neste Parecer), interpostos contra a Presidente e o Vice-Presidente da República.
Trata-se de uma situação absolutamente excepcional, imprevista e imprevisível, que dificilmente seria considerada pelo Constituinte, pelos autores da Lei 1.079/1950, e por qualquer magistrado que tenha eventualmente atuado como Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Talvez por isso soe estranha a solução que eu proponho para esse problema jurídico. É muito improvável que, na história futura do Brasil, um Presidente e um Vice-Presidente da República pratiquem exatamente a mesma conduta, exatamente no mesmo período relevante, e sejam ambos denunciados, de maneira praticamente simultânea, pelos mesmos crimes de responsabilidade. É extremamente improvável, também, que uma Denúncia seja recebida e outra denúncia seja rejeitada em um intervalo tão curto de tempo, sem com que se pudesse apresentar uma justificação adequada para diferenciar as duas situações.
É esse o grau de excepcionalidade com o qual nós estamos lidando.
A solução que eu proponho, portanto, é construída apenas diante de um contexto de tamanha excepcionalidade.
E é uma solução que pressupõe, ao invés de impugnar, a validade da regra jurisprudencial, amplamente reconhecida no STF, de que não cabe ao Supremo Tribunal Federal revisar os critérios jurídicos utilizados pelo Poder Legislativo para apreciar o mérito de um pedido de impeachment.
Desde os meus primeiros escritos sobre o Direito, tenho defendido, com fundamento em autores como Herbert Hart, Neil MacCormick, Robert Alexy, Ronald Dworkin, Frederick Schauer, Joseph Raz, e tantos outros, entre os quais eu incluiria todos os teóricos contemporâneos do direito – seja no mundo continental europeu ou nos sistemas do common law – e todas as teorias da argumentação contemporâneas, que a superabilidade ou derrotabilidade (defeasibility) é uma característica impossível de ser eliminada por completo de qualquer norma jurídica (incluindo-se nesse conceito as mais estritas e particulares normas do tipo “regra”).
O direito deve ser vislumbrado, nessa perspectiva, como um “sistema de normas superáveis” (defeasible), como sustentei em um trabalho acadêmico submetido à Universidade do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2003.
Apesar de extensa, talvez em excesso, a citação abaixo sintetiza o pensamento que venho sustentando ao longo desses anos sobre a possibilidade de se inserir, excepcionalmente, exceções em regras jurídicas válidas:
“As normas jurídica são sempre superáveis, ou seja, pode haver, em certas situações, razões para que se deixe de aplicá-las, o que permite sustentar que a incidência de uma norma sobre um caso concreto não garante a sua aplicação (pois ela pode vir a ser excepcionada). Com efeito, é possível, devido à anormalidade de uma situação jurídica concreta, ir contra o que está expressamente estabelecido, recorrendo-se àquelas normas e valores que estão implicitamente consignados na ordem jurídica. De acordo com MacCormick [1995: 103], isso tem origem nos limites à precisão (accuracy) e à exaustividade (exhaustiveness) dos enunciados jurídicos (statements of the law). Nesta perspectiva, muitas das condições para a aplicação do direito (background conditions) permanecem implícitas, especialmente nos casos excepcionais onde a hipótese de incidência da norma é muito aberta em relação ao caso. Todo condicional jurídico está sujeito a exceções que surgem diante de um caso particular; assim, as condições para aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto são tão-somente “ordinariamente necessárias” e “presumidamente suficientes” para o surgimento das consequências jurídicas [MacCormick, 1995: 108], o que ocasiona a superabilidade prática das normas jurídicas.
Por superabilidade (defeasibility) entende-se aqui uma situação onde as condições para a aplicação de um princípio ou regra jurídica válida estão satisfeitas, mas mesmo assim a conclusão (gerada por essas normas) não é alcançada [Hage, 1997: 123]. Trata-se de um fenômeno que é sempre possível no raciocínio fundado em normas jurídicas, tendo em vista que um sistema jurídico perfeito é algo irrealizável, haja vista que seria necessário, para a sua criação, existir uma regra para cada comportamento humano imaginável. Os enunciados jurídicos são, por conseguinte, condicionados à manutenção da situação fática para a qual foram concebidos”.[63]
É diante dessa imprevisível excepcionalidade que se pode advogar, em nome da manutenção do Estado de Direito – que exige, impreterivelmente, a igualdade e a responsabilidade moral na aplicação do direito – que advogamos que a Liminar pleiteada no MS 34.087, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, deveria ter sido deferida não apenas em parte, como fez o Ministro Marco Aurélio de Mello, mas em sua integralidade.
Se estiverem presentes os pressupostos que eu delineei no item “b” deste Quesito, ela deveria ter sido deferida em sua integralidade, para submeter à Comissão Especial do impeachment as duas denúncias ao mesmo tempo (a denúncia apresentada contra Dilma Rousseff e a denúncia formulada contra Michel Temer). Trata-se de uma solução que admito ser absolutamente extraordinária e excepcional.
A excepcionalidade se justifica pela disparidade de tratamento que os dois processos de impeachment receberam, em decisões que foram tomadas por um Presidente da Câmara dos Deputados que cometeu, durante pouco mais de um ano de mandato, algumas das maiores arbitrariedades que um ocupante de qualquer cargo eletivo jamais cometeu no Brasil no período posterior à Constituição de 1988.[64]
Por mais que o Supremo Tribunal Federal tenha estabelecido, na ADPF 378, que o juízo político realizado na Câmara dos Deputados não exige o mesmo grau de imparcialidade que se exige do Poder Judiciário, e por mais que tenha estabelecido, também, que as hipóteses de “impedimento” e “suspeição” não são aplicáveis ao Presidente da Câmara dos Deputados, no juízo preliminar sobre a admissibilidade da denúncia contra a Presidente da República por crime de responsabilidade, não se pode inferir daí que um grau tão elevado de seletividade e de perseguição política seja admitido no Congresso Nacional.
A decisão do STF na ADPF 378, sobre a insindicabilidade judicial das alegações de falta de “imparcialidade” por parte do Presidente, não se aplica na hipótese de que estamos tratando.
Não estamos falando, aqui, de um juízo político-jurídico sobre a gravidade de um fato que se alega ser subsumível em um tipo de “crime de responsabilidade”. Reconhecemos, com inabalável convicção, que a diretiva do STF está correta ao estatuir que compete à própria Câmara estabelecer os critérios que devem ser aplicados em seu juízo de mérito sobre o pedido de impeachment.
Isso não está, definitivamente, em questão.
O único questionamento que se faz é que esses critérios devem ser aplicados coerentemente diante de casos graves e imprevisíveis como o que relatamos neste Quesito, é dizer: casos em que duas pessoas são acusadas pelos mesmos fatos, e uma delas é punida exemplarmente enquanto a outra é sumariamente absolvida, sem com que se possa apontar com clareza as razões para tal tratamento diferenciado.
Se este for o caso dos pedidos de impeachment feitos contra a Presidente Dilma Rousseff e o Vice-Presidente Michel Temer, então não estaremos diante de um “processo”, e nem diante de um “julgamento”. Estaremos diante de uma simples escolha. Estaremos, pois, diante de um Golpe de Estado.
Por essas razões, respondendo especificamente ao item “c” do Quesito 6, sustentamos que se estiverem presentes as condições apropriadas, que estabelecemos no item “b”, o MS 34.087 deve ter a sua liminar integralmente provida, com a submissão de ambos os processos a uma única Comissão Especial de impeachment, que deve analisar ambos em uma única sessão, justificando publicamente qualquer diferenciação de tratamento que venha a estabelecer entre os dois.
7. É passível de nulidade uma deliberação do Plenário da Câmara dos Deputados que autorize o Senado a instaurar processo contra a Presidente da República com fundamento em elementos não considerados no despacho do Presidente da Câmara dos Deputados que receber a Denúncia?
a. À luz da resposta a esse Quesito, foram encontrados vícios no Parecer do Deputado Jovair Arantes apresentado à Comissão Especial destinada a dar Parecer sobre a Denúncia apresentada pelos Srs. Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Conceição Paschoal contra a Presidente Dilma Rousseff?
À luz do que respondemos no Quesitos “2”e “3”, verificamos algumas violações importantes aos princípios do Devido Processo Legal e da Ampla Defesa. Essas violações consistem na juntada de documentos e menção a fatos irrelevantes para o julgamento da Denúncia, e que não estavam em debate no momento em que se iniciou o prazo da Denunciada para apresentar defesa. Mencionam-se, também, inclusive com gráficos, fatos econômicos e políticos acontecidos fora do exercício do atual mandato da Presidente da República, que escapam à apreciação da Comissão.
Essas razões, independentemente do conteúdo do juízo de mérito realizado pelo Deputado Jovair Arantes em seu Parecer, tornam esse Parecer passível de nulidade, que deve ser declarada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.
IV. Considerações finais: o Brasil em um cenário pós-impeachment
Como acredito estar evidente para o leitor, este Parecer se restringiu às etapas do processo de impeachment na Câmara dos Deputados, à luz de algumas controvérsias que permanecem mesmo após a ADPF 378 e alguns fatos supervenientes no âmbito do processo de impedimento contra a Presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados.
Não foi apresentada uma opinião acerca dos passos que, eventualmente, seriam seguidos no processo de impeachment caso ele siga em direção ao Senado, tanto para um juízo de admissibilidade como para um julgamento final de mérito. As diretrizes fixadas pelo STF na ADPF 378, a qual têm efeito vinculante, parecem no entanto fornecer um roteiro que permite ao menos algum tipo de previsibilidade.
A correção formal de um processo de impeachment em nosso país não implica, porém, uma garantia de que a mera promulgação do seu resultado garanta legitimidade à decisão política final do Senado Federal. Nesse ponto, é importante remeter o leitor novamente a algumas das advertências que fizemos nas “considerações introdutórias” deste Parecer.
Há risco, mesmo se satisfeitas todas as formalidades processuais, e mesmo se preenchidos todos os requisitos para impedir o controle do Supremo Tribunal Federal sobre o impeachment (entre os quais incluo os condicionamentos que considero relevantes e expus nos itens 5 e 6 deste Parecer), de que ao final tenhamos um ato de cassação da Presidente da República que prescinda de justificativas jurídicas plausíveis e se aproxime de uma insincera decisão política travestida de “punição” por atos jurídicos inexistentes.
Esse cenário, se adentrarmos em um exame de mérito da Denúncia em discussão na Câmara dos Deputados, não parece distante da nossa realidade. Uma decisão puramente política, sem amparo em critérios jurídicos que lhe dêem sustentação, seria mais próxima de uma ruptura institucional do que de um legítimo movimento de mudança de governo.
No nosso sistema jurídico, para o bem ou para o mal, a decisão final do mérito do impeachment, ressalvados os casos de flagrante vício de vontade, que mencionei nos Quesitos 5 e 6, está nas mãos do Legislativo.
Mas por mais “final” que seja essa decisão, e por mais que ela não possa ser revertida pelo Supremo Tribunal Federal, se se revelar viciada, ela tem consequências jurídicas difíceis de mensurar.
Essas consequências vão além da mudança de governo, e repercutem nos direitos e deveres que o Brasil têm no âmbito da comunidade internacional. Uma destituição ilegítima do Presidente da República é um ilícito internacional, que pode gerar efeitos concretos e sanções contra o Brasil na Ordem Jurídica Internacional, as quais seriam (tal como um impeachment sem fundamento jurídico) nocivas ao interesse nacional.
Recordemos, aqui, do caso de Honduras em 2009, que fez com que a Assembleia Geral da ONU editasse Resolução para “condenar o golpe de estado na República de Honduras que interrompeu a ordem democrática e constitucional e o legítimo exercício do poder” no país (item 1), “demandar a imediata e incondicional restauração do governo legítimo e constitucional do Presidente da República de Honduras” (item 2), e “decidir convocar de modo firme e inequívoco os Estados a não reconhecerem outro governo senão o do Presidente, Sr. José Manuel Zelaya Rosales” (item 3).[65]
Uma mudança ilegítima de governo, sem a devida caracterização de crime de responsabilidade, é não apenas uma violência contra a democracia, mas pode trazer também graves consequências no âmbito internacional, e contribuir ainda mais para o impasse e a instabilidade que temos verificado no cenário político nacional.
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Belo Horizonte, 11 de abril de 2016.
Thomas da Rosa de Bustamante
OAB-MG: 87.051
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Nota: O presente Parecer foi concedido gratuitamente e se originou de estudos e pesquisas realizadas pelo seu autor nas áreas de Filosofia do Direito, Filosofia Política e Direito Constitucional, incluindo-se estudos realizados com financiamento de Projetos de Pesquisa concedidos pelo CNPq e pela FAPEMIG. O autor dedica este parecer à Professora Misabel Abreu Machado Derzi, na data dos seus 70 anos, pelo exemplo de dedicação incondicional à ciência do direito, à democracia, à universidade e às grandes batalhas político-jurídicas do país em nome da legalidade e do Estado de Direito.
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Informações curriculares do autor: Thomas Bustamante possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000), mestrado em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003) e doutorado em direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2007), com período de investigação da Universidade de Edimburgo (Reino Unido), como bolsista da CAPES. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, onde é membro do Corpo Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito. Foi docente (Lecturer) do corpo permanente da Universidade de Aberdeen, no Reino Unido, por dois anos completos (2008 a 2010) e Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (2004 a 2008), onde exerceu a função de Chefe de Departamento. É coordenador de Projetos de Pesquisa financiados pelo CNPq e pelo CNJ. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PQ-2) e pesquisador contemplado com recursos do Programa Pesquisador Mineiro (PPM VIII) da Fapemig. Realizou, de março de 2015 a fevereiro de 2016, Pós-Doutorado na Universidade de São Paulo, com bolsa da FAPESP, sob a supervisão do Professor Titular Ronaldo Porto Macedo Júnior. Tem diversas publicações no Brasil e no exterior nas áreas de Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Teoria da Argumentação Jurídica e Direito Constitucional. Link para a página do autor na SSRN (Social Science Research Network): http://papers.ssrn.com/sol3/cf_dev/AbsByAuth.cfm?per_id=1470905). Link para Currículum Lattes: http://lattes.cnpq.br/9752509896150589 .
Notas e Referências:
[1] Abranches, Sérgio Henrique Hudson de. “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro”. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34, p. 22.
[2] Limongi, Fernando; Figueiredo, Argelina. “As bases institucionais do presidencialismo de coalizão”. Lua Nova, vol. 44, 1998, pp. 81-106, p. 82.
[3] Avritzer, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 29.
[4] Idem, ibidem, p. 47.
[5] Queiroz, Rafael Mafei Rabelo. “Impeachment e a Lei de Crimes de Responsabilidade: O Cavalo de Tróia Parlamentarista”. Publicado no Blog Direito e Sociedade, do “Estado de São Paulo”. Disponível em: http://brasil.estadao.com.br/blogs/direito-e-sociedade/impeachment-e-lei-de-crimes-de-responsabilidade-o-cavalo-de-troia-parlamentarista/. Publicado em 16 de dezembro de 2015. Acesso em 08 de abril de 2016.
[6] Idem, ibidem.
[7] Barroso, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 60.
[8] Idem, ibidem, p. 61.
[9] Nesse sentido, explica Kelsen: “A norma geral, que liga a um fato abstrativamente determinado uma conseqüência igualmente abstrata, precisa, para poder ser aplicada, de individualização. É preciso estabelecer se in concreto existe um fato que a norma geral determina in abstracto; e é necessário pôr um ato concreto de coerção – isto é, ordená-lo e depois executá-lo – para este caso concreto, ato de coerção esse que é igualmente determinado in abstracto pela norma geral. Portanto, a aplicação de uma norma geral a um caso concreto consiste na produção de uma norma individual, na individualização (ou concretização) da norma geral. E, por isso, a função da norma geral a aplicar também pode consistir em determinar o conteúdo concreto da norma individual que é produzida através do ato judicial ou administrativo, da decisão judicial ou da resolução administrativa”. Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 256.
[10] Idem, ibidem, p. 259.
[11] Luhmann, Niklas. Law as a Social System. Trad. Klaus Ziegert. Oxford. Oxford University Press, 2008.
[12] Dworkin, Ronald. Taking Rights Seriously. 2. reimp. Cambridge, MA: Belknap. 1978, p. 82.
[13] Pinto, Paulo Brossard de Souza. O ‘impeachment’. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, p. 71.
[14] Sobre o influxo de ideias parlamentaristas sobre o pensamento de Brossard, ver, entre outros, Queiroz, Rafael Mafei Rabelo. “Impeachment e a Lei de Crimes de Responsabilidade: O Cavalo de Tróia Parlamentarista”, citado à nota 5 (supra).
[15] Pinto, Paulo Brossard de Souza, O ‘impeachment’, citado à nota 13, p. 152.
[16] Idem, ibidem, p. 154.
[17] Excerto do Voto do Ministro Paulo Brossard em STF, MS 20.941, Rel. para o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, j. 09/02/1990, DJ 31/08/1992. Reproduzido no Parecer do Relator da Comissão Especial Destinada a dar Parecer sobre a Denúncia contra a Senhora Presidente da República por Crime de Responsabilidade, oferecida pelos Senhores Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaina Conceição Paschoal. Denúncia por Crime de Responsabilidade n. 01/2015. Parecer lavrado em 06/04/2015. Disponível para consulta pública em: http://www.camara.leg.br/internet/comissoes/comissoes-especiais/parecer-ocr.pdf . Consulta em 07/04/2016.
[18] Idem, ibidem.
[19] Parecer do Relator da Comissão Especial Destinada a dar Parecer sobre a Denúncia contra a Senhora Presidente da República por Crime de Responsabilidade, citado à nota 17 (supra).
[20] STF, MS 20.941, Rel. para o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, j. 09/02/1990, DJ 31/08/1992.
[21] Excerto do Voto do Ministro Sepúlveda Pertence em STF, MS 20.941, Rel. para o acórdão Min. Sepúlveda Pertence, j. 09/02/1990, DJ 31/08/1992.
[22] Excerto do Voto do Ministro Teori Zavascki em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[23] As considerações sobre a autoridade se distinguem, portanto, das teorias da justiça, que buscam encontrar um esquema moralmente justificado de distribuição de bens e encargos sociais. Teorias da autoridade, no âmbito da filosofia política, são teorias sobre quem deve tomar determinadas decisões, com quais propósitos e por meio de quais procedimentos. Questões de autoridade são, portanto, questões acerca da forma mais justa e adequada para decidir determinados problemas (ver, nesse sentido, Waldron, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 3).
[24] Excerto do Voto do Ministro Luís Roberto Barroso em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[25] Manifestação da Denunciada na Denúncia apresentada à Câmara dos Deputados por Crime de Responsabilidade. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/denuncia-contra-a-presidente-da-republica/documentos/outros-documentos/manifestacao-da-denunciada/ManifestaodaDenunciada.PDF . Acesso em 07/04/2016.
[26] STF, MS 21.564, Rel. para o acorado Min. Carlos Velloso, j. 23/09/1992, DJ de 27.08.1993.
[27] Parecer do Relator da Comissão Especial Destinada a dar Parecer sobre a Denúncia contra a Senhora Presidente da República por Crime de Responsabilidade, citado à nota 17 (supra).
[28] Jardim, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 154.
[29] STF, MS 30.672, Rel. Min. Ricardo Lewandwoski, Tribunal Pleno, j. em 15/09/2011, Dje de 18/10/2011.
[30] É essa a orientação fixada no STF, MS 21.564, Rel. para o acorado Min. Carlos Velloso, j. 23/09/1992, DJ de 27.08.1993, no MS 30.672, Rel. Min. Ricardo Lewandwoski, Tribunal Pleno, j. em 15/09/2011, Dje de 18/10/2011 e na ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[31] Parecer do Relator da Comissão Especial Destinada a dar Parecer sobre a Denúncia contra a Senhora Presidente da República por Crime de Responsabilidade, citado à nota 17 (supra), p. 54.
[32] STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[33] Excerto do Voto Oral do Ministro Luís Roberto Barroso em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[34] Excerto do Voto do Ministro Celso de Mello em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[35] Idem, ibidem.
[36] Idem, ibidem.
[37] Bahia, Alexandre Gustavo de Melo Franco; Oliveira, Marcelo Cattoni de; Vecchiatti, Paulo Roberto Iotti. “Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade”, em Empório do Direito, publicado em 23/03/2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/, acesso em 01/04/2016.
[38] Ver, nesse sentido, Lodi, Ricardo. “Parecer: Pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff – Aspectos orçamentários – Normas de direito financeiro. Falta de amparo jurídico do pedido”. Publicado em: http://s.conjur.com.br/dl/parecer-ricardo-lodi-impeachment-dilma.pdf , pp. 6-7.
[39] Nesse sentido, são pertinentes as considerações de Ricardo Lodi, que se debruçou com atenção sobre o assunto nos seguintes parágrafos:
“[O]s limites previstos para a abertura de créditos suplementares previstos na lei de orçamento foram revistos antes do final do exercício financeiro. A pergunta a ser feita é se antes da aprovação da lei que altera a meta de resultado primário já é possível a abertura de créditos suplementares com base nos novos limites. Num plano ideal, é claro que é recomendável aguardar-se a aprovação pelo Congresso Nacional da lei que altera a meta primária para, só então, se utilizar da autorização nela contida para abertura de créditos suplementares. Porém, é forçoso reconhecer os contornos da dinâmica adotada pelo próprio legislador ao estabelecer como condição para a aludida autorização um evento futuro e incerto, cuja verificação do seu implemento só pode ser realizada ao final do exercício em curso. Nesta hipótese, estamos diante de uma condição resolutória, e não suspensiva. Caso contrário, se fosse necessário o implemento da condição suspensiva para se considerar autorizada a abertura de créditos suplementares por decreto, esta não poderia ocorrer dentro do exercício em curso, o que inutilizaria a autorização concedida por ocasião da promulgação da lei orçamentária anual. Porém, sendo a condição resolutória, é possível a abertura de créditos suplementares por decreto até o seu implemento. Ou seja, até que seja constatado que no ano em curso não haverá cumprimento da meta, o que, normalmente, só é possível constatar no final do exercício. Com a alteração legislativa da meta, a condição também é alterada, o que produz efeitos sobre a verificação quanto ao seu implemento no final do exercício.” Idem, ibidem, pp. 15-16.
[40] Nesse sentido, é elucidativo o voto do Ministro Edson Fachin na ADPF 378, que não foi vencido nessa parte. Como argumenta o Ministro, de maneira correta, é indevida uma assimilação entre as exigências de imparcialidade que se impõem ao Poder Judiciário – no processo penal – e ao Poder Legislativo – no processo de impeachment –, uma vez que tal equiparação eliminaria por completo o caráter político do processo de julgamento por crime de responsabilidade. Nesse sentido:
“Os Juízes gozam de prerrogativas funcionais direcionadas à garantia da independência, como a inamovibilidade, a vitaliciedade e a irredutibilidade de subsídio (art. 95 CRFB/88). Essa independência existe para, entre outras razões, produzir as condições materiais indispensáveis ao julgamento imparcial. Já os parlamentares são regidos por lógica diversa, pois exercem mandato com termo final estabelecido e cuja renovação desafia a aprovação nas urnas. Outrossim, a independência do parlamentar deve ser exercida com observância da Constituição e de forma correspondente
aos anseios dos representados. Sendo assim, ao contrário do que ocorre no âmbito judicial, a imparcialidade não constitui característica marcante do Parlamento.
Diante disso, exigir aplicação fria das regras de julgamento significaria, em verdade, converter o julgamento jurídico-político em exclusivamente jurídico, o que não se coaduna com a intenção constitucional. A Constituição pretendeu que o julgador estivesse sujeito à lei e a interesses políticos, de modo que a subtração dessa perspectiva implicaria violação ao Princípio Democrático”. Excerto do Voto do Ministro Celso de Mello em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[41] Parecer do Relator da Comissão Especial Destinada a dar Parecer sobre a Denúncia contra a Senhora Presidente da República por Crime de Responsabilidade, citado à nota 17 (supra), p. 38.
[42] Excerto do Voto do Ministro Celso de Mello em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[43] Atienza, Manuel; Ruiz Manero, Juan. Ilícitos atípicos: Sobre el abuso del derecho, la fraude de ley y la desviación de poder. Madri: Trotta, 2. ed., 2006, p 27.
[44] Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 289.
[45] Idem, ibidem, p. 288.
[46] Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28. ed, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balesteiro Aleixo e José Emanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 109.
[47] STF, Medida Cautelar em Mandado de Segurança n. 34.087. Decisão Monocrática do Ministro Marco Aurélio de Mello. Publicada em: http://s.conjur.com.br/dl/marco-aurelio-manda-pedido-impeachment.pdf . Consulta em 09/04/2016.
[48] Bahia, Alexandre Gustavo Melo Franco; Fernandes, Bernardo Gonçalves; Silva, Diogo Bacha; Oliveira, Marcelo Andrade Cattoni de. “O pedido de impeachment contra o vice-presidente Michel Temer e a concessão parcial da liminar no MS 34.087 pelo ministro Marco Aurélio”, em Empório do Direito, publicado em 06/04/2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-pedido-de-impeachment/ . Acesso em 09/04/2016.
[49] Sobre os efeitos sistêmicos das interpretações judiciais ver, entre outros: Vermeule, Adrian. Judging Under Uncertainty: An Institutional Theory of Legal Interpretation. Cambridge, MA: Belknap, 2006, pp. 78-79.
[50] Posner, Richard. Law, Pragmatism and Democracy. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2003, p. 61.
[51] Importa salientar, ainda, que a decisão liminar em questão nos parece incoerente com outros pronunciamentos do próprio Ministro Marco Aurélio em casos análogos, como o belíssimo voto que ele proferiu no MS 30.672, onde se lê: “O recebimento – de denúncia, de recurso – revela ato a implicar juízo de admissibilidade. Se assim não fosse, a lei faria alusão ao serviço de protocolo do Senado, e não à Mesa. A tramitação da denúncia por crime de responsabilidade pressupõe o recebimento pela Mesa da Casa Legislativa, sendo essa uma fase do procedimento atinente à aplicação das punições previstas na Lei nº 1.079/50. Caso recebida, será criada a comissão especial à qual alude o artigo 45 do mesmo diploma”.
Voto do Min. Marco Aurélio de Mello no MS 30.672, Rel. Min. Ricardo Lewandwoski, Tribunal Pleno, j. em 15/09/2011, Dje de 18/10/2011. Nessa manifestação anterior, o Ministro Marco Aurélio reconheceu o princípio da dupla admissibilidade, que defendemos nas respostas aos Quesitos 2 e 3 desse Parecer, embora tenha entendido que a primeira manifestação é da Mesa, e não do Presidente da Casa. É um entendimento muito mais razoável, em minha opinião, do que o entendimento sustentado no MS 24.087, de que há apenas um juízo possível sobre a justa causa, a ser realizado pelo Plenário da Casa.
[52] Concluímos, portanto, que são indefensáveis os argumentos produzidos pelo Ministro Marco Aurélio na fundamentação da Liminar deferida no MS 34.087. Sem embargo, isso não significa, como se poderá observar na parte final da resposta a esse Quesito, que não possa haver razões diferentes para se manter a decisão liminar, como pretendemos demonstrar.
[53] Excerto do Voto do Ministro Celso de Mello em: STF, ADPF 378, Rel. para o acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17/12/2015.
[54] STF, Medida Cautelar em Mandado de Segurança n. 34.099. Decisão Monocrática do Ministro Celso de Mello. Publicada em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ms34099.pdf . Acesso em 10/04/2016.
[55] Dworkin, Ronald, Taking Rights Seriously, citado na nota 12 (supra), p. 126.
[56] Dworkin, Ronald. “‘Natural Law’ Revisited”. University of Florida Law Review, Vol. XXXIV, Winter 1982, n 2, pp. 165-188, p. 185.
[57] Idem, ibidem.
[58] MacCormick, Neil. “Donoghue vs. Stevenson and Legal Reasoning”, em Burns, P.; Lyons, S. (orgs.), Donoghue vs. Stevenson and the Modern Law of Negligence: the Paisley Papers. Vancouver: University of British Columbia, 1991, p. 203.
[59] Idem, ibidem.
[60] Bustamante, Thomas. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012, p. 111-112. As referências a Neil MacCormick, no interior da citação, são: MacCormick, Neil. Rhetoric and the Rule of Law. Oxford: Oxford University Press, 2005, e MacCormick, Neil. “Why Cases Have Rationes and What These Are”, in. Goldstein, L. (org.), Precedent in Law. Oxford: Oxford University Press, 1987.
[61] Dworkin, Ronald, Justice for Hedgehogs. Cambridge, MA, 2011, p. 101.
[62] Shapiro, Scott, Legality. Cambridge, MA: Belknap, 2011, p. 186.
[63] Bustamante, Thomas. Argumentação ‘Contra Legem’. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 232-233. As citações no interior da citação são de MacCormick, Neil. “Defeasibility in Law and Logic”, em Bankowski, Z et alli (orgs.), Informatics and the Foundations of Legal Reasoning. Dordrecht: Kluwer, 1995; e Hage, Jaap. Reasoning with Rules. Dordrecht: Kluwer, 1997.
[64] Ver, nesse sentido, os comentários que fizemos sobre as suas manobras através de “emendas aglutinativas” em propostas de Emendas à Constituição. Em: Bustamante, Thomas; Godoi Bustamante, Evanilda Nascimento de. “Jurisdição Constitucional na Era Cunha: Entre o Passivismo Procedimental e o Ativismo Substancialista do STF”, in Direito & Práxis, vol 7, n. 13, 2016, pp. 346-388.
[65] United Nations. General Assembly. Resolution adopted by the General Assembly on 30 June 2009 - 63/301. Situation in Honduras: democracy breakdown. Disponível em http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/63/301 . Acesos em 09/04/2016.