O RECEBIMENTO DA PEÇA ACUSATÓRIA E O RECURSO DE APELAÇÃO      

04/02/2022

 

Conforme consta do artigo 581, I do Código de Processo Penal, caberá recurso, no sentido estrito, em relação à decisão que não receber (ou rejeitar) a denúncia ou a queixa e, numa interpretação extensiva (permitida nos termos do artigo 3º., do Código de Processo Penal[1]), também será possível o mesmo recurso em sentido estrito para impugnar a decisão que rejeitar (ou não receber) eventual aditamento (real ou pessoal) feito pelo acusador.[2]

Como o inciso I refere-se apenas ao não recebimento (ou rejeição), desde a vigência do Código de Processo Penal, portanto, há mais de oitenta anos, a doutrina e a jurisprudência afirmam em uníssono não ser possível recorrer da decisão contrária, qual seja, a que recebe a peça acusatória admitindo o exercício da ação penal; muitos, inclusive, por entenderem (de maneira absolutamente equivocada) que não se trata exatamente de uma decisão, mas de um mero despacho de encaminhamento, logo irrecorrível.

Assim, quando o Juiz recebe uma denúncia ou uma queixa – quando seria o caso de rejeição, nos termos do art. 310 do Código de Processo Penal – a solução aventada pela doutrina e também pela jurisprudência é a impetração de um habeas corpus para o chamado trancamento do processo (ou da ação penal, como preferem alguns), obstaculizando o andamento do procedimento penal e instalando uma verdadeira crise de instância ou do procedimento (como preferia Carnelutti).[3]

E assim vem sendo por décadas... Recebe-se a peça acusatória – quando deveria ter sido rejeitada -, impetra-se o writ e o tribunal, se for o caso, conhece do pedido, concede a ordem e determina o trancamento do processo, encerrando o procedimento penal (a depender do mérito da decisão, faz-se, inclusive, coisa julgada material, impedindo novo exercício da ação penal).[4]

Acontece que, também como se sabe, especialmente aqueles que atuam cotidianamente na área criminal, é muito difícil (raríssimo mesmo!) que a ordem seja concedida e o procedimento encerrado, pois os nossos tribunais, de maneira remansosa e pacífica – inclusive a Suprema Corte -, entendem não ser possível, em sede de cognição sumária do processo de habeas corpus, o exame de matéria fático-probatória, o que inviabiliza quase sempre, quando conhecido, a concessão da ordem.

A propósito, Alberto Silva Franco afirma, com inteira propriedade, que “o exame do material probatório não deve ser submetido a uma aferição em profundidade. Pelo menos, via de regra. Há certas situações, no entanto, que autorizam sua análise mais aprofundada. Por exemplo, nos casos em que se recorre ao habeas corpus para o trancamento de ação penal. Não se trata aqui de um exame de mérito da imputação, mas apenas da verificação da legalidade ou não da ação penal.”[5]

No Supremo Tribunal Federal[6] e no Superior Tribunal de Justiça[7] as decisões são inúmeras.

(Aliás, a Lei nº. 5.250/67, a antiga Lei de Imprensa - não recepcionada em sua integralidade pela Constituição Federal, segundo decidiu a Suprema Corte no histórico julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 130[8] -, admitia, no § 2º. do artigo 44, recurso em sentido estrito para impugnar a decisão de recebimento da denúncia ou queixa, sendo esta, aliás, a única hipótese em que cabia recurso contra a decisão que recebesse a denúncia ou a queixa).

Pois bem.

Não sendo adequado o recurso em sentido estrito (por absoluta falta de previsão legal) e diante da notória dificuldade para se trancar um processo via habeas corpus (pelo motivo acima elencado), propõe-se nesse texto a admissibilidade do recurso de apelação – sem prejuízo de eventual writ, evidentemente – com fulcro no artigo 593, II, do Código de Processo Penal, segundo o qual caberá apelação (residualmente) para impugnar decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz singular, que não sejam absolutórias ou condenatórias, nem do Júri.

Mas, para se admitir a possibilidade do apelo é preciso abandonar – exatamente porque é imprópria e inaceitável sob o ponto de visto jurídico-processual – a tese que o recebimento de uma denúncia ou de uma queixa não tem caráter decisório, tratando-se apenas de um mero despacho ordinatório. Trata-se, às escâncaras, de uma afirmação grosseiramente equivocada, que olvida a gravidade de um ato judicial como aquele, que leva alguém a responder um processo criminal, com todas as suas “cerimônias degradantes”[9], a possibilidade da decretação de uma prisão preventiva (cada vez mais banalizada no Brasil), o risco de quebras de sigilos garantidos constitucionalmente, etc., etc... e, enfim, o perigo de uma condenação.

Considerar aquele ato judicial como um mero despacho é, em definitivo, esquecer que responder a um processo penal põe o acusado em uma situação vexatória (sob todo e qualquer aspecto) e de absoluta falta de segurança quanto ao seu futuro (processual e de vida), inclusive porque no Brasil faz-se, com muita frequência, tabula rasa da cláusula constitucional da presunção de inocência, estigmatizando-se desde sempre o acusado, como se já um condenado definitivo fosse, muitas vezes submetendo-o à execução provisória da pena.

Destarte, o recebimento da peça acusatória - não sendo um simples despacho e, portanto, devendo ser fundamentado nos termos do artigo 93, IX da Constituição Federal e artigo 315, § 2º., do Código de Processo Penal – trata-se de um ato processual tipicamente decisório, passível de ser objeto de uma apelação, nos termos do já citado inciso II do artigo 593 do Código de Processo Penal; obviamente, não se trata de uma sentença, pois não põe fim ao processo, muitíssimo pelo contrário, mas é sim uma decisão interlocutória, impugnável pelo recurso de apelação.[10]

Neste sentido, ressalta-se que a doutrina e a jurisprudência vêm admitindo a interposição residual da apelação (com fulcro no inciso II) para impugnar decisões tais como as que tratam da restituição de coisa apreendida; as que resolvem questões relativas às medidas ditas assecuratórias (arresto, sequestro e especialização e registro de hipoteca legal); a decisão proferida em pedido de explicações para efeito de oferecimento de queixa por crime contra a honra; que reconheça, de ofício, a existência de coisa julgada ou litispendência; que decida acerca da reabilitação; que declare a ausência de condição objetiva de punibilidade; que homologue o incidente de insanidade mental do acusado ou a suspensão condicional do processo e, até!, as que decretam medidas protetivas de urgência.

Por fim, observa-se que, admitindo-se a adequação da apelação em tais casos, e sendo este um recurso ordinário, de cognição plena e exauriente, não poderiam mais os tribunais deixar de trancar o processo quando fosse o caso evidente de rejeição da peça acusatória (por falta de justa causa, por exemplo), sob o argumento fácil e simplista de impossibilidade de uma cognição mais abrangente, e sem prejuízo, frise-se!, da utilização do habeas corpus substitutivo ou mesmo da concessão da ordem, liminarmente e de ofício, em casos nos quais houvesse manifestamente abuso de poder ou ilegalidade.[11]

 

Notas e Referências

[1] Sobre a interpretação extensiva no processo penal, conferir MOREIRA, Rômulo de Andrade. “A interpretação extensiva no processo penal e a perpetuatio jurisdictionis.” Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/a-interpretacao-extensiva-no-processo-penal-e-a-perpetuatio-jurisdictionis. Acesso em 03 de fevereiro de 2022.

[2]Melhor teria andado o legislador se tivesse estabelecido a seguinte redação para esse inciso: ´que rejeitar a denúncia ou queixa`. O fato de o inciso utilizar a expressão não receber alimentou, por décadas, uma profunda discussão em torno da distinção entre as decisões de ´rejeição` e ´não recebimento`. Atualmente, com a reforma processual de 2008, desapareceu essa polêmica, pois a nova redação do art. 395 do CPP abrange os anteriores casos de rejeição e não recebimento sob uma mesma disciplina: rejeição liminar.” (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2021, pp. 1098 e 1099).

[3] Sobre a crise de instância ou a crise do procedimento, conferir MOREIRA, Rômulo de Andrade. “Sergio Moro, sua nova crise de instância e a emenda ao Código de Processo Penal.” Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/sergio-moro-e-a-sua-nova-crise-de-instancia. Acesso em 03 de fevereiro de 2022.

[4] Veja-se, por exemplo, o caso do acórdão decidir pela atipicidade da conduta ou pela extinção da punibilidade.

[5] FRANCO, Alberto Silva. Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Volume 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 1560.

[6] Por exemplo, no Agravo Regimental no Habeas Corpus nº. 187841, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, afirmou-se que “o STF já decidiu que ‘não se admite, na via acanhada do habeas corpus, a análise aprofundada de fatos e provas, a fim de se verificar a alegada ausência de dolo do paciente’ (HC 102.745, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie). Precedentes.” Em outro julgado, consignou-se expressamente que “o reconhecimento de justa causa para o trancamento de ação penal, por irrelevância penal do fato imputado, requer o exame da matéria fático-probatória, providência inviável em habeas corpus.” (Habeas Corpus nº. 88385, Relator: Ministro Cezar Peluso). Em outro Agravo Regimental, no Recurso Ordinário Constitucional em Habeas Corpus nº. 188370, o relator, Ministro Luiz Fux, decidiu que “o habeas corpus é ação inadequada para a valoração e exame minucioso do acervo fático-probatório engendrado nos autos.”

[7]A tese de insuficiência das provas de autoria e materialidade quanto ao tipo penal imputado consiste em alegação de inocência, a qual não encontra espaço de análise na estreita via do habeas corpus ou do recurso ordinário, por demandar exame do contexto fático-probatório.” (Recurso Ordinário Constitucional no Habeas Corpus nº. 133.995, Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª. Turma, julgado em 06/10/2020). “É incabível, na estreita via do habeas corpus, a análise de questões relacionadas à negativa de autoria, por demandarem o reexame do conjunto fático-probatório dos autos.” (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº. 575.610, Relator: Ministro Ribeiro Dantas, 5ª. Turma, julgado em 15/09/2020).

[8] Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411. Acesso em 03 de fevereiro de 2022.

[9] Sobre o tema, conferir a dissertação de mestrado de THISEN, Graciela Fernandes. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/1841. Acesso em 03 de fevereiro de 2022.

[10] A propósito, não faz nenhum sentido a diferença estabelecida no artigo 800, I e II, do Código de Processo Penal entre decisão interlocutória simples e decisão interlocutória mista. A correta classificação das decisões judiciais deve levar em consideração o termo do processo. Assim, se a decisão põe fim ao processo (julgando ou não o mérito), trata-se de uma sentença. Do contrário, será uma decisão interlocutória, desde que tenha um caráter decisório, e não seja um ato de mero expediente.

[11] A admissibilidade excepcional do habeas corpus substitutivo de recurso ordinário foi admitida pela Suprema Corte no julgamento do Habeas Corpus nº. 152.752.

 

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