O STF e o princípio do fim: considerações sobre a execução da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória

22/02/2016

Por Daniela Portugal e Maiana Guimarães - 22/02/2016

Em 17 de fevereiro de 2016, no julgamento do HC 126292, o Plenário Supremo Tribunal Federal manifestou-se pela possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau. A decisão se deu por maioria, em que o ministro relator Teori Zavascki foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, ficando vencidos Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.

A decisão recente contrariou o entendimento jurisprudencial da Corte até então mantido. Desde o julgamento do HC 84078, o STF condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da decisão condenatória, ressalvando a possibilidade de decretação de prisão preventiva, caso estivessem presentes os respectivos fundamentos autorizadores da segregação cautelar.

O ministro relator, em seu voto, destacou que "ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado"[1].

Portanto, para Teori Zavascki, a prolação da sentença, em primeiro grau, seguida da manifestação do órgão colegiado, esgotam as vias ordinárias de apreciação, sob o fundamento de que os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STF ou STJ, "não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito"[2].

A decisão representa manifesto retrocesso, bem como ofensa frontal aos princípios da presunção de inocência e do devido processo legal, além de esvaziar o conteúdo do princípio do duplo grau de jurisdição a partir de uma interpretação desconectada das demais garantias penais e processuais penais consagradas pela Constituição Federal.

O Princípio da presunção da inocência, assegurado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, LVII, impõe que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Trata-se, assim, de um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, uma vez que  assegura a tutela da liberdade individual.

Nada obstante, a presunção de inocência é resguardada pela Declaração de Direitos Humanos de 1948, em seu art. 11, bem como no artigo 8° (2) do Pacto San José da Costa Rica, sendo completamente respeitada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse sentido, inclusive, destaca-se trecho de decisão proferida no caso 11.992-a contra o Estado do Equador pela referida Corte, ratificando o entendimento de que o acusado só pode ser privado da sua liberdade após o trânsito em julgado da decisão condenatória, devendo a prisão preventiva acontecer, tão somente, em casos de extrema necessidade:

A Corte Interamericana entende que o propósito das garantias judiciais nasce no princípio de que uma pessoa é inocente até que se comprove a sua culpa mediante uma decisão judicial transitada em julgado. Por isso, os princípios gerais de direito universalmente reconhecidos, impedem antecipar a sentença. Se ignoradas estas regras, corre-se o risco, como de fato ocorreu no caso sob exame, de privar de liberdade por um prazo não razoável a uma pessoa cuja culpa não pôde ser verificada[3].

É curioso o fato de que, mesmo em se tratando de princípio consagrado nacional e internacionalmente, a presunção de inocência tenha sido completamente violada pelo STF, diante da análise de uma situação fática, que alterou o entendimento da Suprema Corte em prejuízo da liberdade e da dignidade dos acusados.

Questiona-se, pois, se caberia agora ao STF alterar a vontade do constituinte originário que, explicitamente, impôs o trânsito em julgado da decisão condenatória como marco inicial para a privação de liberdade do sujeito. Ou, de outro modo, se cabe a este órgão deturpar o conceito de "trânsito em julgado" de modo a colocá-lo a serviço de retrocessos políticos velados.

Ambas as hipóteses são notadamente anti-democráticas, afinal implicam restrição ao princípio da liberdade, agredindo, frontalmente, o princípio da proibição do retrocesso aos direitos e garantias fundamentais. É evidente, portanto, o absurdo cometido pela decisão proferida pela Suprema Corte.

Seguindo os ensinamentos de Geraldo Prado, há que se compreender que "o papel que a presunção de inocência joga nos dias atuais consiste, pois, em fundar o estado original de incerteza que marcará a persecução penal, da notícia crime ao momento imediatamente anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória"[4].

Mais que isso. Ousa-se afirmar que, mesmo o trânsito em julgado da decisão condenatória não faz cessar, no plano essencial, o estado de dúvida, mas tão somente assenta a decisão processual, tornando-a imutável pelo manto da coisa julgada, ressalvadas as hipóteses de revisão criminal.

Assim, a assunção da dúvida como um estado permanente e inafastável que se instala desde o cometimento do crime ao transito em julgado da eventual decisão condenatória (inclusive) deriva do reconhecimento da impossibilidade de reversão do tempo para o conhecimento direito dos fatos já passados.

É por essa razão que se pode dizer estarem superadas as teorias de busca da verdade real por meio do processo penal, e pela qual se compreende que falar em "verdade processual" representa uma contradição em termos. O final do processo, portanto, não se confunde com o alcance da verdade, mas com a impossibilidade de questionamento da solução processual.

Dessa maneira, admitir a insegurança como condição permanente de todo o processo, mesmo em seu desfecho final, aproxima o ato decisório, por mais paradoxal que possa parecer, do ideal de segurança jurídica a ser perseguido. Isto porque tal reconhecimento impactará no reconhecimento da importância do processo enquanto instrumento de garantias, não como via protocolar condutora à decisão condenatória.

Não bastasse a violação evidente à presunção da inocência, permitir a prisão do condenado após decisão de segundo grau viola os princípios do devido processo legal (art. 5°, LIV, CF), de onde, inclusive, extrai-se o duplo grau de jurisdição.

Isso porque, diferentemente do que defendeu o ministro relator Teori Zavascki, o princípio do duplo grau de jurisdição não pode e não deve ser interpretado restritiva e literalmente. Ora, o ordenamento jurídico é um sistema e não há outra forma de bem compreendê-lo senão por meio de uma interpretação sistemática.

Desse modo, é inviável a limitação do duplo grau de jurisdição ao exame de determinada decisão por duas instâncias distintas, porquanto isso indubitavelmente fere os princípios do contraditório e da ampla defesa e, consequentemente, o devido processo legal. Como bem explica Geraldo Prado, "o estado de direito tem nas regras do devido processo legal sua base jurídico-política, por meio da qual o exercício legítimo do monopólio da força tende a não se converter em arbítrio"[5].

Assim, a linha tênue que separa o direito de punir e o arbítrio ao punir, para que não se dissolva nos áridos caminhos em que hoje percorre a política criminal, deve ser marcada por uma forte teia de garantias fundamentais até que se possa impor a privação da liberdade.

Por essa razão que Luigi Ferrajoli supera a conhecida fórmula de Hans Kelsen, "se A, então (deve ser) B", onde "A" representa o ilícito e "B", a sanção. Para Ferrajoli, tratando, especificamente, da relação entre o delito e a pena, a revisão garantista da fórmula kelseniana impõe a sua inversão: "se B, então (deve ser) A", ou na equivalente "se não A, então não (deve ser) B"[6].

A inversão da fórmula materializa a própria transformação paradigmática do discurso punitivo do Estado de direito a partir de um olhar inexoravelmente democrático, razão pela qual assenta o autor que "o ilícito, de acordo com a estrutura lógica das garantias, é uma condição normativa somente necessária e mas não suficiente para a aplicação de uma pena"[7].

Analisando o caso em comento, não há como se compreender o argumento lançado por Zavascki ao sustentar o exaurimento do princípio da presunção de inocência quando da decisão de segundo grau, sob o fundamento de que os Tribunais Superiores não fazem exame de fatos e provas, mas tão somente da aplicação do direito.

Uma tal compreensão esvazia o próprio sentido de criação dos referidos Tribunais, uma vez que compreende o fato, tal qual como remontado pela sentença e acórdão de segundo grau, como elemento suficiente para a imposição de pena, destacado da sua relação como os institutos jurídicos, legais e constitucionais, que lhe dão significado.

Mão não é só. Compreender o duplo grau de jurisdição como o Ministro Relator, implica  ainda limitação da eficácia do princípio constitucional em questão, uma vez que o reexame da decisão por uma segunda instância é necessário e essencial, não sendo, entretanto, suficiente e satisfatório em todas as situações apresentadas.

 E, em pleno desenvolvimento do constitucionalismo global e, portanto, de tutela multinível[8] dos direitos fundamentais, nenhum sentido faz restringir a aplicação de um direito fundamental ao seu grau mínimo, devendo fazê-lo em seu grau máximo, tornando-o satisfatório, suficiente e efetivo.

Por essa razão, pensar em duplo grau de jurisdição em consonância com o ordenamento jurídico, ao lado dos demais princípios constitucionais- diferentemente do que fez o relator da situação fática aqui analisada-, é compreender que deve haver tantos quantos reexames forem necessários para a concretização do efetivo contraditório, ampla defesa e da própria dignidade da pessoa humana, respeitando-se os limites fáticos e jurídicos existentes.

Desse modo, se a Constituição impõe a preservação da presunção de inocência e dos demais princípios constitucionais, não cabe ao STF, abstratamente, negar a efetividade deste direito, tendo em vista a possibilidade de prisão preventiva, desde que preenchidos os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.

Assim, ausentes os fundamentos para a decretação da segregação cautelar, sequer seria necessário cogitar a hipótese de harmonização ou ponderação entre direitos fundamentais, porque colisão não haveria.

Como destaca Gerivaldo Neiva, o desafio da modernidade é  possuir "julgadores que mantenham sua liberdade de julgar, que tenham consciência da sua parcialidade diante do caso, mas que façam prevalecer o projeto constitucional e a integridade do Direito"[9].

É por isso que admitir como acertada a decisão do STF seria entender pela possibilidade de a Suprema Corte, guardiã maior da Constituição, agir de maneira INconstitucional, abrindo-se mão de garantias historicamente conquistadas, especialmente com a queda da ditadura militar no Brasil.

A decisão do STF  transfere para a instâncias ordinárias um dever que também cabe a esta Corte, que é o do reconhecimento do fato julgado como criminoso. Ora, não se pode compreender o crime senão como um fato jurídico, de maneira que a aplicação do direito aos fatos e provas coletadas em primeiro e segundo grau pode assumir caráter decisivo na compreensão da conduta enquanto típica ou atípica.

O que só se lê nas entrelinhas é que o resultado do julgamento do HC 126292, ao desincumbir o Supremo Tribunal Federal  do ônus de se manifestar, especificamente, sobre a necessidade da segregação cautelar pela via simplista da ratificação da decisão das instâncias ordinárias mediante imposição imediata da pena, intenta transparecer menor falibilidade desta Corte não pela busca da solução mais justa, mas pela negação injusta da própria solução.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153 Acesso em: 18 de fevereiro de 2016.

[2] Id.

[3] No relatório n.º 16/01 (Caso 11.992-a contra o Estado do Equador), Disponível em: http://www.cidh.org/annualrep/2001port/ecu11992a.htm#_ftnref32

[4] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, p. 17.

[5] Id. Ibd., p. 15.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do garantismo penal. 4. ed. Trad. Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 339.

[7] Id. ibd. Loc. cit.

[8] DANTAS, Miguel Calmon. Direito fundamental ao máximo existencial. Tese defendia no PPGD da UFBA em 2011, p. 114-125. Acesso em: 18.02.2016, disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/8703/1/MIGUEL%20CALMON%20DANTAS%20-%20V.%201%20-TESE.pdf.

[9] NEIVA, Gerivaldo. O juiz e a cidadania. Coleção para entender direito. Organizadores Marcelo Semer, marcio Sotelo Felipe. São Paulo: Estúdio Editores, 2015, p. 93.


Daniela Portugal. Daniela Portugal é Advogada criminalista. Mestre e Doutora em Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia. Professora da Universidade Federal da Bahia, da Escola de Magistrados da Bahia e da Faculdade Baiana de Direito. .

 

Maiana Guimarães. . Maiana Guimarães é Graduanda em Direito do 9º semestre pela Faculdade Baiana de Direito. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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