O STF E OS CRITÉRIOS PARA A DECRETAÇÃO DA PRISÃO TEMPORÁRIA        

16/02/2022

Em dezembro de 2004, o Partido Social Liberal ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3360), questionando a Lei nº. 7.960/89, que dispõe sobre a prisão temporária, alegando ofensa aos direitos fundamentais constitucionais como o da igualdade, da liberdade e da presunção de inocência, constantes do artigo 5º., LIV, LVII, LXI, LXIII e LXVI da Constituição Federal.

Nesta ação, o autor apontou a “má técnica da lei impugnada, que não estabeleceu sequer contra quem a ordem de prisão temporária poderia ser decretada, enquanto que o inciso II (do artigo 1º.) evidencia uma referência vaga ao suposto infrator", sustentando-se, ainda, que "a redação imprecisa do artigo 1º. vem provocando infindáveis controvérsias nos meios jurídicos, em razão do desatendimento da garantia do devido processo legal.”

O partido também contestou o artigo 2º. da mesma lei, que (supostamente) imporia ao juiz a decretação da prisão temporária ao usar a expressão "será decretada". Segundo o autor, “na prática, sabe-se que bastará a representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público para que o juiz, obrigatoriamente, decrete a prisão, configurando-se uma imposição legal inconstitucional, abrupta e de extremo rigor, que em última análise, converte-se numa pena sem processo."

O autor requereu, assim, a suspensão liminar dos artigos impugnados e que fosse declarada, em seguida, a inconstitucionalidade deles. Em pedido subsidiário, requereu que a Suprema Corte desse à lei interpretação conforme a Constituição Federal, apontando como necessária para a decretação da prisão temporária a reunião dos três incisos do artigo 1º. da referida lei.

Em julho de 2008, o Partido Trabalhista Brasileiro também ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4109) contestando a mesma lei, argumentando que “a prisão temporária, conhecida como prisão para averiguações, foi rejeitada pelo governo dos militares, por haver sido considerada flagrantemente antidemocrática e que a redação imprecisa da lei provoca controvérsias no meio jurídico e, além de agredir a garantia do devido processo legal, ultrapassa a razoabilidade dos objetivos que busca.”

Ademais, segundo consta da inicial, “a prisão temporária serve, de fato, para produzir tão somente grande repercussão na mídia, gerando a falsa impressão de que tudo foi resolvido”.

Agora, finalmente, o plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de ambas as ações constitucionais, fixando requisitos objetivos para a decretação da prisão temporária.

A decisão foi tomada, por maioria de votos, na sessão virtual finalizada no último dia 11 de fevereiro, prevalecendo o voto do ministro Edson Fachin que julgou parcialmente procedentes as ações para dar interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 1º. da Lei n°. 7.960/89, decidindo-se que a decretação da prisão temporária está autorizada, apenas e tão-somente, quando forem cumpridos, cumulativamente, determinados requisitos, estabelecidos objetivamente no voto.

Em primeiro lugar, nos termos do inciso I do artigo 1º., a prisão temporária só poderá ser decretada quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial, “constatada a partir de elementos concretos, e não meras conjecturas, vedada a sua utilização como prisão para averiguações, em violação ao direito à não autoincriminação, ou quando fundada no mero fato de o representado não ter residência fixa”. Assim, por exemplo, não caberá a prisão temporária quando a investigação criminal for feita diretamente pelo Ministério Público, no procedimento investigatório criminal, o chamado PIC, aliás, de duvidosa constitucionalidade.[1]

Ademais, nos termos do inciso III do mesmo artigo 1º., deve haver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado nos crimes taxativamente ali descritos, “vedada a analogia ou a interpretação extensiva do rol previsto.”

Outrossim, e para além dos requisitos previstos na lei especial, a decisão que decreta uma prisão temporária, tal como ocorre com a prisão preventiva (ambas prisões provisórias e excepcionais), deve estar justificada a partir de fatos novos ou contemporâneos, nos termos dos artigos 312, § 2º. e 315, § 1º., do CPP, e sempre que for adequada à gravidade concreta do crime, às circunstâncias do fato e às condições pessoais do indiciado (artigo 282, II, do CPP).

Sobre a previsão que a prisão esteja necessariamente fundamentada em fatos novos ou contemporâneos, ainda que se trate de dispositivo voltado à prisão preventiva, o ministro entendeu “que ela também deve ser aplicada à prisão temporária”, afirmando “que a exigência de verificar a gravidade concreta do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado está prevista no artigo 282, inciso II do CPP, regra geral de aplicação a todas as modalidades de medida cautelar.”[2]

Por fim, considerando-se como ultima ratio, somente deve ser decretada a prisão temporária quando não for suficiente a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, previstas nos artigos 319 e 320 do CPP, exatamente como se dá nos casos da prisão preventiva (artigo 282, § 6º., CPP). Neste sentido, o ministro afirmou que “essa interpretação está em consonância com o princípio constitucional da não culpabilidade, de onde se extrai que a liberdade é a regra, a imposição das medidas cautelares diversas da prisão a exceção e a prisão, em qualquer modalidade, a exceção da exceção.”

Em relação à possibilidade da prisão temporária quando o indiciado não tiver residência fixa, conforme dispõe o artigo 1º, inciso II, da Lei 7.960/89, o ministro a considerou dispensável ou, quando interpretado isoladamente, inconstitucional, pois, segundo ele, “não é constitucional a decretação da prisão temporária quando se verificar, por exemplo, apenas uma situação de vulnerabilidade econômico-social – pessoas em situação de rua, desabrigados –, por violação ao princípio constitucional da igualdade em sua dimensão material.”

Importante, outrossim, a ressalva constante do voto que “a utilização da prisão temporária como forma de prisão para averiguação ou em violação ao direito à não autoincriminação não é compatível com a Constituição Federal, pois caracteriza abuso de autoridade”, apontando-se “que, no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 395 e 444, o STF entendeu que a condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório é incompatível com a Constituição, devendo esse entendimento deve ser aplicado, também, à prisão temporária.”

O ministro Gilmar Mendes foi o primeiro que, em voto-vista, já havia proposto a adoção de requisitos semelhantes, em conformidade com a Constituição Federal e o CPP, para a decretação da prisão temporária. Na retomada do julgamento, no entanto, ele ajustou seu voto às conclusões do ministro Edson Fachin, visando a unificar o entendimento. Também integraram a corrente vencedora os ministros Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e André Mendonça e a ministra Rosa Weber.

Em seu voto, aliás, a ministra Cármen Lúcia, admitia a prisão temporária quando presentes cumulativamente as três hipóteses previstas no artigo 1º. ou as dos incisos I e III, ou seja, quando fosse imprescindível para as investigações e houvesse fundadas razões de autoria ou participação do indiciado no rol de crimes da lei, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal. Ela foi acompanhada pelo presidente do STF, ministro Luiz Fux, e pelos ministros Luís Roberto Barroso e Nunes Marques. O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, julgou improcedente o pedido.

Todos os ministros afastaram a alegação que a expressão "será decretada", contida no caput do artigo 2º. da lei, resultaria no possível entendimento que o juiz é obrigado a decretar a prisão quando houver pedido da autoridade policial ou do Ministério Público, pois, evidentemente, “a prisão temporária não é medida compulsória, já que sua decretação deve ser obrigatoriamente acompanhada de fundamentos aptos a justificar a implementação da medida", conforme afirmou o ministro Edson Fachin.

O plenário da Suprema Corte também não verificou incompatibilidade com a Constituição Federal do prazo de 24 horas, previsto na norma, para análise do pedido pelo juiz, pois sua fixação se deve à urgência da medida para a “eficiência das investigações”.

Pois bem.

Observa-se que, nada obstante a importância da decisão da Suprema Corte - evitando-se a banalização da prisão temporária e a sua utilização para servir como mera condução coercitiva do indiciado para o interrogatório policial -, o certo é que, na verdade, trata-se mesmo de uma prisão inconstitucional (e, neste ponto, a decisão da Suprema Corte disse menos do que poderia), seja pelo vício de origem (tendo em vista que foi prevista inicialmente pela Medida Provisória nº. 111/89), seja por sua absoluta incompatibilidade material com o postulado da presunção de inocência, já que se trata de uma prisão sem nenhum caráter cautelar (processual), utilizada apenas para a investigação criminal.

Quanto à referida inconstitucionalidade formal (decorrente do apontado vício de origem), observou Alberto Silva Franco que a lei “originou-se de uma medida provisória baixada pelo presidente da República e, embora tenha sido convertida em lei pelo Congresso Nacional, representou uma invasão na área da competência reservada ao Poder Legislativo, pouco importando a aprovação pelo Congresso Nacional da medida provisória.”[3]  

No que se refere à incompatibilidade material da prisão temporária com a Constituição Federal, vale a lição de Maria Lúcia Karam, quando afirma “a ilegitimidade de qualquer prisão para averiguações, isto é, prisões que se destinam a viabilizar investigações prévias à propositura da ação penal condenatória. É o caso, no ordenamento jurídico brasileiro, da prisão temporária, introduzida com a Lei 7.960/89 e logo reafirmada na Lei 8.072/90, que, dispondo sobre os crimes ditos ´hediondos` e os a eles equiparados, marca o início da produção de leis de emergência ou de exceção após a redemocratização do Brasil. Desvinculadas do pretendido resultado do processo principal (o processo penal de conhecimento), vinculadas que estão ao mero resultado do procedimento administrativo investigatório, cuja função se esgota no fornecimento de elementos para a propositura da ação penal condenatória, essas prisões para averiguações (temporárias ou qualquer que seja a denominação que lhes for dada) já por isso se afastam da exigida cautelaridade de qualquer prisão provisória, faltando-lhes a acessoriedade característica das providências cautelares.[4] 

A propósito, Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez afirmam que não se pode “atribuir à medida cautelar o papel de instrumento da investigação criminal.” Segundo os autores, “sem dúvida alguma, esta utilização da prisão provisória para a investigação criminal, para obtenção de provas ou depoimentos, deve ser rechaçada de plano, pois uma tal concepção excederia os limites constitucionais, e colocaria a investigação criminal em um lugar muito próximo ao da tortura investigatória.”[5]

De toda maneira, e para concluir, é preciso estar atento para que a decisão da Suprema Corte seja, efetivamente, observada pelos nossos tribunais, afastando-se a mentalidade punitiva que, em geral (e não genericamente), caracteriza a magistratura criminal brasileira.

 

Notas e Referências

[1] A Resolução nº. 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, dispõe sobre a instauração e a tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público, tratando de matéria processual e procedimental, o que é vedado expressamente pelos artigos 22 e 24 da Constituição Federal.

[2] Evidentemente, merecem críticas tais critérios, pois muito mais condizentes com as circunstâncias judiciais a serem aferidas em momento posterior, quando da aplicação da pena, além de se tratar de típica opção pelo odioso Direito Penal do Autor. Neste mesmo sentido, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. “Medidas Cautelares – Projeto de Lei 111/2008”, in As Reformas no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 458.

[3] FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 357.

[4] KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p. 11.

[5] SENDRA, Vicente Gimeno, Catena, Victor Moreno e Domínguez, Valentín Cortés. Derecho Procesal Penal. Madrid: Editorial Colex, 1999, pp. 523 e 524.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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