Para entender porque a PEC (171) da Redução da Idade Penal é inconstitucional você precisa dominar overruling e distinguishing

22/07/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Maurilio Casas Maia - 22/07/2015

Toda coerência é, no mínimo, suspeita”.

Nelson Rodrigues

“Coerente: o sujeito que não teve outra ideia”.

Millôr Fernandes

  “Tudo é óbvio (desde que você saiba a resposta)”. 

Ducan J. Watts

Notas introdutórias

A partir das frases epigrafadas – as que falam de coerência foram todas relembradas por Laércio Becker[1] –, registra-se de antemão a que aplicação de precedentes judiciais exige coerência. O texto será um pouco longo e precisaremos de sua atenção (S2). Na obra “[a] ética dos precedentes”, do professor Luiz Guilherme Marinoni[2], registrou-se que a “cultura do homem cordial” e do “sujeito do jeitinho, especialista em manipular, destituído de qualquer ética comportamental” “não vê a unidade do direito, a generalidade ou mesmo a igualdade perante o direito”.

O tema precedente e coerência vêm a lume após declarações de que a aprovação em primeiro turno da PEC n. 171, na Câmara dos Deputados, teria por lastro um "precedente" do Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1996 e que, portanto, a conduta legislativa seria “coerente” com o referido julgado. Explicamos anteriormente que mero julgado não é precedente e que a ratio decidendi não é qualquer comentário constante do voto de algum ministro (aqui).

Assim, além de ter uma longa vida para uma proposta de emenda à Constituição, a “PEC imortal”, a PEC da supostas “pedaladas regimentais”, ganhou ainda outra linha argumentativa de proteção: “Seguiu-se o regimento e temos um precedente do STF que confirma a tese”. Será?

Ora, se é certo que a Constituição é a diretriz regimental e não o inverso, devendo-se por isso evitar oportunistas “PEC’s de Exceção”, por outro lado, também não se pode negar que o regimento interno existe e deve ser seguido – tratando-se do devido processo legislativo, tão bem trabalhado por Marcelo Cattoni[3], que é integrado para além da norma constitucional, com primazia sobre todas as demais, pelo regimento interno respectivo.

O “precedente” ou “mero julgado” inspirador da PEC imortal (sim, ela não foi a primeira)

O presente texto, longe de exaurir o tema, vai tratar brevemente da aplicabilidade ou não do precedente ou mero julgado, conforme trabalhado em momento anterior (aqui), gerado no MS n. 22.503-3 (STF) em que se debatia questão similar ao procedimento adotado na PEC n. 171/1993. Segundo ementa do julgado sob análise, a questão se relaciona diretamente com o “§5º do art. 60 da Constituição” e regra regimental de idêntico teor – ponderando o STF naquela ocasião: “(...) assim interpretada, chega-se à conclusão que nela há ínsita uma questão constitucional, esta sim, sujeita ao controle jurisdicional. Mandado de segurança conhecido quanto à alegação de impossibilidade de matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada poder ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”.

Portanto, o mérito da questão não se concentrou em uma questão regimental, mas acima de tudo constitucional.

O MS n. 22.503-3 foi julgado em 8 de maio 1996. Seu relator originário, ministro Marco Aurélio, não transigiu na aplicabilidade literal do § 5º do artigo 60, da Constituição. Entretanto, o voto do relator original foi vencido. Assim, prevaleceu a tese de que: “(...) Não ocorre contrariedade ao §5º do art. 60 da Constituição na medida em que o Presidente da Câmara dos Deputados, autoridade coatora, aplica dispositivo regimental adequado e declara prejudicada a proposição que tiver substitutivo aprovado, e não rejeitado, ressalvados os destaques (art. 163, V). 2. É de ver-se, pois, que tendo a Câmara dos Deputados apenas rejeitado o substitutivo, e não o projeto que veio por mensagem do Poder Executivo, não se cuida de aplicar a norma do art. 60, § 5º, da Constituição. Por isso mesmo, afastada a rejeição do substitutivo, nada impede que se prossiga na votação do projeto originário. O que não pode ser votado na mesma sessão legislativa é a emenda rejeitada ou havida por prejudicada, e não o substitutivo que é uma subespécie do projeto originariamente proposto. 3. Mandado de segurança conhecido em parte, e nesta parte indeferido”. (STF, MS 22.503, Rel. p/ Acórdão:  Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, j. 8/05/1996, DJ 6-6-1997).

Antes de dialogar especificamente sobre o MS n. 22.503, porém, recomenda-se ao leitor que conheça a terminologia basilar (aqui) para a aplicação dos precedentes, pois será essencial para a retirada de resquícios de senso comum e do modo “S1” de pensar quando se trata de aplicação de julgados ao caso concreto.

O MS n. 22.503: Um “mero julgado” de processo legislativo específico para PEC’s do Poder Executivo

O MS n. 22.503 foi impetrado em 11/4/1996 e possui distinção de base fática relevante com o caso PEC n. 171/1993. O primeiro ponto fático distinto, é que no MS 22.503, a origem do projeto (proposta originária) é o Poder Executivo, enquanto que o autor do projeto substitutivo era da Câmara dos Deputados.

A origem do projeto da PEC n. 33/1995 foi questão central, sempre foi ressaltada durante os votos e ao que tudo indica compõe a ratio decidendi do caso. Aliás, até mesmo a ementa é clara nisso: “(...) 2. É de ver-se, pois, que tendo a Câmara dos Deputados apenas rejeitado o substitutivo, e não o projeto que veio por mensagem do Poder Executivo, não se cuida de aplicar a norma do art. 60, § 5º, da Constituição. Por isso mesmo, afastada a rejeição do substitutivo, nada impede que se prossiga na votação do projeto originário (...)” (STF, MS 22503, Rel. p/ Acórdão:  Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, j. 8/5/1996).

Conforme dito, a preocupação do STF, em diversos votos se revelou direcionada à preservação da atribuição presidencial de propostas de Emendas Constitucionais (art. 60, II).

Assim, o relator para o acórdão, Min. Maurício Corrêa, ponderou que a Câmara dos Deputados rejeitou o projeto substitutivo e “não o projeto que veio por mensagem do Poder Executivo” (p. 528, dos autos) de modo que “(...) nada impede que se prossiga na votação do projeto originário” (p. 529).

Noutro passo, o ministro Ilmar Galvão também sobrelevou que a rejeição do substitutivo não significa “a rejeição da emenda constitucional proposta pelo Poder Executivo” (p. 534). Mais à frente, ainda o ministro Ilmar Galvão reitera que “o projeto de emenda constitucional (...) foi enviado pelo Poder Executivo (...) recebeu substitutivo na Comissão Especial (...) foi remetido ao Plenário, que o rejeitou” (p. 535).

A seguir, o ministro Carlos Veloso ressalta mais uma vez a razão do acórdão: o respeito à atribuição constitucional do Poder Executivo (art. 60, II), ao menos assim se interpreta ao ler o seguinte trecho: “Ora, rejeitado o substitutivo, remanesce a proposta do Poder Executivo, certo que o processo legislativo da proposta de emenda do Executivo, com a rejeição do substitutivo não se encerrará” (p. 538).

Avançando-se na análise dos autos se tem o voto do ministro Celso De Mello, o qual também positivou se tratar de um processo legislativo de PEC do Poder Executivo – afirmou ele: “rejeitado o substitutivo, e subsistindo a proposição principal, teve sequência a tramitação do processo de reforma constitucional, considerada a proposta apresentada por iniciativa do Presidente da República” (p. 542, g.n.).

O ministro Neri da Silveira também registrou expressamente da espécie de procedimento que se tratava, ao pontuar a “origem executiva” (p. 548) e a rejeição somente do substitutivo apresentado pelo Poder Legislativo (Câmara dos Deputados).

Por outro lado, o ministro Sepúlveda Pertence foi categórico: “(...) sempre me pareceu evidente, data venia, que o processo legislativo iniciado por proposta governamental não se encerrou, e nenhum se encerra, com a rejeição do substitutivo” (p. 552). Destarte, tendo em vista os limites do objeto do MS n. 22.503 (devido processo legislativo de Emenda Constitucional do Poder Executivo), o ministro Pertence registrou que nem aquele caso concreto, e nenhum outro decorrente de PEC do Executivo, poderia perecer sem análise, caso o substitutivo fosse rejeitado. E ele volta a reiterar que “a rejeição do substitutivo afasta aquela alternativa, (...) para que se conclua o processo iniciado, no caso, com a votação da proposta governamental de emenda à Constituição. Isso, a meu ver, decorre da Constituição” [g.n.].

Não há espaço para dúvidas, o MS n. 22.503 circunscreve-se às peculiaridades das PEC’s cuja origem remonte ao Poder Executivo, sendo a finalidade do julgado preservar a atribuição presidencial do inciso II do artigo 60 da Constituição.

Aqui algo essencial que pode ser depreendido do julgado sob análise: é preciso respeitar a proposta proveniente do poder (função) estatal alheio no caso de rejeição do projeto substitutivo. No caso do precedente paradigmático (MS n. 22.503), a proposta era originária da presidência da República (art. 60, II, da Constituição) e não da Câmara dos deputados (art. 60, I, Constituição).

Ao contrário, a PEC n. 171/1993 foi originariamente proposta pela própria Câmara dos deputados, por meio do deputado Benedito Domingos, em 1993. Seu substitutivo, era igualmente decorrente de iniciativa daquela mesma Casa do Congresso.

Portanto, o primeiro problema interpretativo de se tentar impor o MS n. 22.503 (STF) ao caso da PEC n. 171/1993 é a distinta base fática (a partir das origens dos projetos) e a necessidade de respeito à atribuição constitucional para apresentação de emendas (art. 60, II) – uma vez que fora rejeitado substitutivo de autoria da Câmara e o projeto original da presidência, estopim que deflagrara o processo legislativo, não.

Assim, considerar o projeto original (da presidência) rejeitado por tabela equivaleria a negar vigência ao artigo 60, II, da Constituição. Assim, ao que tudo indica, tem-se aí ratio decidendi do precedente.

Entretanto, a ratio decidendi apontada deixa de existir no caso da PEC n. 171/1993. Nesse ponto, abrindo-se espaço para um distinguinshing – a fim de afastar a aplicação do precedente decorrente do MS n. 22.503 –, e tornar o voto vencido do ministro Marco Aurélio, um voto vencedor mais de 19 anos depois de sua lavra, desta vez prevalecendo a literalidade do artigo 60, § 5º. Uns tem sua revanche aglutinativa em 24 horas, outros podem ter sua reviravolta em mais de 19 anos depois – acontece...

Apesar da obviedade de se tratar de precedente sobre o devido processo de PEC de origem no Poder Executivo, é preciso ponderar se as menções ao regimento interno em diversos votos seriam relevantes ou não para o deslinde salutar do núcleo da argumentação.

A questão regimental enquanto obiter dictum

Em verdade, por questão de coerência com a ratio decidendi do MS n. 22.503, deve-se distinguir a situação da PEC 171/1993 (originada na própria Câmara dos Deputados) e da PEC 33/1995 (MS n. 22.503), enviada pelo Poder Executivo por meio da mensagem 306/1995, de março do referido ano. Entretanto, após a leitura do inteiro do teor dos votos, percebe-se que alguns votos tratam do Regimento Interno com um pouco mais de detalhes. Nesse caso, as citações do regimento Interno da Câmara faria parte da ratio decidendi?

A resposta é antecipada: não.

As referências ao Regimento Interno não representam razão de decidir para o STF, sendo mero obiter dictum. Isso por dois motivos básicos: (a) a jurisprudência do STF (pretérita e presente) rejeita a análise do mérito interna corporis pelo Poder Judiciário; (b) Diversos ministros, em seus respectivos votos, ressaltaram que o mérito se restringia à questão constitucional do § 5º do artigo 60 da Constituição.

Quanto à primeira observação, ressalta-se que o STF já ponderou, em diversas situações que não se deve conhecer pedido com fundamento regimental “(...) por se tratar de matéria interna corporis do Poder Legislativo, não sujeita à apreciação pelo Poder Judiciário” (MS 22.494/DF). Com a mesma razão, vide ainda o debate preliminar do MS 22.503/DF, afastando a matéria de Regimento Interno do mérito do julgamento, limitando-se este ao fundamento constitucional da impetração; o MS 23.920-MC/DF, rel. min. Celso de Mello, e; a decisão monocrática final (DMF) no MS n. 33.558, rel. Min. Celso de Melo (sob impugnação).

Bem, mas deve-se avançar sobre o caso concreto. Nele, percebe-se que – uma vez limitados os julgadores pela votação da preliminar que circunscrevia o mérito ao tema constitucional e afastava desse mesmo mérito questões de cunho meramente regimental –, o eixo decisório do caso somente poderiam ser regras de índole constitucional.

Com efeito, a única conclusão consentânea com preliminar votada, vem no sentido de entender que as referências ao Regimento Interno da Câmara são meros obiter dicta. Observe-se o trecho da ementa que trata da preliminar:

“(...) I - Preliminar. (...). A alegação, contrariada pelas informações, de impedimento do relator - matéria de fato - e de que a emenda aglutinativa inova e aproveita matérias prejudicada e rejeitada, para reputá-la inadmissível de apreciação, é questão interna corporis do Poder Legislativo, não sujeita à reapreciação pelo Poder Judiciário. Mandado de segurança não conhecido nesta parte. 2. Entretanto, ainda que a inicial não se refira ao § 5º do art. 60 da Constituição, ela menciona dispositivo regimental com a mesma regra; assim interpretada, chega-se à conclusão que nela há ínsita uma questão constitucional, esta sim, sujeita ao controle jurisdicional. Mandado de segurança conhecido quanto à alegação de impossibilidade de matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada poder ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. (...)”. (STF, MS 22503).

Os votos de vários ministros confirmam a conclusão decorrente da ementa e a consequente visão das menções ao Regimento Interno enquanto mero obiter dicta.

O ministro Francisco Rezek afirma, de início, que o conhecimento do Mandado de Segurança está “circunscrito à questão constitucional e tão-só a ela, abstenho-me de qualquer comentário sobre o regramento regimental” (p. 530, g.n.).

Em argumentação técnica, o ministro Celso De Melo afirmou que a questão preliminar “delineou os limites de intervenção jurisdicional no processo de formação das leis e das emendas à Constituição”, “[r]econhecida, em consequência, a jurisdição do Supremo Tribunal Federal sobre a controvérsia constitucional” (p. 541).

Por coerência, também asseverou o ministro Octávio Gallotti, referindo-se ao debate sobre o § 5º do artigo 60 da Constituição: “Devo então limitar-me a reiterar a matéria, por esse dispositivo constitucional” (p. 545, g.n.).

Ministro Sidney Sanches, por seu turno, alegou que “está em discussão, a esta altura, apenas e tão-somente, se foi violado ou não, pela autoridade apontada como coatora, a norma do § 5º do artigo 60 da Constituição Federal” (p. 546, g.n.).

Por certo, não se ignora que alguns ministros vieram a trazer elementos do regimento, tais como o conceito de emenda substitutiva ou aglutinativa. Porém, com a limitação realizada preliminarmente, a matéria regimental somente poderia ser trazida enquanto obiter dictum, porquanto o cerne da questão seria constitucional, conforme delimitado em votação preliminar.

Outro caso antecedente (não julgado): O MS 33.630 (MC)

No MS 33630 MC, relatado pela ministra Rosa Weber, também é debatida temática semelhante. Em decisão monocrática proferida em 16/6/2015 negou-se liminar com base exatamente no MS n. 22.503. No caso citado, percebe-se que o ato impugnado é a tentativa de votar a emenda aglutinativa n. 22 (em 27/5/2015) após a rejeição da Emenda Aglutinativa nº. 28 (em 26/5/2015) à PEC n. 182/2007 (“constitucionalização do financiamento privado de campanhas políticas”).

Emenda aglutinativa pós Emenda Aglutinativa?

Aqui, percebe-se claramente como a sucessão de emendas aglutinativas podem perpetuar os debates de matérias junto à instância política – é o chamado “efeito restart da PEC de exceção ou a técnica “aglutina que cabe”.

Dois pontos merecem atenção: (a) origem: no MS n. 33.630 (PEC 182/2007), diferentemente do caso da PEC n. 171/1993, o projeto original vem de outra casa legislativa (Senado, via senador Marco Maciel). Trata-se de base fática distinta, a ser apreciada pelo STF. (b) Objetos de votação sucessiva: após a rejeição de uma emenda aglutinativa, colocou-se em pauta nova aglutinativa diferentemente do caso do MS n. 22.503 (na qual a sucessão foi entre substitutivo da Câmara e o projeto original da presidência) e na PEC n. 171/1993 (sucessão entre substitutivo da Câmara com a emenda aglutinativa da mesma Câmara).

Na impossibilidade de desenhar, apresenta-se um quadro final:

IMG-20150722-WA0010 (2) Assim, fica notório que – quanto à sucessão de documentos votados e quanto à origem das propostas originárias –, o contexto fático e jurídico dos três casos são diferentes entre si, situação essa que abre caso para aplicação da técnica de distinção e, até mesmo, superação do entendimento exarado em 1996, caso assim entenda o STF.

Se os brincos tomassem o lugar da mulher – o acessório seria então o principal?

Diversos textos se espalham defendendo a aplicabilidade do precedente do MS n. 22.503 ao procedimento da PEC n. 171/1993. Um deles, de escrita fina e bem fundamentado, merece aqui referência e respeito. Trata-se de excelente texto do professor Carlos Bastide Horbach, no qual ele busca explicar “[p]or que a aprovação da PEC da maioridade penal é constitucional”.

Em seu pórtico inicial, o citado texto apresenta a “regra secular” de que “o acessório segue o principal”. Assim, segue-se no texto ora analisado a lógica de que a PEC original é o “principal” e o projeto substitutivo um mero “acessório” – ou seja, segundo Horbach, a rejeição do substitutivo mantém incólume o projeto original porque este é o principal e o outro acessório.

Com o devido respeito, não comungamos do mesmo pensamento. Em qual hipótese, o brinco tomaria o lugar da mulher? Tornar-se-ia o “brinco” o senhor da senhora? A partir do exemplo citado o leitor pode pensar, talvez, que o acessório jamais tomará o lugar do principal, e é verdade.

Mas, voltando-se os olhos à prática legislativa, percebe-se que – sim –, o projeto substitutivo, se aprovado, tomará o lugar do projeto original. Então, o brocardo segundo o qual “o acessório segue o principal” é modelo insuficiente e inapropriado para a interpretação constitucional do tema sob análise. Certamente, tentar limitar a questão debatida no presente texto a uma relação entre acessório e principal representaria um indevido reducionismo da complexidade constitucional.

Argumentou-se – inclusive com lastro em alguns votos do MS n. 22.503 – ser distinto o substitutivo da proposta, isso a fim de concluir que a rejeição do substitutivo pelo Plenário não causaria malefícios à análise de emendas aglutinativas e ao projeto original, limitando a aplicação do § 5º do artigo 60 da Constituição, somente à rejeição do último (o original).

No ponto, percebe-se que a supracitada proposta interpretativa é medida que torna sem efeito, uma “letra quase morta”, o período para “maturação democrática” previsto no mencionado §5º. Ao que tudo indica, o sentido constitucional é exatamente o de evitar oportunismos e manobras populistas em favor de um breve “período de reflexão democrática” – até a próxima “sessão legislativa”. Assim, a interpretação proposta parece inviabilizar a efetividade do multicitado dispositivo constitucional e sua finalidade. Por isso a votação em plenário, portanto, deve ser importante marco a ser considerado na interpretação do § 5º do art. 60 da CRFB/88.

O articulista foi taxativo: “[a] interpretação do parágrafo 5o do artigo 60 da Constituição Federal à luz do Regimento Interno da Câmara dos Deputados deixa clara a regularidade da aprovação, em primeiro turno”(!). A afirmação causa espanto, mas o autor se explica logo em seguida ao sustentar que, no ponto em particular, “o texto constitucional (...) é bastante lacônico”.

Ora, certamente, a interpretação constitucional deve ocorre no sentido de garantir a Supremacia Constituição e não uma (fictícia) Supremacia Regimental. Sobre a pouca voz do sistema constitucional nessa quadra, embora esteja certo o autor ao aceitar o costume secundum constitutionem e praeter constitutionem (supletivo) no Poder Legislativo, entende-se que a multiplicidade de votações em plenário de projetos com a mesma matéria – mormente se tiverem a mesma origem –, viola o § 5º do artigo 60 da Constituição, por tudo que já foi explicado nos tópicos anteriores. Ou seja, manter o posicionamento do MS n. 22.503 no caso concreto, seria aceitar um inadmissível costume contra constitutionem.

Aliás, as referências em alguns votos à “relação de acessoriedade” é decorrente de acidental interpretação do regimento interno – ou seja, conforme argumentos expendidos –, é mero obiter dictum, porquanto o entendimento firmado em preliminar no julgado era de concentração na compatibilidade da prática com o § 5º do artigo 60 da Constituição, rejeitando questão interna corporis.

Outro obiter dictum a ser ressaltado é a ponderação do ministro Sepúlveda Pertence (p. 553) de que não seria razoável “espiolhar coincidências de conteúdo entre o substitutivo rejeitado, seja com a proposta original, seja com a emenda aglutinativa”. Tanto é obiter dictum, que o ministro Carlos Veloso pareceu raciocinar em outro caminho: “Os impetrantes, todavia, não demonstraram, na inicial, que a emenda aglutinativa repete a matéria rejeitada” (p. 540). Assim, ministro Carlos Veloso deixa registrado que, eventualmente, a questão da similitude entre os projetos e a emenda, poderia ser questão hábil à avaliação do tema.

Ademais, o autor citou, en passant, a EC n. 20/1998, de caráter previdenciário e cujo procedimento legislativo fora apurado no STF no MS n. 22.503 – haveria algum prejuízo para a EC supracitada caso o STF superasse (overruling) seu entendimento? A resposta é “não”, por dois motivos básicos: (a) o procedimento que resultou na EC n. 20/1998, já foi avalizado pelo Plenário do STF no MS n. 22.503 e; (b) ainda que, em tese, a constitucionalidade possa ser analisada por questão de ordem formal, a tendência seria a modulação de efeitos a fim de respeitar a segurança jurídica.

Enfim, por tudo o quanto foi apresentado, entendemos que toda discussão de caráter regimental eventualmente utilizada em algum voto possui caráter eventual, na condição de obiter dictum. É isso ou se contrariará a preliminar que rejeitou o debate sobre matérias interna corporis no MS n. 22.503, além do voto do relator para o acórdão e outros ministros que respeitaram a circunscrição constitucional, conforme a preliminar votada.

Então, se a prática está em desconformidade com o texto constitucional, é preciso corrigi-la, pensando-a como “Sujeitos de Constituição”, sob o pálio democrático e do Estado Democrático de Direito.

Concluindo: Tudo é óbvio desde quando você sabe a resposta

Ducan J. Watts, em sua obra “Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta”, demonstra o quanto é enganador o senso comum. Há também um senso comum teórico dos juristas, denunciado por Luis Alberto Warat, o qual é deveras pernicioso para a caminhada do Estado Democrático de Direito. Raciocínios fundamentados em um modelo decisório “S1” são mais facilmente afetados pela referida mazela. O modelo de raciocínio em “S2” – criterioso e acurado que é –, deve ser constitucionalmente prestigiado nas entrelinhas da Carta Maior.

Ao que tudo indica, os julgados invocados pelos defensores do procedimento adotado para a “votação dupla em plenário” da PEC n. 171/1993 possuem bases fáticas e jurídicas distintas. Por essa razão, é possível que a conclusão de suposta subsunção entre situações distintas seja decorrente de mero modo de pensar em “S1” e da satisfação com o “desfecho”[4] a que se chegou no MS n. 22.503 e não com uma forma de pensar íntegra e zelosa – em “S2”.

Aparentemente, em decorrência da base fática e jurídica distinta, é possível visualizar, em um primeiro plano, a realização de um distinguishing em caso de propositura de ação contra o procedimento legislativo. Isso porque caso se considere como motivo determinante (ratio decidendi) do precedente oriundo do MS n. 22.503, a preservação da atribuição prevista no inciso II do caput do artigo 60 da Constituição e ainda o trato específico com o procedimento legislativo de PEC de origem no “Poder Executivo”, o multicitado precedente não poderá incidir no caso da PEC 171/1993, cuja origem é legislativa (Câmara dos Deputados).

Por certo, a efetiva análise da “matéria” no Plenário da Casa Legislativa não pode ser ignorada frente à redação do § 5º do artigo 60 da Constituição. A votação em plenário é fator importante e pode, quem sabe, vir a ser adotado enquanto guia para a instauração do período de maturação e reflexão democrática – a fim de que sejam renovados os debates até que chegue à nova sessão legislativa, viabilizando outra votação sobre a matéria. O regimento deve ser interpretado conforme à Constituição[5] e não o inverso. Se for constatado o equívoco da prática legislativa, a superação (overruling) do posicionamento anterior é medida impositiva.

Por outro lado, diante de duas votações de emendas aglutinativas seguidas (MS n. 33.630-MC) e da escancarada vontade de vencer a todo custo – situação televisionada entre 30 de junho e 2 de julho de 2015 pela maioria na Câmara dos Deputados –, talvez não reste dúvida para os futuros julgadores que, realmente, o ministro Marco Aurélio – mais de 19 anos antes da ressurreição da PEC n. 171/1993 –, estava certo ao afirmar que, com a aceitação da prática legislativa ora comentada, “aberta estará a via da fraude ao que contém no § 5º do artigo  60 da Constituição Federal”, ensejando a necessidade de overruling – superando-se o entendimento anterior. Em tal caso, o STF passaria a visualizar que, de fato, as votações sucessivas em Plenário de objetos aparentemente distintos e próximos são realmente técnicas para perpetuar o debate de PEC’s, contrariando o § 5º do artigo 60 da Constituição.

Caso alguma das hipóteses acima seja adotada pelo Supremo Tribunal Federal, ocorra superação ou de distinção quanto ao precedente decorrente do MS n. 22.503, o resultado, de certo modo, é um só: enquanto uns tem sua revanche em 24 horas, eis que um voto-vencido, mais de 19 anos depois de sua derrota, deve encontrar sua redenção. Mas parar isso, precisamos decidir em S2 e não nos satisfazermos com as aparências.


Notas e Referências:

[1] BECKER, Laércio. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2012, p. 542.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 102.

[3] CATTONI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.

[4] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Tradução: Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 254.

[5] Sobre o tema, vide: MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 390 ss.; BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 325-326 [2ª tir. 2012].

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011 [2ª tir. 2012].

BECKER, Laércio. Qual é o jogo do processo? Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2012.

CATTONI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.

DIDIER, Fredie. BRAGA, Paula. OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 9ª ed. Salvador: Jus Podivm, 2014.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Tradução: Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo CPC. São Paulo: RT, 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e controle de constitucionalidade material: aportes hermenêuticos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

______. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

STRECK, Lênio. ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

WATTS, Ducan J. Tudo é óbvio: desde que você saiba a resposta. 5ª ed. Tradução: Letícia Dalla Giacoma de França. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2013.


Alexandre Morais da Rosa

 

Alexandre Morais da Rosa é Professor do Curso de Direito da UFSC da UNIVALI-SC. Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                


Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). Email:  mauriliocasasmaia@gmail.com

   


Imagem Ilustrativa do Post: “Painting by Rasim Aksan (Turkey)..." // Foto de: See-ming Lee //Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/seeminglee/9040288374/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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