O sistema processual penal brasileiro é misto ou acusatório? - Por Felipe Halfen Noll e Laura Mallmann Marcht

19/09/2016

Por Felipe Halfen Noll e Laura Mallmann Marcht - 19/09/2016

Para uma melhor compreensão do processo penal brasileiro, é imprescindível que se estude a lógica dos modelos ou sistemas do processo penal que, inseridos em determinados contextos históricos e sociais, evidenciaram características que justificaram a bipartição conceitual adotada por diversos doutrinadores. São os sistemas inquisitório e acusatório, que são reflexos das próprias diretrizes dos ordenamentos.

Essas definições, como já introduzido, refletem o contexto em que determinada sociedade está inserida, o que acaba também refletindo na forma como são conduzidas as relações jurídicas de cunho processual penal, ou seja, quais são as inclinações da política estatal em questão. Ora, é nas constituições modernas que se encontra, implícita ou explicitamente, as inclinações acusatórias ou inquisitórias dos ordenamentos.

Dessa forma, é inquisitivo o sistema cuja inclinação processual penal tende a ignorar direitos fundamentais, evidenciando autoritarismo e utilitarismo como eficiência antigarantista. Seguindo a lógica oposta, é acusatório um ordenamento que traz no seu corpo, princípios penais de proteção aos direitos humanos que visem a limitação do poder punitivo do Estado a fim de consolidar o processo como instrumento a serviço da máxima eficácia de um sistema de garantias mínimas (LOPES JR., Aury, 2004).

O sistema processual penal acusatório é caracterizado por regras de procedimento específicas, seguidas com maior ou menor intensidade pelos corpos jurídicos nacionais. Pode-se dizer, assim, que o eixo descreve um modelo ideal, do qual os ordenamentos se aproximam mais ou menos. Entre os aspectos que o definem, cabe acentuar a separação rígida entre acusação e julgamento, o afastamento do juiz do labor vestigativo e probatório, um procedimento em regra oral e público e a paridade de armas entre acusação e defesa, numa perfeita negativa inquisitorial.

Cabe ressaltar que os modelos inquisitórios e acusatórios recebem essa denominação a partir de definições históricas, podendo características tradicionalmente elencadas em um dos eixos por sua afinidade lógica ao modelo histórico não serem essenciais ao seu modelo teórico. Mais que isso, quando se arrisca elencar características indispensavelmente constitutivas de determinado sistema processual penal, se parte, inevitavelmente, de juízos de valor em razão da conexão que indubitavelmente pode ser instituída entre sistema acusatório e modelo garantista e, por outro lado, entre sistema inquisitório, modelo autoritário e eficiência repressiva (FERRAJOLI, Luigi. 2002).

Corretamente classificado, o sistema penal brasileiro é acusatório. Isso se dá pela incidência de diversos dispositivos constitucionais garantidores, como da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV), do devido processo legal (art. 5º, LIV), da garantia do acesso à justiça (art. 5º, LXXIV), da garantia do juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII), do tratamento paritário das partes (art. 5º, caput e I), da ampla defesa (art. 5º, LV, LVI e LXII), da publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios (art. 93, IX) e da presunção da inocência (art. 5º, LVII) (CAPEZ, Fernando, 2014).

Esses dispositivos, quando inseridos numa instituição processual moldada com bases nas premissas acusatórias e garantistas justificam a classificação. Não é incomum, no entanto, doutrinadores elencarem o processo penal brasileiro como misto, o que leva a questionar a possibilidade de o ordenamento brasileiro ter, especialmente na legislação ordinária, inclinações possivelmente antigarantistas.

Cabe ressaltar, que o sistema misto, tem na fase preliminar seu procedimento secreto, o que não garante, por exemplo, o direito ao contraditório e a ampla defesa. Destarte, como o sistema vigente no Brasil tem por princípio a publicidade dos atos processuais, é correto afirmar que este não se conforma com o caso concreto. Ratificando a afirmativa, cita Salah Hassan Khaled Jr. que “o sistema é acusatório ou inquisitório. Não basta afrmar que é acusatório e permitir a utilização de elementos da fase inquisitória, que contaminam e comprometem a possível estrutura acusatória da segunda etapa” (2010, p. 304).

Resta claro então, que o sistema vigente no país é de fato o inquisitório. Seguindo os mais doutrinadores, este possui resquícios (e apenas isso) do sistema inquisitivo. São vários os dispositivos no Código de Processo Penal que evidenciam a afirmativa. Quem sabe o art. 156 seja o mais evidente desses, e dispõe que “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:  II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (grifo nosso).

Uma das principais características que diferenciam o sistema inquisitório do acusatório é a forma de produção de provas. No primeiro, o juiz era que acusava e julgava, produzia as provas. No segundo, o juiz deve sentenciar com base nos fatos imputados e nos deslindes probatórios do próprio processo, ou seja, não pode o juiz exercer função investigativa.

A dedução é lógica: se não pode o juiz investigar, porque o ainda é permitida a realização de diligências relevantes que poderão, de fato, influenciar na convicção do juiz? Esse e demais dispositivos – que ficarão para um próximo trabalho - continuam reiterando a força e o poder que o juiz tem nas decisões, o que demonstra um alto grau de subjetividade na resolução de conflitos. É necessário que o Judiciário se atente ao seu real papel, não intervindo como inquisidores em busca da tão utópica verdade real.


Notas e Referências:

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 21ª edição. 2014. 705 p.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição. 2002. 766 p.

KHALED JR., Salah Hassan. O Sistema Processual Penal brasileiro: Acusatório, misto ou inquisitório?. Civitas, Porto Alegre. V. 10, n. 2, maio-ago, 2010. 293-308 p.

LOPES JR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 297 pp.


Curtiu o artigo???

Leia mais sobre o tema no www.garantismobrasil.com

11121231_1607881519495631_524568245_n


Felipe Halfen Noll. Felipe Halfen Noll é acadêmico do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntário no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .


Laura Mallmann Marcht. . Laura Mallmann Marcht é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntária no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Sem título // Foto de: Jumilla // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jumilla/8668754142

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura