Em artigo publicado no dia 23.03.16[1], defendeu-se que as condutas imputadas à Presidente Dilma Rousseff não configuram, nem em tese, crime de responsabilidade, razão pela qual o STF deve barrar ou anular o processo de impeachment instaurado contra ela pelo Presidente da Câmara dos Deputados, por ausência de justa causa justificadora do processo. Explicou-se que, pela Súmula 722 do STF, crimes de responsabilidade são considerados matéria de competência legislativa da União em razão de serem considerados crimes – tendo em conta os precedentes que geraram dita súmula[2] – assim, aplica-se aqui a mesma lógica dos processos penais em geral, a saber, a possibilidade de trancamento da ação por atipicidade da conduta. Ou seja, quando a conduta é considerada atípica (não é descrita, abstratamente, como ilícita), não pode haver processo que vise a punição criminal de tal conduta. Assinalou-se que, ainda que, contrariamente a tal súmula, se afirme que os “crimes de responsabilidade” não seriam “crimes [penais]” (o que nem tem razão de ser, pois a própria Lei do Impeachment, art. 38, aduz que a ela aplica-se subsidiariamente o Código de Processo Penal, a reforçar o caráter penal dos crimes de responsabilidade), mesmo assim o fato de o rol de crimes de responsabilidade ser evidentemente taxativo (não admitir extensões analógicas) exige que fatos não tipificados como crimes de responsabilidade não possam gerar o impeachment. E isso pela diferença basilar entre Presidencialismo e Parlamentarismo, a saber, impeachment não ser sinônimo de voto de desconfiança parlamentarista: neste, qualquer descontentamento político pode gerar a queda do(a) Chefe de Governo, mas naquele, somente crimes de responsabilidade podem isto ensejar.
Lembre-se que o próprio termo impeachment, gestado originalmente no constitucionalismo inglês para referir-se à destituição de ministros (como famoso caso de 1621 de Francis Bacon), foi substituído em 1706 pelo voto de desconfiança, em uma diferença necessária para flexibilizar o sistema parlamentarista.[3] No que incorporado à tradição estadunidense, o impeachment buscou se comprometer com a estabilidade do presidencialismo. Logo, no caso brasileiro, o próprio princípio presidencialista, constitucionalmente consagrado, justifica a nulidade de impeachment decretado por fato atípico.
Posteriormente, em novo artigo, publicado em 31.03.16[4], demonstrou-se que os argumentos apresentados pelo Conselho Federal da OAB para pedir o impeachment da Presidente da República também não se configuram como crimes de responsabilidade.
Em síntese, os argumentos foram os seguintes: o processo de impeachment foi instaurado com base nas acusações relativas às pedaladas fiscais e à assinatura de decretos não-numerados – aquelas, segundo a acusação, configurariam o crime de realização de operação de crédito tipificada na Lei do Impeachment e estes teriam violado a lei orçamentária. Contudo, demonstramos que: (i) não há operação de crédito realizada pela Presidência da República, tanto que o TCU afirmou que a conduta em questão seria “equivalente” a uma operação de crédito – e o termo “equivalente” notoriamente caracteriza o julgamento por analogia, algo manifestamente incabível em casos penais (e mesmo em casos de sanções não-penais, que também exigem tipicidade estrita); (i.1) que ainda que (por absurdo) assim não se entenda, o crime de responsabilidade refere-se à realização de operação de crédito com outro ente federativo ou com entidades da administração indireta deste, não com bancos públicos do próprio ente federativo (no caso, da própria União); (ii) ainda que eventualmente se entenda que os decretos não-numerados configurariam afronta à lei orçamentária caracterizadora de crime de responsabilidade, fato é que o Congresso Nacional aprovou o PLN n.º 05/2015, proposto justamente para adequar a Lei Orçamentária a referidos decretos, donde, se o crime refere-se a violar a Lei Orçamentária e esta ratifica os decretos não-numerados de créditos extraordinários, a eles se adequando, então há verdadeira abolitio criminis, por inexistência de violação a uma lei que se adequou à conduta que se alega que a teria violado.
Ademais, sobre as acusações feitas pela OAB para além destes temas, aduziu-se a obviedade segundo a qual “renúncia fiscal” para a Copa do Mundo, para além de fato atípico e para além de compromisso assumido pelo país para receber dito evento, depende de lei aprovada pelo Congresso Nacional para ser efetivada. Ou seja, não foi ato isolado da Presidente da República, mas ato do Congresso Nacional, donde teratológica a acusação respectiva da OAB. Outrossim, cabe lembrar que a própria OAB afasta a possibilidade de condenar a Presidente por acusações de corrupção, por ausência de mínimos indícios probatórios sobre o tema, mas meras ilações/suposições, não se podendo condenar ninguém por isso. Já sobre a delação premiada do Senador Delcídio do Amaral, a legislação de regência afirma que a delação sozinha não pode servir de prova única para a condenação de ninguém, o que evidentemente também se aplica a processos de impeachment.
Por fim, sobre a acusação de suposta interferência no Poder Judiciário pela nomeação do ex-Presidente Lula para o Ministério da Casa Civil, afirmou-se ser pura ilação/suposição desprovida de mínimos indícios concretos que sustentem a afirmação de que a malfadada e já famosa gravação ilícita da fala sobre o envio do “termo de posse” ao mesmo configuraria “prova” de que haveria um tal intuito. Uma suposição arbitrária, porque não há nada na referida fala que isso justifique, tratando-se de verdadeiro “triplo carpado mortal hermenêutico”, na famosa expressão do ex-Ministro Ayres Britto, uma tal “conclusão”. Ao passo que o processo contra o ex-Presidente continuaria em trâmite perante o STF, daí ser verdadeiramente teratológico afirmar que a referida nomeação teria o condão de salvaguardar o ex-Presidente da Justiça (até porque, no limite, este poderia recorrer precisamente ao STF contra decisões a si contrárias).
Aqui entra a principal crítica que merece o artigo de Pedro Canário, no site Consultor Jurídico[5]. Canário, citando a decisão do Ministro Gilmar Mendes que suspendeu a posse do ex-Presidente Lula, afirmou que estaria configurado o citado crime de responsabilidade de interferência no Poder Judiciário. Ocorre que, para além de se tratar, como já dito aqui, de ilação/suposição puramente arbitrária, a partir de divulgação ilícita de interceptação telefônica ilícita, bem como ignorando que não se trata de ato administrativo o de nomeação, mas ato de governo insindicável judicialmente, uma vez preenchidos os requisitos constitucionais do art. 87, cabe notar que o próprio Ministro Gilmar Mendes negou estar afirmando suposto animus de fraude da Presidente da República – ele suspendeu o termo de posse em argumentação pautada na situação objetiva dos fatos concretos[6], ou seja, pela lógica do princípio da boa-fé objetiva.
Isso significa que Pedro Canário defende uma verdadeira responsabilidade penal objetiva contra a Presidente da República, dado que crimes de responsabilidade são crimes (cf. os precedentes da Súmula 722 do STF – o leitor deve acessar a íntegra dos precedentes para isto apurar, mas os trechos respectivos encontram-se em no primeiro artigo, supra disponibilizado). Ou, ainda que rompendo arbitrariamente com a história institucional para se afirmar que não seriam “crimes verdadeiros” os crimes de responsabilidade, de qualquer forma Pedro Canário defendeu a aplicação de responsabilidade sancionatória objetiva, igualmente descabida (teratológica). A responsabilidade penal e mesmo a responsabilidade sancionatória não penal exigem comprovação de dolo (ou culpa, quando a lei admite a modalidade culposa, o que não é o caso dos crimes de responsabilidade em questão). Daí a verdadeira teratologia da proposta do referido artigo. Claramente, o intento do articulista é fazer afirmações buscando legitimar o argumento daqueles que querem enxergar a nomeação do ex-Presidente Lula como a prática de um crime de responsabilidade e, para isso, ele lança mão do (segundo!) parecer apresentado pelo Procurador Geral da República[7]. Vale chamar a atenção para o fato de que os tais “fatos de domínio público” citados por este segundo parecer do PGR se referem, cabe repetir, a conversas telefônicas que, ao menos em parte, foram obtidas de forma ilícita, como se teve oportunidade de mostrar noutra ocasião[8] e, logo, não poderiam constituir base nem para o inquérito original e nem para qualquer outra acusação, pois que o vício “persegue” tal prova para onde se queria utilizá-la. No restante, são “ilações” que procuram afirmar uma responsabilidade objetiva, que é inadmissível.
Ademais, em uma República, precisamos levar a sério as instituições e o próprio Direito. Desde quando, pois, argumento de autoridade, cujo único fundamento possível é o Direito vigente, se transforma em argumento de verdade, independentemente do devido processo legal?
Uma discussão séria precisa ser realizada nesta temática. Precisamos confrontar criticamente pré-conceitos típicos de uma tradição jurídica e política autoritária ainda a tencionar, no interior da própria realidade brasileira, um processo de modernização altamente seletivo[9], para discutirmos um assunto de tal magnitude.
Convenhamos: só há interferência no Poder Judiciário, como hipótese configuradora de crime de responsabilidade, quando o denunciado interveniente atua diretamente sobre um de seus agentes, seja intimidando-o, seja aposentando-o compulsoriamente, seja extinguindo algum cargo ou órgão, exemplos esses legados pela nossa história constitucional em tempos de regimes ditatoriais. A nomeação de um indivíduo para o exercício de um cargo público não é, nem nunca será, de per si, ato que interfira no exercício da Jurisdição.
Há uma exigência de coerência como integridade quando se argumenta sobre quais são os direitos (e deveres) que temos em uma comunidade de princípios. Não se pode dizer qualquer coisa sobre o direito – como tantas vezes chama corretamente atenção Lenio Streck: toda afirmação precisa estar assentada nos princípios que reconhecemos como constituintes de nossa comunidade: presunção de inocência, presunção de boa-fé e de fé pública, contraditório, ampla defesa e devido processo legal são decorrências necessárias das exigências de igual respeito e igual consideração.
Que estes tempos golpistas sirvam para aprendermos a refletir criticamente e, principalmente, aprendermos a contestar supostos argumentos de autoridade, em verdade meras ilações, destituídas de fundamentação racional de acordo com a Constituição e a lei; fundamentação, essa, que é exigência típica e básica de um Estado Democrático de Direito.
Notas e Referências:
[1] Cf. http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/ (último acesso em 09.04.16).
[2] “Ilícitos penais”, e não ilícitos atecnicamente descritos como “crimes” pela Constituição.
[3] LOUGHLIN, Martin. Foundations of public law. Oxford: Oxford University Press, 2010.
[4] Cf. http://emporiododireito.com.br/afinal-a-quem-esta-oab-representa/ (último acesso em 09.04.16).
[5] CANÁRIO, Pedro. Em parecer sobre Lula, Janot acusa Dilma de crime de responsabilidade. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-abr-12/parecer-lula-pgr-acusa-dilma-crime-responsabilidade. Acesso em 13 de abril de 2016.
[6] Medida cautelar em Mandado de Segurança n. 34.070, Min. Gilmar Mendes. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/gilmar-suspende-lula-casa-civil.pdf. Acesso em 13 de abril de 2016. Sobre o julgamento, ver BAHIA, Alexandre; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI, Marcelo. O jurisprudencialismo processual penal no Supremo Tribunal e o esvaziamento das garantias constitucionais. Disponível em http://emporiododireito.com.br/jurisprudencialismo-processual-penal/. Acesso em 13 de abril de 2016; e, MEYER, Emilio Peluso Neder. A colcha de retalhos de Gilmar Mendes. Disponível em http://jota.uol.com.br/colcha-de-retalhos-de-gilmar-mendes. Acesso em 13 de abril de 2016.
[7] Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/parecer-janot-lula.pdf. Acesso em 13 de abril de 2016. Note-se que se trata de um segundo parecer, posto que o PGR havia apresentado outro anteriormente, com teor diferente sobre a mesma causa (ver notícia disponível em http://www.conjur.com.br/2016-mar-28/dilma-nomear-lula-ato-desvio-finalidade-janot, acesso em 13 de abril de 2016). Sobre essa mudança de entendimento por parte do PGR, ver o excelente artigo, YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Janot foi inconsistente ao opinar sobre nomeação de Lula como ministro. Disponível em www.conjur.com.br/2016-abr-11/yarochewsky-janot-foi-inconsistente-opinar-lula. Acesso em 13 de abril de 2016.
[8] “Primeiro, é preciso discutir a legalidade dessa gravação, já que o próprio juiz Sérgio Moro reconheceu que a gravação foi feita após ele ter determinado o fim do grampo, embora inexplicavelmente não tenha visto ilegalidade nisso. Ora, se não havia mais autorização legal para o grampo, este constitui prova ilícita, a qual, portanto, não pode motivar condenação nenhuma, seja por crimes comuns, seja por crimes de responsabilidade: e pouco importa se o Governo admitiu a conversa posteriormente, pela teoria dos frutos da árvore envenenada, que obviamente abarca a ‘confissão extrajudicial’, que é, afinal, meio de prova – e aqui cabe citar preciso artigo de Lenio Streck, pelo qual ele corrobora a questão da ilicitude da prova em questão (ora, tendo sido determinado o fim do grampo, gravações posteriores a tal decisão judicial não podem ser consideradas). Segundo, cabe considerar que em hipótese alguma um juiz poderia divulgar ao público uma interceptação telefônica envolvendo a Presidente da República, pelo simples fato de que ele não tem competência alguma para fazê-lo, devendo tão somente remeter, sob sigilo, a questão ao STF, ainda que a intercepção telefônica fosse, em princípio, regular, o que, de fato, não era (somente o STF poderia eventualmente decidir sobre divulgar tal conversa, por ser o juiz natural de conversas interceptadas junto a autoridades). O que significa, mais uma vez, que um impeachment motivado nisto seria inconstitucional, no mínimo, pela vedação constitucional ao uso de provas ilícitas no processo (art. 5º, LVI c/c X e XII, ambos da CF/88, além, é claro, do que dispõem a lei 9.296/96, art. 9.º e 10, e a Resolução n. 59/2008 do CNJ, com redação dada pela Resolução n. 217/2016, at. 17)” (http://emporiododireito.com.br/supremo-tribunal-federal-deve-barrar/#_ftn14). Ver também artigo do Prof. Lenio Streck mencionado: http://www.conjur.com.br/2016-mar-21/lenio-streck-escutas-juristas-revelam-moristas-moro.
[9] Sobre essa noção, ver SOUZA, Jessé. Modernização seletiva. Brasília: UnB, 2000; SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. São Paulo Leya, 2015.
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