Por Affonso Ghizzo Neto – 02/04/2017
Decorrência natural de investigações criminais levadas a efeito contra políticos e empresários influentes, como ocorre por exemplo na chamada “Operação Lava Jato”, existem aqueles que queiram impedir magistrados, procuradores, promotores de Justiça e policiais de cumprirem com suas funções constitucionais. O ex-presidente do Senado Federal, Renan Calheiros (PMDB), por exemplo, é um dos líderes do movimento que busca, a pretexto de penalizar possíveis “abusos de autoridade”, conter investigações criminais deflagradas contra políticos, empresários e outros criminosos do “colarinho branco”.
Todos sabemos as verdadeiras razões de tanta reclamação e contestação, notadamente, em relação à atuação operante do Ministério Público em todo o País. Como se sabe, não é objeto de dúvidas ou controvérsias, o crime organizado está infiltrado nas estruturas governamentais, interferindo diretamente no regular funcionamento dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, impondo uma resistência significante às apurações decorrentes das investigações do crime organizado e de grandes esquemas de corrupção.
Muitos são os discursos a favor e contra as operações investigativas nas estruturas criminosas instaladas no poder. As polêmicas sobre a espetaculização das prisões de suspeitos (a chamada pirotecnia), os supostos excessos investigativos, os possíveis descontroles nas concessões judiciais de escutas telefônicas (grampos), a subordinação e a (in)dependência das polícias em relação ao Executivo, bem demonstram a complexidade e as dificuldades do uso dos instrumentos de investigação nos tempos modernos.
É certo que mesmo diante da realidade dramática da disseminação e do desenvolvimento da corrupção no Estado brasileiro, não se pode admitir, em nome da probidade e do combate à corrupção, em hipótese alguma, a institucionalização da violência investigativa estatal. Por outro lado, também não se pode compactuar com a omissão e com o discurso falacioso generalizado dos excessos investigativos.
Percebe-se, por óbvio, a extrema dificuldade de conciliar teoria e prática, especialmente numa rede de articulação de poder escamoteada entre escândalos e atentados contra o Estado Democrático de Direito, de viés constitucional e garantista. Seja como for, parece inegável, incontestável e urgente a necessidade da investigação constitucional dos atos de corrupção e do crime organizado institucionalizado nos poderes e nas instituições nacionais.
Aliás, não por acaso, o debate judicial sobre o monopólio da investigação criminal parece ter perdido o sentido e a razão. Somente razões meramente corporativas poderiam justificar a exclusividade de investigações criminais. A legitimidade da investigação criminal por parte do Ministério Público, da Controladoria-Geral da União, da imprensa etc; só reforçam e contribuem para elucidação de grandes crimes e escândalos de corrupção. E não poderia deixar de ser diferente, até porque o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro fortalece a ideia do amplo controle das atividades e atos administrativos, estando (ou devendo estar) superado o debate a respeito da investigação exclusiva por parte das polícias, haja vista que despropositado, sem sentido, avesso aos interesses da população e contrário ao ordenamento constitucional.
Com a corrupção disseminada na estrutura de poder estatal, a arrecadação probatória por parte do Ministério Público, titular privativo da ação penal pública (inciso I, art. 129, CR) e principal titular da ação civil pública para proteção do patrimônio público e outros interesses difusos e coletivos (inciso III, art. 129, CR), torna-se imprescindível para efetiva punição de corruptos e corruptores, inclusive, não raras vezes, em parceria e articulação conjunta com outros órgãos de investigação.
Ora, sendo o inquérito policial presidido pela autoridade policial prescindível ao oferecimento da ação penal pública, parece claro que o Ministério Público possa complementar ou arrecadar originalmente qualquer material probatório para formação da opinio delicti.[1] Reconhecer um Ministério Público sem poder de investigação significa anular a própria instrumentalidade constitucional que lhe dá eficácia. Ou, dito de outra maneira, significa negar a existência aos comandos normativos dos arts. 127 e 129, incisos I, II e III, ambos da CR, e, consequentemente, negar operatividade ao princípio constitucional da moralidade administrativa. Nesse sentido, Clèmerson Merlin Clève, advogado e professor titular das Faculdades de Direito da UniBrasil e dos cursos de Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito, pós-graduado pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), com precisão científica e clareza matemática, esclarece que:
A atividade de investigação tem clara natureza preparatória para o juízo de pertinência da ação penal, de modo que, sendo o Ministério Público o titular da ação penal pública, por ele é providenciada a fim de formar sua convicção de acordo com os elementos colhidos (29). Sendo a investigação conduzida através de inquérito policial ou por outro meio, a finalidade é a mesma, porém, o deslinde não, já que a qualidade da investigação é determinante para a formação do juízo do titular da ação penal. Diante disso, parece lógico que, dispondo de meios apropriados e recursos adequados, a atuação do membro do Ministério Público não deve ser, em todos os casos e circunstâncias, limitada pela atuação da polícia judiciária. É que o limite, em última instância, pode significar o seqüestro da possibilidade de propositura da ação penal. E nem se afirme que o controle externo da atividade policial seria suficiente para remediar a possibilidade. Necessário e acertadamente externo, o controle possui fronteiras. Pode implicar possibilidade de emergência de censura à eventual desídia, mas nunca solução ao específico caso que, diante da dificuldade de encaminhamento do inquérito, produziu reduzida chance de êxito na propositura da ação penal. Em semelhante hipótese, sequer a possibilidade de requisitar a instauração de inquérito ou de diligências investigatórias, no limite, pode se apresentar como solução para o impasse, eis que o órgão ministerial, titular da ação penal, sem poder interferir diretamente na ação policial, não dispõe de instrumentos, a não ser reflexos (controle externo), para garantir a qualidade das diligências providenciadas em virtude de requisição. A autoridade policial tem, com o inquérito policial, meios para auxiliar o Parquet na promoção da ação penal, mas se, em virtude de hermenêutica menos elaborada, lhe for atribuída a exclusividade da investigação preliminar criminal, terá também, e certamente, um meio para limitar sua função, o que importa em risco (sendo, na sociedade de risco, ainda mais grave e incompreensível) para o Estado Democrático de Direito.[2]
Reconhecendo o poder investigatório do Ministério Público, Aury Lopes Júnior destaca que:
Analisando os diversos incisos do art. 129 da CB, em conjunto com as Leis nº 75/93 e nº 8.625/93, especialmente o disposto nos arts. 7º e 8º da primeira e 26 da segunda, constatasse que no plano teórico está perfeitamente prevista a atividade de investigação do promotor na fase pré-processual. Não dispôs a Constituição que a polícia judiciária tenha competência exclusiva para investigar (...). Não existe exclusividade desta tarefa, inclusive porque quando pretendeu estabelecer a exclusividade de competência o legislador o fez de forma expressa e inequívoca. Tampouco a natureza da atividade ou dos órgãos em discussão permite ou exige uma interpretação restritiva; ao contrário, trata-se de buscar a melhor forma de administrar justiça. (...) Não só o inquérito policial é dispensável, senão que também é dispensável a atuação policial, ou, em outras palavras, o MP pode prescindir da própria polícia judiciária. O art. 129, III, da CB trata do inquérito civil como atividade preparatória da ação civil pública; logo, quando no inciso VI o legislador afirma o poder do MP de instruir os procedimentos administrativos de sua competência, está claramente referindo-se a outros procedimentos. Aqui está a outorga constitucional para que o MP realize a instrução preliminar, considerada como um procedimento administrativo pré-processual, preparatório ao exercício da ação penal. Neste sentido, complementam a norma constitucional as Leis nº 75/93 e nº 8.625/93, que autorizam a instauração de procedimentos administrativos com caráter investigatório. (...) Destarte, entendemos que o Ministério Público, ademais de participar no inquérito policial, poderá ser protagonista, instaurando e instruindo seu próprio procedimento administrativo pré-processual. Entendemos que o MP pode instaurar e realizar uma verdadeira investigação preliminar, destinada a investigar o fato delituoso (natureza pública), com o fim de preparar o exercício da ação penal. Aqui se materializa a figura do promotor investigador.[3]
Ademais, não fossem as interferências e ingerências políticas, não parece lógico que a polícia judiciária investigue sem estar em sintonia com o destinatário primeiro da investigação. É inegável que melhor pode fazer justiça quem por si mesmo realiza, conduz ou comanda as investigações. Como imaginar uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, guardiã da ordem jurídica e defensora da sociedade e dos direitos fundamentais, destituída de instrumentos sólidos e efetivos de controle, fiscalização, investigação, além de acompanhamento das atividades relacionadas direta e indiretamente com a coisa pública?
O respeito ao comando constitucional intenta fortalecer o Ministério Público em razão da difícil e fundamental tarefa de dar eficiência à estratégia de combate à corrupção e, consequentemente, de permitir a efetivação dos direitos fundamentais e a operatividade do princípio, direito e garantia da moralidade administrativa.
Importante destacar também, sem prejuízo da investigação criminal, que a Constituição da República (inciso III, art. 129) coloca à disposição do Ministério Público o inquérito civil[4] como importante instrumento de investigação e combate aos atos de corrupção. Constitui-se o inquérito civil, certamente, numas das circunstâncias que determinaram a eficiência das ações civis públicas de responsabilização de atos de improbidade administrativa.
Observe-se que, embora o princípio do contraditório não esteja obrigatoriamente presente, tendo em vista se tratar de peça meramente informativa, é recomendado que o inquérito civil, presidido pelo representante do Ministério Público, observe as orientações do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, evitando os vícios tão comuns da investigação criminal presidida pela autoridade policial. Como afirma Emerson Garcia, o inquérito civil é:
Procedimento administrativo no qual não incide o contraditório, por não veicular qualquer tipo de acusação nem buscar a composição de conflitos de interesse, foi tal instrumento concebido no seio do Parquet paulista, inspirado, desde o primeiro momento, pelo congênere investigatório da área criminal, o inquérito policial, só que escoimado das mazelas que vêm, ao longo de décadas, reduzindo a eficácia deste último, uma vez que o procedimento investigatório civil é presidido pelo próprio Ministério Público, ao contrário do que se verifica na esfera penal.[5]
Como é de conhecimento, especificamente no que diz respeito a condução de investigações criminais, os Tribunais Estaduais, assim como o Superior Tribunal de Justiça, já consolidaram temporalmente a legitimidade investigativa do Ministério Público, tendo finalmente o Supremo Tribunal Federal, depois de superadas pressões políticas e corporativas, referendado o comando integrado dos dispositivos constitucionais, repudiando qualquer tentativa de limitação do poder investigatório do Ministério Público, ou de qualquer outra medida tendente a enfraquecer o combate à corrupção e a busca pelo propagado Estado Democrático de Direito, reconhecendo a aplicação da teoria dos poderes implícitos no plano constitucional.
Merece análise com vagar a importante decisão do Supremo Tribunal Federal, datada de 14 de maio de 2015, Recurso Extraordinário 593.727/MG[6], com repercussão geral, aplicável, portanto, a todos os processos sobrestados em outras instâncias em situações similares.
No julgado acima citado, o Plenário do STF acolheu a tese de que o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, enfim, o MP não só pode como deve investigar crimes relacionados às práticas corruptas como outros delitos de repercussão.
Segundo a Ministra Rosa Weber é o caso de aplicação da doutrina dos poderes implícitos, de maneira que se “cabe ao Ministério Público a persecução penal, pode ser pontualmente necessária a realização, por via direta, de atos investigatórios”, inexistindo a previsão constitucional do monopólio da atribuição de investigar delitos pelas polícias. Já a Ministra Cármen Lúcia destacou que “quanto mais atuarem em conjunto essas instituições, Polícia e Ministério Público, tanto melhor”, sendo desejada a união dos esforços investigativos em benefício de toda a sociedade.[7]
Evidente – e não poderia ser diferente – que o STF também determinou os parâmetros que devam ser observados nas investigações criminais conduzidas pelos órgãos Ministeriais, dentre os quais, o respeito aos direitos e às garantias fundamentais dos investigados, com a previsão do contraditório, da ampla defesa etc.
Conforme conclui Mariana Moulin Leite, em seu artigo intitulado “A constitucionalidade da investigação criminal conduzida diretamente pelo Ministério Público à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal”:
(...) foi verificado o contrassenso existente em permitir a investigação na seara cível, mas não na criminal, bem como que a Carta Maior não outorgou o monopólio da atribuição de investigar crimes à Polícia, de modo que não é inconstitucional a investigação realizada diretamente pelo Parquet. Ao revés, essa investigação é garantia para o investigado, porquanto a função do Ministério Público é zelar pelo fiel cumprimento da lei e há sim controle na sua atuação. Também foi analisado o entendimento sedimentado em ordenamentos jurídicos estrangeiros e, ainda, que os membros do Ministério Público gozam de garantias, como a vitaliciedade e a inamovibilidade, que se refletem na sua atuação independente. Por fim, foi visto que a Corte Suprema reafirmou seu entendimento pela investigação criminal conduzida diretamente pelo órgão ministerial, desde que respeitados determinados limites.[8]
Em síntese: Investigações criminais e/ou cíveis, quando bem conduzidas e orientadas pelo Ministério Público, poderão determinar decisivamente o sucesso da repressão à prática disseminada de crimes praticados por corruptos e corruptores, efetivando, a partir da Constituição Federal e do manuseio das ações criminais e cíveis cabíveis, a operatividade do princípio da moralidade administrativa, com a efetiva punição dos responsáveis; com a reconstituição do patrimônio público; e a recuperação do erário surrupiado delituosamente.
Notas e Referências:
[1] Opinio ou informatio delicti: tem por finalidade formar o convencimento sobre o crime e a respectiva autoria, seja para o oferecimento seguro da denúncia, seja para a formulação do pedido de arquivamento do inquérito policial ou outra peça informativa.
[2] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Investigação criminal e Ministério Público (Artigo). Jus Navigandi. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5760
[3] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 154-155.
[4] Art. 129 e inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. (grifo nosso).
[5] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 441.
[6] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Notícias STF. Brasília, 14 de maio de 2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=291563
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 593727/MG, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/5/2015. (Informativo 785). Disponível em: file:///C:/Users/Biblionet/Downloads/texto_307671331.pdf
[8] LEITE, Mariana Moulin. A constitucionalidade da investigação criminal conduzida diretamente pelo Ministério Público à luz do entendimento do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/artigo,a-constitucionalidade-da-investigacao-criminal-conduzida-diretamente-pelo-ministerio-publico-a-luz-do-entendim,55751.html
. . Affonso Ghizzo Neto é Promotor de Justiça. Doutorando pela USAL. Mestre pela UFSC. Idealizador do Projeto “O que você tem a ver com a corrupção?”. aghizzo@gmail.com / aghizzo@usal.es. .
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