O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL E A JUSTIÇA MILITAR

15/05/2024

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que os Acordos de Não Persecução Penal podem ser oferecidos em processos da Justiça Militar. Por unanimidade, o colegiado entendeu que, como não há proibição expressa, o instituto, que visa reduzir sanções penais, pode ser aplicado em processos criminais militares. A decisão foi tomada na sessão virtual encerrada em 26 de abril.

O caso dos autos é referente a dois réus civis detidos na Estação Meteorológica de Maceió que, apesar de desativada, está sob a responsabilidade do Exército. Em depoimento, afirmaram ter entrado no local apenas para coletar jacas e pescar. Eles foram condenados a penas de 6 e 7 meses de detenção, respectivamente, pelo delito de ingresso clandestino em área militar.

A Defensoria Pública da União, que representou os dois réus, pediu que fosse oferecido o ANPP, mas a Justiça Militar negou, sob o argumento de que não seria cabível em ações penais iniciadas antes da vigência do Pacote Anticrime. No Superior Tribunal Militar, o pedido foi novamente negado, dessa vez ao fundamento de que não havia previsão legal expressa para processos penais militares.

Em seu voto pela concessão do pedido de Habeas Corpus 232254, o ministro Edson Fachin (relator) reconheceu a possibilidade de oferecimento do ANPP. A seu ver, negar de forma genérica a um investigado na Justiça militar a possibilidade de celebrar o acordo contraria os princípios do contraditório, da ampla defesa, da duração razoável do processo e da celeridade processual.

Em relação ao argumento de que não há previsão legal para aplicação aos crimes militares, o ministro destacou que o Código de Processo Penal Militar, além de não tratar do assunto, estabelece que eventuais omissões serão resolvidas pela legislação comum.

O relator observou, ainda, que a denúncia foi oferecida em 2022, após a vigência do Pacote Anticrime, e que a defesa manifestou interesse na celebração do acordo em sua primeira manifestação no processo. A Procuradoria-Geral da República, em parecer, também considera viável a aplicação do ANPP em crimes militares.

Assim, o colegiado determinou ao juízo de primeira instância que permita ao Ministério Público oferecer aos réus o acordo, se preenchidos os requisitos legais.[1]

Como se sabe, com a promulgação da Lei nº. 13.964/19, que acrescentou ao Código de Processo Penal o art. 28-A, passamos a ter possibilidade de um acordo de não persecução penal, a ser realizado entre o Ministério Público e o investigado. Este acordo só poderá ocorrer se não for o caso de arquivamento do procedimento investigatório, pois se não houver justa causa ou faltarem os pressupostos processuais ou as condições para o exercício da ação penal, deve ser promovido o arquivamento, nos termos do art. 28, do Código de Processo Penal.

O acordo pode ser feito com qualquer investigado em um procedimento formal de natureza investigatória criminal, seja instaurado na Polícia (federal, militar ou civil) ou no próprio Ministério Público (por meio do procedimento investigatório criminal); a propósito, observa-se que a palavra utilizada no texto legal é sempre “investigado”, e não “indiciado”.[2]

Também é possível no caso de investigado com prerrogativa de função, inclusive no próprio Supremo Tribunal Federal (neste caso, a partir da iniciativa do Procurador-Geral da República). A nova lei acrescentou o § 3º. ao art. . da Lei nº 8.038/90: “Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstanciadamente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, o MP poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, nos termos do art. 28-A do CPP.” Nestas hipóteses, o relator sorteado deverá submeter o acordo ao órgão colegiado competente para o processo e julgamento; se homologar monocraticamente, deverá fazê-lo ad referendum, pois, do contrário, estar-se-ia usurpando uma competência que (constitucionalmente) não é dele, mas do órgão colegiado; afinal, também a ele não cabe, monocraticamente, receber a denúncia ou rejeitá-la, caso oferecida. Assim, se não lhe compete, singularmente, receber (ou rejeitar) a peça acusatória, com mais razão não lhe cabe, monocraticamente, homologar um acordo de não persecução penal.

É possível que o acordo seja proposto já na audiência de custódia, desde que haja justa causa e que sejam respeitados o Princípio do Promotor Natural e o do Juiz Natural; ou seja, o membro do Ministério Público e o Juiz que participarem da audiência de custódia devem ser os mesmos que têm, respectiva e originariamente, atribuição e competência para o caso penal.

O pressuposto para a formalização do acordo é que se trate da investigação de uma infração penal (portanto, crime ou contravenção) praticada sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos. Logo, não se admite tais acordos quando se trate de crime cuja pena mínima seja igual ou superior a 4 anos, ou, ainda que não o seja, tenha sido praticada com violência ou grave ameaça.

A violência impeditiva do acordo deve ser dirigida contra a pessoa (e não contra a coisa); assim, por exemplo, nada impede o oferecimento do acordo tratando-se de um furto qualificado com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa; também é possível o acordo no caso de violência apenas no resultado (e não na conduta), como nos casos de crimes culposos com resultado violento (homicídio culposo, por exemplo); neste aspecto, note-se que o próprio Código Penal permite a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos nos crimes culposos, independentemente da pena cominada abstratamente (art. 44, I, in fine, do Código Penal).

Segundo a lei, para aferição da pena mínima serão consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto. Assim, poderá não ser possível a formalização do acordo caso a pena máxima seja de três anos, mas esteja prevista uma causa de aumento de pena de 1/3. Por outro lado, no crime com pena máxima igual ou superior a 4 anos admite-se o acordo, caso haja uma causa de diminuição de pena. Se a causa de aumento de pena é variável (de 1/3 a 2/3, por exemplo), deve-se levar em consideração o “aumento mínimo”, pois é a pena mínima o pressuposto para o acordo. Ao contrário, existindo causa de diminuição de pena variável, aplicar-se-á o maior percentual, ou seja, “a diminuição máxima”.[3] Em relação às agravantes e às atenuantes, não devem ser levadas em consideração, pois são circunstâncias genéricas, cujo quantum não vem estabelecido aprioristicamente pela norma penal.

 

Aqui, importante ressaltar que são aplicáveis ao acordo de não persecução penal, por analogia, os Enunciados 243 e 337 das súmulas do Superior Tribunal de Justiça; assim, é cabível o acordo em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, não ultrapassar o limite mínimo de quatro anos, sendo também cabível na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão acusatória; portanto, caso o Juiz (ou o Tribunal) desclassifique a infração para outra cuja pena mínima seja inferior a quatro anos devem ser enviados os autos para o Ministério Público, a fim de se manifestar sobre a possibilidade do acordo; da mesma forma, caso absolva o réu por um dos crimes, e se a pena mínima do outro não for igual ou superior a quatro anos, devem também os autos ser encaminhados ao Ministério Público para eventual proposta do acordo.

Tratando-se de investigado inimputável, nos termos do caput do art. 26 do Código Penal, não será possível o acordo de não persecução penal, pois se trata de ato personalíssimo, especialmente em relação à exigência da confissão; neste sentido, observa-se o disposto no art. 166, I, do Código Civil[4]; caso se trate de inimputabilidade relativa (parágrafo único do art. 26), pode-se adotar a “tomada de decisão apoiada”, prevista no art. 1.783-A, do Código Civil[5].

Outrossim, nada impede, pelo contrário, que seja feito o acordo de não persecução penal em relação às pessoas jurídicas, nos crimes ambientais, evidentemente, propondo-se condições adequadas ao caso.

Eis o pressuposto. Vejamos os requisitos.

Como primeiro requisito, a lei exige que haja a confissão do investigado, e que esta confissão seja feita formalmente, ou seja, que esteja expressamente esclarecida nas cláusulas do acordo, que deve ser feito por escrito e na presença do Defensor e do Ministério Público.

Ressalta-se que é bastante questionável a exigência da confissão como requisito legal para o acordo de não persecução penal, especialmente à luz do direito ao silêncio, declarado constitucionalmente (art. 5º, inciso LXIII), bem como do direito de não autoincriminação (nemo tenetur se detegere, nemo tenetur ipsum accusare, privilegie against self-incrimination), previsto no Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º., nº. 2, alínea g, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). De toda maneira, feita a crítica, legem habemus.

A lei condiciona a homologação do acordo à realização de uma audiência (que deverá ser, por óbvio, pública e oral) na qual o Juiz das Garantias deverá verificar a voluntariedade da aceitação do acordo (não é exigida a espontaneidade), devendo, para isso, ser ouvido o investigado, na presença do seu Defensor; nesta mesma audiência, o Magistrado verificará a legalidade do acordo, isto é, se está presente o pressuposto, se estão preenchidos os requisitos legais e, finalmente, se as condições acordadas estão conforme a lei. De preferência, não deve estar presente nesta audiência o membro do Ministério Público, a fim de que se afira, efetivamente, a voluntariedade e a higidez da aceitação do acordo; de toda maneira, o Ministério Público poderá ser chamado a participar posteriormente do ato (designando-se uma nova audiência), na hipótese do investigado discordar de alguma cláusula do acordo inicialmente firmado. Deve-se atentar para que a confissão tenha sido feita sem coação de nenhuma natureza, conforme exige o art. 8º., 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Se o investigado praticou, supostamente, duas ou mais infrações penais (e se o somatório das penas mínimas permitir o acordo, nos termos do Enunciado 243 da súmula do Superior Tribunal de Justiça), tendo confessado apenas uma delas, o acordo somente poderá ser feito em relação ao fato admitido, devendo ser oferecida denúncia (caso haja justa causa) no que diz respeito ao outro fato.

Se o investigado confessa a autoria, mas indica fato que lhe favoreça (como, por exemplo, excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, ou mesmo eximentes de pena), não há obstáculo legal para a formalização do acordo. Neste sentido, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a chamada “confissão qualificada” deve ensejar a aplicação da atenuante prevista no art. 65, III, d., do Código Penal. Ora, se ela serve para atenuar a pena, porque não serviria para admitir o acordo?[6]

Uma questão que deverá ser enfrentada pela jurisprudência diz respeito à validade jurídica dessa confissão como elemento de prova para fundamentar uma sentença condenatória, caso o investigado, não tendo cumprido o que foi acordado, venha a ser denunciado. A questão não é de fácil solução, pois, nada obstante ter sido uma confissão feita fora dos autos, de toda maneira, foi ratificada perante o Juiz das Garantias, numa audiência pública, oral, e na presença do Defensor (constituído, dativo ou Público). Nada obstante, não tendo havido ainda (quando foi feita a confissão) uma acusação formal, tampouco instrução criminal, não pode aquela confissão, em nenhuma hipótese, servir de base para uma sentença condenatória, nem mesmo ser compartilhada em outro processo criminal, cível, trabalhista ou administrativo.

Em outras palavras: caso o investigado tenha confessado para fins do acordo, ainda que formal e circunstancialmente (ratificando-a na audiência), mas, posteriormente, quando interrogado na audiência de instrução e julgamento, não confirmou a confissão (retratando-se), o Juiz não poderá utilizar aquela confissão anterior como supedâneo para uma sentença condenatória; afinal, a confissão não foi realizada no bojo de um processo penal. Aliás, como se sabe, nem mesmo a confissão feita durante o interrogatório é prova insofismável e irrefutável da autoria do crime.[7] Note-se que a lei dispõe que a confissão seja feita “circunstancialmente”...

A propósito, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº. 756907/SP, tendo como relator o Ministro Rogerio Schietti Machado Cruz, decidiu que se a sentença condenatória reconheceu a autoria delitiva exclusivamente com lastro em elementos produzidos na fase extrajudicial, especialmente na confissão do acusado feita no acordo de não persecução penal, não confirmada durante a instrução criminal, impõe-se a absolvição do acusado.

Nos termos do voto do relator, “a assunção extrajudicial de culpa no ANPP é similar ao conteúdo de confissão da prática da infração penal perante autoridade policial ou ministerial, somente tendo valor probatório como dado extrajudicial, e somente podendo ser utilizada para subsidiar a denúncia ´caso exista descumprimento do acordo, levando o Ministério Público a oferecer denúncia` (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 (Pacote
Anticrime). Salvador: JusPodivm, 2020. p. 113)
.”

Segundo o Ministro Schietti, “por ser uma prova extrajudicial, seria retratável em juízo e não tem standard probatório para, exclusivamente, levar à condenação. Seja qual
for a sua clareza, deve ser confrontada com outros elementos que possam
confirmá-la ou contraditá-la, durante a instrução criminal. Se o celebrante do ANPP não figura no polo passivo da ação penal e a confissão formal não pode ser utilizada contra ele (na seara criminal) enquanto não descumprir o ato negocial, com muito mais razão essa prova extrajudicial carece de aptidão probatória para, per se, subsidiar a condenação de coautor do mesmo fato delituoso, atingido pelas declarações
.”

Consta, ainda, do voto do relator: “para que declaração do celebrante do ANPP possa respaldar o decreto condenatório é imprescindível sua reprodução em juízo, durante a ação penal, e a constatação de sua coerência com provas judicializadas, submetidas ao contraditório, de forma a conferir ao réu o direito fundamental de efetiva
participação na formação da decisão judicial, em dualidade com o Ministério
Público
.”

Assim, conclui o relator que, deixando “de ser observada a garantia do ar. 5º, LV, da Constituição Federal, a defesa não pôde refutar a prova produzida contra o acusado durante a confissão extrajudicial que antecedeu o ANPP, não reproduzida ao longo da
instrução criminal. O Juiz deixou de ser assegurar à parte a paridade de
tratamento em relação ao Ministério Público. No mais, a sentença faz referência a
outros elementos informativos (depoimentos prestados ao Promotor de Justiça e
no âmbito de inquérito policial, durante as investigações) que também não
possuem valor para formar a convicção judicial, demonstrando-se ofensa ao art.
155 do CPP, e impondo-se a absolvição do paciente nos termos do art. 386, VII, do
CPP.

A decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça foi absolutamente correta e consentânea com o princípio do devido processo legal (e seus consectários), merecendo aplausos e observância como um importante precedente judicial a ser obrigatoriamente seguido, nos termos do art. 315, § 2º., VI, do Código de Processo Penal.

Um segundo requisito exigido pela lei é que o acordo seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.” Como se vê, trata-se de uma repetição, ipsis litteris, da última parte do que contém o art. 59, do Código Penal que estabelece os parâmetros para a determinação da sanção aplicável em caso de uma condenação (ao lado do art. 68, do Código Penal). A propósito, pergunta-se: o que seria mesmo um acordo necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime? Esta é uma matéria extremamente delicada, pois toca a questão das finalidades da pena, razão pela qual é absolutamente imprópria para constar como requisito de um acordo penal, ainda mais em uma fase em que nem sequer houve uma acusação formal contra alguém.

Neste aspecto, é importante ressaltar, com Mir Puig, “que o nosso modelo de Estado recomenda que entre a alternativa básica da retribuição ou da prevenção deve-se decidir a favor de uma ´prevenção limitada`, que permita combinar a necessidade de proteger a sociedade não só com as garantias que ofereciam a retribuição, mas também com as que oferecem outros princípios limitadores.”

Assim, ao não propor um acordo de não persecução penal, o membro do Ministério Público deverá atentar que “só uma prevenção assim limitada poderá deflagrar um efeito positivo de afirmação do Direito próprio de um Estado social e democrático de Direito, e só assim poderão ser conciliadas as exigências antitéticas de retribuição, prevenção geral e prevenção especial em um conceito superior de ´prevenção geral positiva`.”[8]

É preciso atentar, conforme adverte Baratta, que é “muito perigoso para a democracia e para o movimento operário cair na patranha, que atualmente lhe é armada, e cessar de defender o regime das garantias legais e constitucionais que regulam o exercício da função penal no Estado de direito.” Por isso, “nenhum compromisso deve ser feito sobre este ponto, com aquelas forças da burguesia que, por motivos estruturais bem precisos, estão interessadas em fazer ´concessões` ou recuar em matéria de conquistas do direito burguês e do Estado burguês de direito.[9]

Assim, cláusulas como esta - “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” – não deveriam servir para inviabilizar acordos de não persecução penal, propiciando denúncias ilegítimas e temerárias. Também é preciso atenção aos Juízes para que não as reproduzam em suas decisões, mesmo porque se considera nula, pois não fundamentada, qualquer decisão judicial, mesmo uma sentença homologatória de um acordo penal, que se “limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida ou empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso, bem como invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”, nos termos do art. 315, § 2º., c/c art 564, V, ambos do Código de Processo Penal.

Por fim, são também requisitos para o acordo de não persecução penal:

a) Se for cabível a transação penal, por se tratar de uma infração penal de menor potencial ofensivo; importante ressaltar que, caso não seja cabível a transação penal por falta de um dos seus requisitos legais, é possível o acordo, ainda que se trate de infração penal de menor potencial ofensivo;

b) Não ser o investigado reincidente, nos termos do art. 64, I e II, do Código Penal;

c) Não existirem elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; aqui há algumas impropriedades graves, como, por exemplo, a referência a “elementos probatórios” em uma fase ainda meramente investigatória, em que não houve produção de provas, mas atos investigatórios; ademais, falar-se em “conduta criminal habitual, reiterada ou profissional” é valer-se de termos cujos conceitos não estão definidos pela lei brasileira, violando-se o princípio da legalidade. Por exemplo: para que se caracterize a habitualidade delitiva (e não se trata de crime habitual), reiterada ou profissional seria necessária a prática de quantos delitos? Bastariam investigações em curso, denúncias oferecidas ou sentenças condenatórias (recorríveis ou não)? E o que seriam, ou não seriam, “insignificantes infrações penais”? Estar-se-ia falando do princípio da insignificância (crime de bagatela)? Ora, mas se a infração penal passada foi insignificante, quem o disse? O Ministério Público, ao não oferecer uma denúncia, ou o Juiz, ao absolver o réu por atipicidade da conduta anterior, em razão da aplicação do mesmo princípio? São questões, vê-se, que devem ser enfrentadas, pois, do contrário, teremos uma enxurrada de casos em que acordos não serão propostos sob a alegação genérica de que se tratava de conduta criminal habitual, reiterada ou profissional.

d) Ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo;

e) Não ter sido o crime (não contravenção) praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar (independentemente do gênero e da idade da vítima)[10], ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor; aqui, independe do crime ter sido praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, importando apenas a condição de sexo feminino.

Eis os requisitos.

Vejamos, então, as condições exigidas pela lei para a formalização do acordo, condições que devem ser “ajustadas cumulativa e alternativamente”, observando-se que não são sanções penais (mesmo porque não há sentença condenatória), nada obstante serem equivalentes a algumas penas restritivas de direitos, previstas no art. 43 do Código Penal:

a) Reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; como a lei não restringiu, aqui a reparação pode ser total ou parcial, bem como se referir aos danos morais, materiais, estéticos ou mesmo coletivos (nos crimes ambientais, por exemplo), não sendo vedada a ação civil ex delicto para complementação da reparação, caso não haja a cláusula de quitação integral.

b) Renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público, como instrumentos, produto ou proveito do crime; neste caso, ressalvada a legislação especial, o destinatário será o Fundo Nacional de Segurança Pública (art. ., VI, da Lei nº. 756/18); trata-se de um verdadeiro confisco de bens sem que tenha havido uma sentença penal condenatória definitiva, como exige o art. 91, II, do Código Penal;

c) Prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas, por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de 1/3 a 2/3, em local a ser indicado pelo Juízo da Vara de Execuções Penais (art. 46, do Código Penal);

d) Pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo Juízo da Vara de Execuções Penais, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; observa-se que, ao contrário do que permite o art. 45 do Código Penal, neste caso, a prestação pecuniária não pode ter como beneficiária a vítima ou os seus dependentes, mesmo porque já teria havido, como primeira condição, a reparação do dano;

e) Outra condição indicada pelo Ministério Público, a ser cumprida em prazo determinado, e desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada; como exemplo, podem ser citadas a interdição temporária de direitos e a limitação de fim de semana (art. 43, V e VI, do Código Penal); quanto ao prazo, deve ser observado, por analogia, o mesmo tempo previsto para a prestação de serviço à comunidade, ou seja, um período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de 1/3 a 2/3. De toda maneira, o caso concreto dirá qual a condição melhor para ser acertada, cuidando-se para que condições draconianas e impraticáveis não sejam propostas, inviabilizando o acordo, como, por exemplo, renúncia à interposição de recursos, habeas corpus, etc., como já visto em acordos de colaboração premiada.

Eis as condições.

Vejamos, em seguida, os demais aspectos do novo procedimento.

Segundo a lei, “caso o Juiz considere inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.” Neste aspecto, deu-se ao Juiz uma possibilidade de “fiscalizar” os termos do acordo, algo incompatível com um processo penal de estrutura acusatória (art. 3º.-A, do Código de Processo Penal). Imiscuir o Juiz nesta fase procedimental, “sugerindo” ao Ministério Público a reformulação da proposta, não está conforme um processo penal de modelo acusatório; assim, apresentado o acordo, das duas uma: homologa-se ou não se homologa.

O Juiz não deverá homologar o acordo no qual não foram observados o pressuposto e os requisitos legais; recusada a homologação, o Juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. Da mesma maneira, se as condições estabelecidas não estejam em conformidade com a lei, o Juiz também deve recusar a homologação, consignando-se expressamente os motivos pelos quais a homologação foi rejeitada. Caberá ao Ministério Público, então, ajustar os termos do acordo, apresentando uma nova proposta ao investigado. Caso o Ministério Público entenda que a proposta atende os parâmetros legais (não sendo o caso de “ajustes”) poderá interpor um recurso em sentido estrito (art. 581, XXV, do Código de Processo Penal). Este recurso também poderá ser interposto pelo investigado, claramente prejudicado pela não homologação.

Em caso de interposição do recurso, sendo ele julgado procedente, e transitada em julgado a decisão, o acordo deverá ser obrigatoriamente homologado pelo Juiz; julgando-se improcedente, surge uma questão: estará o Ministério Público obrigado a oferecer denúncia, já que o Tribunal entendeu pela rejeição da proposta? A resposta é positiva, pois o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública ainda vige no Brasil, ainda que mitigado.

Este princípio, como ensina Figueiredo Dias, corresponde ao dever do Estado “de administração e realização da justiça penal, obtendo a condenação judicial de todos os culpados e só dos culpados da prática de uma infração.” Continua não havendo no Brasil, ao menos nos casos de ação penal pública, “qualquer juízo de ´oportunidade` sobre a promoção e prossecução do processo penal, antes esta se apresenta como um dever para o MP, uma vez presentes os pressupostos processuais (e a inexistência de obstáculos processuais), a punibilidade do comportamento, o conhecimento da infração e existência de indícios suficientes que fundamentem a acusação.”[11]

No caso de recusa por parte do Ministério Público em propor o acordo, a lei possibilita que o investigado recorra para a instância de revisão ministerial, aquela mesma que tem atribuições para homologar (ou não) a promoção de arquivamento, na forma do art. 28 do Código de Processo Penal. O prazo para este recurso administrativo será de 30 dias, contados da data da intimação, por analogia com o art. 28, § 1º., do Código de Processo Penal.

Assim, sempre que, em tese e no caso concreto, seja cabível o acordo e o Ministério Público, ao contrário, optar pelo oferecimento da denúncia, deve, em separado, expor as razões pelas quais não foi feita a proposta, intimando-se o investigado. Este pronunciamento deve ser fundamentado, conforme exige a Constituição Federal (arts. 129, caput, VIII, in fine, c/c arts. 129, § 4º. e 93, IX).

Não deve ser cogitada a aplicação, por analogia, do Enunciado 696 da súmula do Supremo Tribunal Federal, em razão da estrutura acusatória que deve ter o processo penal, por força da Constituição e do Código de Processo Penal (art. 3º.-A).[12]

Se houver o oferecimento da peça acusatória, nada obstante ser o caso de acordo, restará ao Juiz, nos termos do art. 395, III, do Código de Processo Penal, rejeitar a peça acusatória por falta de justa causa (em sentido amplo), afinal não era caso de acusação, mas de consenso, cabendo ao órgão ministerial interpor o recurso em sentido estrito (art. 581, I, do Código de Processo Penal).

Finalmente, estando o acordo em conformidade com o pressuposto legal, presentes os seus requisitos e estabelecidas as condições, o Juiz deverá homologá-lo por sentença, devolvendo-se os autos ao Ministério Público para que, junto à Vara de Execuções Penais, providencie o início da execução. Como dito acima, a recusa em homologar trata-se de uma decisão recorrível (art. 581, XXV, do Código de Processo Penal).

Nada obstante a lei não estabelecer expressamente, a sentença homologatória do acordo penal é apelável, nos termos do art. 593, II (segunda parte), do Código de Processo Penal, tal como se dá com a sentença homologatória da transação penal (art. 76, § 5º., da Lei nº. 9.099/95) e da suspensão condicional do processo. Obviamente, será um caso raro, afinal houve um acordo entre o Ministério Público e o investigado, e a vítima não tem legitimidade para interpor a apelação; de toda maneira, é possível que o Juiz tenha homologado o acordo em termos não acertados, surgindo, então, o interesse recursal.

A vítima deverá ser intimada da homologação do acordo e de seu descumprimento, nada obstante não ter legitimidade para recorrer da sentença homologatória, já que se trata de uma atribuição discricionária (ainda que regrada) do órgão de execução do Ministério Público. Tampouco será cabível a ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, pois, às escâncaras, não houve inércia do Ministério Público.[13]

A sentença homologatória (que não resultará em coisa julgada material) deverá ser enviada ao membro do Ministério Público junto à Vara de Execuções Penais para que inicie a sua execução, exercendo-se uma verdadeira ação penal de execução (ainda que se trate de uma sentença meramente homologatória). A iniciativa será do Ministério Público, não do Juiz, como se dá com as sentenças condenatórias, devendo ser observadas as disposições contidas na Lei nº. 7.210/84.

Já no Juízo da Vara de Execuções Penais, descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia, devendo necessariamente ser o investigado ouvido antes da rescisão, garantindo-se o contraditório. Segundo a lei, o descumprimento também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para eventual não oferecimento da suspensão condicional do processo; assim, temos um novo requisito negativo para a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da Lei nº. 9.099/95: o descumprimento do acordo de não persecução penal. Observa-se que a rescisão do acordo é da competência do Juiz da Vara de Execução Penal, e não do Juiz que homologou o acordo, pois já esgotada a sua competência; desta decisão, será cabível o agravo em execução, previsto no art. 197 da Lei nº. 7.210/84.

No caso de rescisão, importante anotar que as condições já eventualmente cumpridas devem ser levadas em consideração quando da sentença penal condenatória, ou seja, é necessário fazer a detração penal, por analogia com o art. 42 do Código Penal, especialmente porque algumas condições são equivalentes funcionais das penas restritivas de direitos.

A celebração e o cumprimento do acordo não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para impedir um novo acordo nos cinco anos subsequentes, conforme acima referido. Cumpridas integralmente as condições, o Juízo da Vara de Execuções Penais declarará extinta a punibilidade (decisão também sujeita ao agravo em execução), observando-se que o prazo prescricional ficará suspenso enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo (art. 116, IV, do Código Penal).

Nada impede que seja celebrado o acordo de não persecução penal na Justiça Militar e na Justiça Eleitoral, bem como no procedimento do Tribunal do Júri, caso, evidentemente, se trate de crime cuja pena mínima seja inferior a quatro anos. Em relação ao Tribunal do Júri poderá haver alguma resistência em razão do art. 5º., XXXVIII, da Constituição Federal; nada obstante, não há mácula ao dispositivo constitucional, pois o acordo penal é mais benéfico para o investigado, tal como acontece com a hipótese de absolvição sumária (art. 415, do Código de Processo Penal). Não há usurpação da competência do Tribunal do Júri, mas a celebração de um acordo penal anterior ao oferecimento de uma peça acusatória.

A princípio, e como regra, o acordo deve ser proposto na fase da investigação criminal, antes, portanto, do oferecimento da denúncia; porém, nada impede, ao contrário, que também possa ser realizado o acordo durante o curso do procedimento penal em juízo (e mesmo em grau de recurso; neste caso pelo Promotor Natural), caso o réu, por exemplo, decida confessar o delito durante o interrogatório em Juízo, ou haja desclassificação do crime ou procedência parcial da pretensão acusatória, nos termos do Enunciado 337 da súmula do Superior Tribunal de Justiça.

Para concluir, observa-se que este novo art. 28-A não encerra no Brasil, muito pelo contrário, o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, aliás, decorrente do princípio da legalidade. O que houve, e já o havia, foi uma relativização, perfeitamente possível em um processo penal de feição acusatória.[14]

 

Notas e referências

[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=535561&ori=1. Acesso em 08 de maio de 2024.

[2] A nova lei também passou a permitir a celebração de acordo de não persecução cível (art. 17, § 1º., da Lei nº. 8.429/92).

[3] Mutatis mutandis, veja-se a Súmula 723 do Supremo Tribunal Federal: trata-se da possibilidade de suspensão condicional do processo, cujo pressuposto também é a pena mínima; sendo o caso de continuidade delitiva (que implica em um aumento da pena de 1/6 a 2/3), a Suprema Corte determina a aplicação “do aumento mínimo”; é o mesmo raciocínio).

[4]Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz.”

[5]Art. 1.783-A.  A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”

[6] Agravo Regimental no Recurso Especial nº. 1.198.354.

[7] A propósito, um levantamento feito nos EUA pelo Innocence Projectrevelou que, de todos os prisioneiros libertados nos últimos anos com base em provas de DNA, 25% foram presos porque se incriminaram, fizeram confissões por escrito ou gravadas em fita cassete à polícia ou se declararam culpados. Estudos de casos mostram que essas confissões não derivaram de conhecimento dos réus sobre o caso, mas foram motivadas por influências externas”: https://www.conjur.com.br/2012-set-08/instituicao-estuda-porque-pessoas-confessam-crimes-nao-cometeram, acessado em 19 de janeiro de 2018.

[8] PUIG, Santiago Mir, “Direito Penal – Fundamentos e Teoria do Delito”, São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2007, p. 81.

[9] BARATTA, Alessandro, “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal – Introdução à Sociologia do Direito Penal”, Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997, p. 206.

[10] Em relação à vítima mulher, ver os arts. 5º. e 7º., da Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

[11] DIAS, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, páginas 125 e 126.

[12] Enunciado 696 da súmula do Supremo Tribunal Federal: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.”

[13] Mutatis mutandis, veja-se MARQUES, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Volume I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 325.

[14] É o caso da transação penal (art. 76 da Lei nº. 9.099/95), da colaboração premiada (art. ., § 4º., da Lei nº. 12.850/13) e do acordo de leniência (arts. 86 e 87 da Lei nº. 12.529/11).

 

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