O Sistema Penal do Rei Midas - Por Carla Joana Magnago e Thiago Fabres de Carvalho

23/11/2016

Por Carla Joana Magnago e Thiago Fabres de Carvalho - 23/11/2016

Esta semana (16/11) o ex governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, protagonizou mais uma cena deplorável dirigida pelo sistema penal e seus mais diversos sustentáculos, como a mídia e seus espectadores. O ex governador foi filmado ao sair de maca de seu apartamento no Rio para o presídio de Bangu. A cena ainda tem como protagonista a família do político, esposa e filha aos gritos enquanto ele se debate na maca dentro da ambulância. O vídeo teve, em menos de dois dias, mais de um milhão de acessos na internet.

As reações não tardaram a se proliferar. Comentários agressivos, que transpareciam gritos de ódio, revelaram que, de fato, a vingança de sangue, cruel e mortífera, é o alimento antropológico mais profundo do sistema de justiça penal. E traz consigo um gozo compulsivo e perverso, oriundos das mais abissais "pulsões de morte".[1] Aquilo que René Gerard definiu de forma precisa como a "violência mimética" a exigir incessantemente o sacrifício de "vítimas expiatórias".[2]

Com efeito, há uma indisfarçável relevância no papel social desempenhado por aquela que se torna a “vítima sacrificial”, responsável por desviar a violência do objeto inicialmente visado e restabelecer a ordem, a coesão social. Sua função primordial consiste em absorver e representar todos os males que serão expurgados a partir de seu inevitável e necessário sacrifício.

Encontrar um culpado é indispensável para que a inocência possa existir, afinal, é exatamente “quando vemos outras pessoas cometerem faltas chocantes aos nossos olhos e passíveis de suscitar a nossa indignação que nos sentimos realmente inocentes”[3]. Com a acusação, ou seja, o ato de classificar os indivíduos, que se torna possível estabelecer a separação entre puros e impuros, culpados e inocentes.

No caso da atual "luta contra a corrupção" no Brasil, alguns políticos devem ser sacrificados em nome da salvação comum. A corrupção, enquanto fenômeno econômico, social, ético e político, é minuciosamente desviada pelo sacrifício de alguns bodes expiatórios. As raízes coletivas e estruturais da corrupção são apagadas no altar da exaltação do cordeiro imolado. As dimensões estruturais dos processos políticos, das relações entre o público e o privado; as perversidades e o flagrante absurdo representado pelo auxílio moradia e os supersalários do Judiciário e do Ministério Público, alçados a símbolos de encarnação da ética e da pureza, desaparecem no momento exato da consagração do sacrifício expiatório.

Garotinho, a despeito de seus atos constituírem crimes, consiste na verdade numa representação simbólica e dissimuladora da corrupção, que seguirá inalterada, da política aos supersalários injustificáveis.

De modo que comemorar a cena tenebrosa de seu corpo saindo do hospital de maca para o presídio, diante da família aos berros, não diz sobre suas posições políticas, diz sobre o tipo de ser humano que você é, também já totalmente "corrompido". Para querer que alguém seja processado, julgado e condenado pelos crimes dos quais é acusado você não precisa descer ao último grau de humanidade que resta a todos nós.

Espetáculo cruel e completamente lamentável. No mesmo tom, os gritos de sua esposa - "meu marido não é bandido" -  é um ótimo resumo da situação, pois ao dizer isso ela nos faz entender que se ele fosse "bandido" talvez merecesse passar por tudo aquilo, merecesse não ter um tratamento adequado, merecesse ser humilhado publicamente, merecesse protagonizar tamanha desgraça em frente à sua família.

Nem mesmo quem vive a barbárie do sistema penal consegue se posicionar contra ela, o sistema punitivo segue corrompendo tudo o que ele toca, até mesmo as suas vítimas. No dizer sempre magnífico de Louk Hulsman, “Gostaríamos que quem causou um dano ou um prejuízo sentisse remorsos, pesar, compaixão por aquele a quem fez mal. Mas como esperar que tais sentimentos possam nascer no coração de um homem esmagado por um castigo desmedido, que não compreende, que não aceita e não pode assimilar? Como este homem incompreendido, desprezado, massacrado, poderá refletir sobre as consequências de seu ato na vida da pessoa que atingiu? (...) Para o encarcerado, o sofrimento da prisão é o preço a ser pago por um ato que uma justiça fria colocou numa balança desumana. E, quando sair da prisão, terá pago um preço tão alto que, mais do que se sentir quites, muitas vezes acabará por abrigar novos sentimentos de ódio e agressividade. (...) O sistema penal endurece o condenado, jogando-o contra a ‘ordem social’ na qual pretende reintroduzi-lo, fazendo dele uma outra vítima.”[4]

O Rei Midas transformava em ouro tudo o que tocava. O sistema penal transforma em barbárie. Ambos gananciosos. O Rei Midas acabou arrependido de sua ambição e terminou a vida fracassado. Iremos aplaudir o fracasso do sistema penal até que ele toque em todos?


Notas e Referências:

[1] O internalta Samuel Mateus disparou em seu comentário ao vídeo: "ver um político ir preso é melhor que uma gozada". In: https://www.youtube.com/watch?v=2wc4qylKK2Q.

[2] GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Editora UNESP, 1990, p. 13.

[3] GARAPON, Antoine. Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 258. BOLDT, Raphael e CARVALHO, Thiago Fabres de. Processo e Tragédia: a sentença penal como locus da crise sacrificial. Revista Brasileira de Ciências Criminais (115). São Paulo: RT, 2015.

[4] HULSMAN, Look. CELIS, Jacqueline Bernat. Penas Perdidas: o sistema penal em questão. Rio de Janeiro: editora LUAM, 1997


Carla Joana Magnago. . Carla Joana Magnago é Advogada Criminalista. . . .


Thiago Fabres de CarvalhoThiago Fabres de Carvalho é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Realizou Estágio de Doutoramento pela Universidade de Coimbra (2006). Docente no curso de Mestrado e Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Sociologia Jurídica, Teoria do Direito e do Estado e Ciências Criminais, atuando principalmente nos seguintes temas: criminologia, direito penal, processo penal, direito, globalização e democracia e crise do positivismo jurídico. 


Imagem Ilustrativa do Post: Visita Técnica da Comissão de Segurança - Unidade Prisional de Viana – 10-10-2013 // Foto de: ALES // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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