Os meios de comunicação no Brasil atual: entre a normatividade democrática da Constituição e a Realpolitik da mídia oligárquica

09/05/2016

Por Enzo Bello e Samantha S. Moura Ribeiro - 09/05/2016*

Em outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil normatizou o objetivo de concretizar uma democracia plena. A reconstrução democrática, após duas décadas de regime autoritário, e em um contexto de profunda desigualdade socioeconômica, requer a domesticação dos fatores reais de poder através da vontade constitucional de mudança. A incorporação do ethos da mudança identificada como o modelo da Constituição Dirigente rendeu à nossa Constituição Cidadã acusações de ser desligada da realidade e meramente nominal. Desde então, a história foi marcada por disputas entre a vontade constitucional de se construir uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos” e a resistência dos setores beneficiados pelas relações de poder até então estabelecidas.

Uma democracia plena pressupõe inclusão e participação de todos os cidadãos no debate público que define as regras que pautam a convivência social. Só assim é possível garantir a abertura de horizontes necessária à representação ampla de diversas visões de mundo. Caso exista a exclusão de pessoas e grupos sociais dessa participação, o que se tem é uma visão de mundo aparentemente consensual, mas cunhada por aqueles a quem o acesso à informação e a definição do debate público são franqueados. A democracia pressupõe debate público permeado por igualdade material e pluralidade de visões de mundo.

Na nossa Constituição, para além do artigo 5o, que elenca entre os direitos fundamentais e individuais a liberdade de pensamento, de expressão e o acesso à informação, o art. 220 inaugura o capítulo sobre comunicação social assegurando que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação devem ser livres de qualquer restrição. Mais a frente, o § 5o expressamente inclui entre as restrições à informação que não devem ser toleradas aquelas decorrentes de distorções do mercado: “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. A existência de meios de comunicação livres, independentes e informativos é fundamental para o bom funcionamento da democracia, pois é ela que permite o contato das pessoas com diversas versões, opiniões e perspectivas, equipando-as com o instrumental necessário para exercer a sua cidadania de forma autônoma.

Ao contrário do que determina a Constituição, o Brasil vem por muito tempo vivendo essa realidade excludente em que poucos controlam a pauta de discussão política e definem para si e para os outros as narrativas políticas e a identidade cultural. Tal exclusão fere a Constituição tanto em nível principiológico – contrariando a opção fundamental por uma sociedade democrática e, portanto, plural, inclusiva e fraterna –, como também naquilo que diz respeito especificamente às garantias de acesso à informação e à regulação dos meios de comunicação social.

Menos de uma dezena de famílias tradicionais controlam os principais meios de comunicação social do país, e inúmeros políticos em exercício de mandatos públicos eletivos são donos ou acionistas de empresas privadas de serviços de telecomunicações, o que viola o art. 54, II, ‘a’, da CF. Quanto a este último caso, tramita no STF a ADPF 246, que visa a cancelar a outorga de concessões públicas para esse verdadeiro “coronelismo eletrônico”[1], o que sequer deveria ter ocorrido.

Nessas condições de um oligopólio plutocrático, o mesmo discurso ideológico se produz e reproduz, tornando-se o meio mais poderoso de resistência reacionária às mudanças democráticas constitucionais. Apelando-se inclusive para interpretações distorcidas de valores democráticos, difunde-se a ideia de que qualquer regulação dos meios de comunicação é uma forma de censura.

Trata-se do que Owen Fiss chama de “efeito silenciador do discurso”[2]. Paradoxalmente, as oligarquias proprietárias de empresas privadas que exploram lucrativamente canais públicos de comunicação abafam o debate democrático, através de uma retórica falaciosa e vitimista de que disciplinas estatais de pluralização seriam intervenções ilegítimas na liberdade de imprensa.

A falsidade do consenso narrativo se tornou clara a partir da penetração da Internet, notadamente a partir da popularização da criação de portais, blogs e mais recentemente das redes sociais. A Internet passa a dar visibilidade a contra narrativas, não mais permitindo a construção exógena de significados. A Internet se torna um canal de expressão, discussão e mobilização política daqueles sujeitos até então invisibilizados pela mídia tradicional. A consequência off-line desse movimento se tornou aparente a partir de junho de 2013, quando houve diversos movimentos populares de protestos pedindo maior permeabilidade do sistema político, maior inclusão social e, principalmente, maior acesso à cidade.

Junho de 2013 causou efeitos distintos: enquanto uns foram invadidos pela esperança de que o empoderamento informacional e político trazido pela Internet não mais poderia ser revertido, outros que viviam beneficiados pelo consenso narrativo ilusório sentiram-se fortemente ameaçados. A partir daí as divisões e polarizações existentes, mas até então passíveis de serem ignoradas, ou ao menos não vociferadas, vieram à tona com uma potência alarmante. A resistência à inclusão do outro se deu através de um discurso conservador amplo e aberto, e da instrumentalização de todos os meios para a sua propagação. O governo que, em princípio sinalizou uma disposição a ouvir a voz das ruas, em seguida se fechou, deixando de atender as demandas por abertura e diálogo.

Nesse momento se tornou claro que, não obstante a abertura trazida pelos canais da Internet e a mídia alternativa, que permitiram a expressão de vozes silenciadas, ela não era suficiente em face da instrumentalização da mídia tradicional. O acesso à internet se tornou mais amplo a partir da Internet móvel e dos smartphones, e tal forma de acesso permitiu o uso das redes sociais e da Internet principalmente pelos mais jovens. Contudo, a população em sua grande maioria ainda se informa através da mídia tradicional; portanto, ainda é essencial que se busque efetivar os ditames constitucionais de regulação para impedir o oligopólio e garantir que os canais de mídia tradicional não produzam uma só visão parcial e hegemônica.

A necessidade de uma mídia livre e plural no Brasil revelou-se ainda mais urgente nos últimos anos. O relatório publicado pelos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em abril de 2016 aponta que o Brasil se tornou um país menos livre, tendo caído quarenta e seis posições no índice de liberdade de imprensa nos últimos cinco anos. Entre os problemas principais estão a violência e a hostilidade contra jornalistas, acirradas pela instabilidade política em um contexto em que a propriedade e o controle da mídia continuam concentrados nas mãos de famílias do setor industrial, ligadas à classe política[3].

Já em 2013, o relatório da RSF descrevia o Brasil como “O País de Trinta Berlusconis”[4], e destacava o comentário do então Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, que era mais fácil afastar um presidente do que retirar a concessão de transmissão de qualquer político. De fato, tal afirmativa mostrou-se quase premonitória em face dos recentes acontecimentos na política brasileira, em que um processo de impeachment caracteriza-se como um verdadeiro golpe, manejado numa articulação midiática e judiciária, contra a soberania popular do voto.

Em um momento de recessão econômica e instabilidade política, com alto índice de reprovação do governo federal, o poder da mídia tradicional reassumiu papel determinante para a formação da opinião pública e construção da saída política mais benéfica para as tradicionais oligarquias industriais – midiáticas. Tais acontecimentos mostram que o potencial democrático da Internet ainda não acessível a todos é passível de bloqueio em face de um discurso parcial e hegemônico da mídia tradicional. Diante desse cenário, a defesa de uma pauta que inclua a regulação estrutural das concessões para garantir o livre acesso à informação torna-se urgente. Se a garantia da neutralidade do discurso midiático tem se provado uma utopia, ao menos o livre acesso à pluralidade de parcialidades deve ser garantido ao cidadão, para que faça suas escolhas de forma consciente e autônoma.

Nesse sentido, algumas ações vêm sendo adotadas no âmbito do Estado brasileiro, a partir de reivindicações da sociedade civil baseadas nos avanços da tecnologia da informação.

(i) O governo federal vem investindo, desde 2010, no Plano Nacional de Banda Larga, que visa a ampliar e democratizar o acesso à internet de alta velocidade através de um plano de banda larga popular, o “Programa Banda Larga para Todos”, que almeja proporcionar acesso à Internet a 95% da população brasileira. O número saltou de 30% de 2006 para 58% em 2015[5], porém a falta de investimentos mais expressivos, somada à falta de qualidade do serviço e a outros fatores políticos e de gestão, torna a meta inicial bastante improvável.

(ii) Enquanto ainda vige o antigo Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, atualizado pela Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, o Congresso Nacional não avança na regulamentação de normas constitucionais que tratam da democratização dos meios de comunicação, restando com a tramitação parada os Projetos de Lei 256/91 e 6446/13, que versam sobre a produção regional independente na televisão aberta e o direito de resposta, respectivamente.

(iii) Em 2014, após um longo processo, foi aprovado o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965), bastante celebrado pelo procedimento democrático da sua elaboração e pelo seu conteúdo dedicado a à garantia dos direitos dos usuários da Internet e à proteção da Internet livre e aberta. Contudo, o Marco Civil é alvo de constante ataque, seja pelas interpretações judiciais equivocadas contrárias à sua finalidade, causadas em grande medida pela falta de regulamentação, seja pelas constantes propostas legislativas de emendá-lo e contrariá-lo naquilo que lhe é mais caro: a neutralidade da rede, a limitação da responsabilidade dos provedores, e as garantias de liberdade de expressão e privacidade dos usuários.

Enquanto isso, não há ações concretas para a descriminalização das rádios comunitárias.

(iii) Tramitam no STF, desde 2010, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs) nº 10 e 11, que pedem a declaração de mora do Congresso Nacional quanto à regulamentação legal de exigências constitucionais envolvendo o direito de resposta (art. 5º, V), os princípios da produção e programação das emissoras de rádio e televisão (art. 221), além da regulação dos meios de comunicação para que se dissipe o seu antigo oligopólio (art. 220, §5º). Os processos encontram-se parados no gabinete do Min. Gilmar Mendes.

De todo modo, tais iniciativas ainda não foram capazes de garantir o livre acesso à informação.

A partir do fator tecnologia, em junho de 2013 ficou patente no Brasil o crescimento da busca por informações em meios alternativos aos tradicionais, o que se repetiu nas eleições de 2014. Esse fenômeno já havia ocorrido nas eleições presidenciais de 2008 nos EUA e 2011 no Peru, respectivamente, nas quais as campanhas de Barack Obama e Ollanta Humalla contaram com coordenações de redes sociais, que foram decisivas para o ganho de votos entre inúmeros jovens ao abordá-los no espaço das redes e com a linguagem destas.

No aspecto econômico, a migração de publicidades e de grandes anunciantes da TV aberta para as mídias da Internet tem reduzido drasticamente o faturamento da maior emissora do Brasil. Simultaneamente, iniciativas como o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC) e os recentes movimentos sociais nas redes demonstram uma migração também de usuários, que cada vez mais deixam para trás a passividade do modelo da televisão, no qual só se recebe informação, e assumem uma postura também ativa expondo suas opiniões, posicionamentos e visões de mundo. E mais, criam novas mídias e articulam ações concretas voltadas à democratização do acesso à informação, de modo amplo e plural, mostrando que é possível a cada cidadão, por conta própria, construir canais e conteúdos de comunicação. Recupera-se assim um fato esquecido ou mascarado: antes de serem mercadorias, a comunicação e a informação representam relações sociais entre pessoas. Esses parecem ser o espaço e os atores de uma desejosa e necessária mudança de perspectiva – da Realpolitik da mídia oligárquica para o pluralismo democrático preconizado pela normatividade da Constituição Federal de 1988.


Notas e Referências:

[1] SANTOS, Suzy dos. E-Sucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas comunicações brasileiras. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, dez., 2006, p. 1-27. Disponível na internet em: www.compos.com.br/e-compos.

[2] FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade da esfera pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 78.

[3] 2016 World Press Freedom Index, https://rsf.org/en/ranking.

[4] “The Country of Thirty Berlusconis Brazil January 2013”, Reporters without Borders, for Freedom of Information, https://rsf.org/sites/default/files/brazil_report.pdf

[5] https://nacoesunidas.org/quase-60-da-populacao-brasileira-tem-acesso-a-internet-aponta-relatorio-da-cepal/.


* Os temas e debates apresentados neste texto são aprofundados no livro “Democracia nos Meios de Comunicação: pluralismo, liberdade de expressão e informação”, organizado pelos autores, no prelo pela Editora Lumen Juris (Rio de Janeiro), com previsão de lançamento para julho de 2016.


Enzo BelloEnzo Bello é Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).


Samantha S. Moura Ribeiro. Samantha S. Moura Ribeiro é Doutora em Direito pelo Instituto Universitário Europeu em Florença (Itália). Professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro do Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio (NEC/PUC-Rio).. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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