Onde não procurar a paz: a perturbação da tranquilidade na Lei Maria da Penha

28/12/2016

Por Luanna Tomaz de Souza - 28/12/2016

Tem ganhado minha atenção o aumento do número de casos de pessoas enquadradas na contravenção “perturbação da tranquilidade de alguém”, em especial nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM´s).

É interessante observar como a Lei de Contravenções Penais[1], tão criticada nos últimos anos, inclusive com dispositivos sendo considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF)[2], tem alcançado tamanho relevo nas DEAM´s e Varas de Violência Doméstica e Familiar.

A CONTRAVENÇÃO PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE

O capítulo VII da Lei de Contravenções Penais, no qual está inserido esse tipo, disciplina sobre contravenções relativas à polícia de costumes, destacando-se o artigo 65:

Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:

Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.

Para que se configure a contravenção mencionada, um agente, supostamente, deveria agir intencionalmente praticando um ato visivelmente perturbador ou molestador da paz de espírito, ou do sossego da vítima, promovendo-lhe injustos dissabores, ou atribuições injustas, ou lhe induzindo a sobressaltos e preocupações. O tipo penal compreende dois aspectos: o ataque ao bem juridicamente tutelado (a tranquilidade) e o modus do ataque (por acinte ou por motivo reprovável).

A tranquilidade, sem dúvida alguma, constitui direito inerente a toda pessoa, em virtude do qual está autorizado a impor que lhe respeitem o bem-estar ou a comodidade de seu viver. A molestação - ou a perturbação à tranquilidade pessoal - ocorre sempre que forem causados incômodos, aborrecimentos, tormentos ou irritações para a vítima, por parte do agente.

A tranquilidade, do latim tranquilitas (calma, bonança, serenidade), exprime o estado de ânimo, sem preocupações, nem incômodos, que traz às pessoas uma serenidade, ou uma paz de espírito. Revela assim a quietude, a ordem, o silêncio, a normalidade das coisas, que, como se faz lógico, não transmitem nem provocam sobressaltos, preocupações ou aborrecimentos, em razão dos quais se possa perturbar a vida alheio.

Relaciona-se o direito a tranquilidade com o direito a paz. Em âmbito internacional, este direito foi plenamente reconhecido principalmente no que concerne a relação entre Estados. Segundo Alarcon[3], este pode ser interpretado duplamente: atendendo aos aspectos da ordem interna, onde constitui garantia de solução dos conflitos limitando ao máximo o uso da violência; e permitindo o desenvolvimento progressivo da personalidade dos indivíduos na sociedade nacional.

Em âmbito jurídico internacional, temos o artigo primeiro da Declaração sobre a Preparação da Sociedade para Viver em Paz de 1978[4], que expressa claramente que todas as nações têm o direito inerente à paz, e a Declaração sobre o Direito dos Povos à Paz de 1984[5], que expressa que os povos do planeta têm o direito sagrado à paz, declarando que proteger tal direito e fomentar a sua realização constitui uma obrigação fundamental de todo o Estado.

A Declaração sobre uma Cultura de Paz aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1999[6], ressalta que, dentre outros aspectos, o desenvolvimento pleno de uma Cultura de Paz está integralmente vinculado a promoção da resolução pacífica dos conflitos, do respeito e entendimento mútuos e da cooperação internacional; à promoção da democracia, do desenvolvimento dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e ao seu respectivo respeito e cumprimento; à possibilidade de que todas as pessoas, em todos os níveis, desenvolvam aptidões para o diálogo, negociação, formação de consenso e solução pacífica de controvérsias; à eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher.

A efetividade deste direito, todavia, depende de um conjunto de condições de variada ordem – econômicas, políticas, sociais, culturais que promovam o bem estar social e também individual, pois o acirramento dos conflitos tem levado a sociedade a um alto grau de sofrimento e adoecimento desenvolvendo diversos problemas de saúde, tais como ansiedade, depressão, stress, síndrome do pânico[7].

Em caso de violação do referido direito são possíveis diversas repercussões. Sem dúvida alguma, a tranquilidade, a paz, constitui direito inerente a toda pessoa, em virtude do qual está autorizado a impor que lhe respeitem o bem-estar ou a comodidade de seu viver, a questão seria: isso deveria se dar através do Direito Penal?

A PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE DE ALGUÉM E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR 

Com o advento da Lei Maria da Penha, determinadas contravenções penais que sequer geravam Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO´s) passaram a ganhar maior espaço e isso ocorre por diversas razões.

A Lei Maria da Penha, dentre muitos avanços traz a definição de diversas formas de violência, que seriam de ordem psicológica, sexual, patrimonial, física e moral (art 7º)[8]. Esses conceitos são interessantes para esclarecer o fenômeno da violência, mas não trazem tipificações correspondentes. Nesse sentido, num contexto em que se busca o enfrentamento à diversas formas de violência doméstica e familiar, termina-se recorrendo a tipos penais aberto, que abrigam condutas muito diversas, como o objeto deste artigo.

Para se ter uma ideia, em 2013 esta foi a 4ª maior infração na DEAM (Divisão Especializada de Atendimento à Mulher) de Belém. Em 2015, alcançou o terceiro lugar[9], no Estado.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, em levantamento feito dos anos de 2011 a 2012, dos crimes registrados contra mulheres na unidade federativa 20,2% correspondem a vias de fato e 6,6% a perturbação da tranquilidade[10].

São muito comuns os relatos de homens que não aceitam o fim do relacionamento e terminam perseguindo suas ex-companheiras, ligando insistentemente, fazendo postagens abusivas em redes sociais, procurando conhecidos, indo até seus locais de trabalho.

Em alguns países tem ganhado relevo uma conduta mais específica para esses casos do que a prevista no art. 65 da LCP que seria o chamado “stalking”, que se origina da palavra “stalker”, que em inglês significa perseguir. Esa conduta foi inclusive incluída no Projeto de Novo Código Penal:

Art. 147.

Perseguição Obsessiva ou Insidiosa

§ 1º. Perseguir alguém, de forma reiterada ou continuada, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade. PenaPrisão, de dois a seis anos, e multa.

O próprio tipo penal proposto é extremamente aberto, sendo muito mais uma reprodução de modelos penais de outros país, sem a devida adequação à realidade do país.

CONSIDERAÇÕES

A Lei das Contravenções Penais, tipificou uma serie de condutas com tipos abertos, a exemplo das famosas “vias de fato” (art. 21) e “perturbação da tranquilidade de alguém” (art. 65), o que levou, ao longo do tempo, a ampliação da criminalização de condutas.

No âmbito da violência cometida contra a mulher, a falta de tipos relacionados as violências conceituadas na Lei Maria da Penha, como a de violência psicológica, gera um ânimo no agente do direito em fazer a referida correlação e punir os agressores, enquadrando em algum tipo penal. A Lei Maria da Penha terminou dando espaço para tipos penais que não estavam mais sendo aplicados, contribuindo para um expansionismo penal.

A Lei de Contravenções Penais surgiu de uma política de criminalização da massa pobre do Brasil e de utilização do direito penal para moralização de condutas. Essa lei não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, logo o intérprete do direito não pode fazer uso dos tipos penais nela contidos sob pena de excesso de persecução criminal.

Boa parte das demandas das mulheres poderia ser atendida através de outras formas de resolução, como círculos restaurativos, medidas cautelares de proibição de determinadas condutas ou sanções reparatórias cíveis. Sob a perspectiva da criminologia feminista crítica, se defende a necessidade de enfrentamento das violências sofridas pelas mulheres, mas se reconhece os limites da tutela penal. O Direito Penal é uma arma violenta que historicamente alijou e reprimiu determinados grupos, inclusive às mulheres, e não pode ser ampliado sob pena de expandirmos cada vez mais violências, opressões, e passarmos ao largo do efetivo combate a realidade de discriminação e violência.


Notas e Referências:

[1] Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941.

[2] STF. Plenário: dispositivo da Lei de Contravenções Penais é incompatível com a Constituição. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=250053

[3] ALARCÓN Pietro de Jesús Lora. O direito à paz: a constitucionalização de um direito fundamentalmente humano. Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

[4] Resolução 33/73 da ONU

[5] Resolução 39/11 da ONU

[6] Resolução nº 53/243

[7] Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), estima-se que a depressão é a principal causa de doença e de inaptidão entre os adolescentes com idades entre 10 e 19 anos, pelo aumento das situações de pobreza. Disponível em: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/05/depressao-e-doenca-mais-frequente-na-adolescencia-alerta-oms.html. Acesso em 13 dez 2016.

[8] São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

[9] ORM. Agressão predomina contra as mulheres. Disponível em: http://www.ormnews.com.br/noticia/agressao-predomina-contra-as-mulheres. Acesso em: 22. dez. 2016.

[10] Disponível em: http://monitoramentocedaw.com.br/wp-content/uploads/2014/01/ESTAT%C3%8DSTICAS-CRIMINAIS-LEI-MARIA-DA-PENHA.pdf. Acesso em: 22 jun. 2014.


luanna-tomaz-de-souza. Luanna Tomaz de Souza é Doutora em Direito (Universidade de Coimbra). Professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia e da Clínica da Atenção à Violência da UFPA. Autora do livro: “Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha”.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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