O que Foucault tem a ver com a Ciência Atuarial e com o Direito Penal do Inimigo?

25/08/2016

Por Gabriel Bulhões – 25/08/2016

Inicialmente, cumpre-me ressaltar aqui que as reflexões que se seguem foram originadas a partir das discussões e painéis propiciados pelo recente VII Encontro Nacional dos Advogados Criminalistas, promovido pela Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM) na PUC-PR, na cidade de Curitiba nos dias 30 de junho e 1º de julho de 2016. Todas as palestras foram inspiradoras, mas em especial a do Professor Juarez Cirino dos Santos me instigou a escrever esta conclusão tirada a partir de sua fala.

O evento sem dúvidas foi providencial e veio a calhar em um momento de enorme retrocesso nas garantias processuais penais que chegam a inviabilizar, de certa forma e em certo ponto, o próprio exercício da advocacia criminal.

Então, entrando no tema propriamente dito, como podemos relacionar o pensamento de Michel Foucault, a utilização das estatísticas e prognósticos da Ciência Atuarial e o arcabouço teórico-dogmático (de cunho, na verdade, Político Criminal) de Günther Jakobs no Direito Penal do Inimigo?

Pois bem. Vamos por partes.

Nos Estados Unidos da América (EUA), hoje, existe uma forte tendência nas técnicas e métodos estatísticos da Ciência Atuarial para realizar uma modificação – nas palavras do Professor Juarez – do Estado da Administração do Crime. O governo vem investindo cada vez mais em pesquisas e agências que envolvam o estudo da prognose criminal.

Nessa perspectiva, a Política Criminal toma uma postura prospectiva, através dos prognósticos estatísticos que segmentam a população em grupos (de maior ou menor risco, maior ou menor propensão à criminalidade). Esse tipo de política, portanto, é uma nova tentativa de objetivização do ser humano e do fenômeno crime (complexos e individualizados por essência).

É o retorno, com uma nova roupagem, da Criminologia Positivista, determinista, onde as individualidades e, portanto, os ofícios da Advocacia, da Psicologia, da Assistência e do Serviço Social etc., perdem seu lugar para o único saber válido: o da predição da criminalidade por meio da estatística atuarial.

Existem vários meios de utilização da Ciência Atuarial em termos de Política Criminal que estão sendo testados pelo governo dos EUA, mas um exemplo usado pelo Professor Juarez chamou atenção: listadas nove características gerais, se o sujeito reunir quatro delas será considerado de risco para o Estado. A partir daí, como se sabe, retorna-se ao conceito de Periculosidade (ou perigosidade), abandonando a perspectiva dogmática da Teoria analítica do Delito amparada no conceito de Culpabilidade.

E o que isso tudo tem a ver com o Direito Penal do Inimigo? A teoria de Jakobs foi formulada na perspectiva de dividir nossa sociedade, ou qualquer outra população na qual seja aplicada, em dois grandes grupos: os cidadãos e os inimigos. Para o cidadão, quando da infração da normal penal, deve-se aplicá-la com o resguardo de todas as garantias, na perspectiva corretiva – tendo em vista que o mesmo é ressocializável.

Por outro lado, para os classificados como inimigos, verdadeiros outsiders, deve-se aplicar um Processo Penal puramente inquisitivo, com supressão de garantias processuais e materiais, tudo em vista à segurança do grupo social, pois o inimigo representa uma ameaça insuperável à sociedade.

O Direito Penal do Inimigo, pois, é a transmutação da lógica da guerra para o cenário interno dos países. Altera-se o pano-de-fundo, para se importar a lógica do tratamento diferenciado do inimigo, que é tido como um corpo estranho que representa uma ameaça e portanto deve ser neutralizado/eliminado/aniquilado.

Nós já vivemos essa lógica na América Latina hoje, notadamente em todo o território Brasileiro. Existe hoje em plena vigência uma política de neutralização do “inimigo”, construído historicamente amparado pela forte desigualdade social que nos assola, que é um estereótipo construído com arquétipos múltiplos e sobrepostos, o qual representa toda uma parcela da nossa sociedade.

Preto. Pobre. Periférico. Presidiário. Portador de AIDS, Deficiência, ou qualquer outra moléstia. Analfabeto. Desempregado. São múltiplos os rótulos que determinam a maior ou menor chance de se enquadrar como cliente do nosso Sistema Penal. Indisfarçável, pois, a um olhar superficial e rápido do perfil da população carcerária brasileira a política de Encarceramento em Massa e Criminalização da Pobreza que existe no nosso país.

A rotina militarizada da Segurança Pública opera no cenário brasileiro a lógica de guerra pregada pelo Direito Penal do Inimigo; e, portanto, para conhecer nosso inimigo basta ver onde são focados os esforços de guerra do Estado brasileiro.

E, por fim, onde podemos relacionar o pensamento do filósofo francês Michel Foucault nisso tudo? O Professor foi titular da cadeira História dos sistemas de pensamento de 1970 a 1984 na Universidade de Paris, e boa parte dos seus cursos (que duravam 26 horas de aula por ano, para exposição das pesquisas originais desenvolvidas ao longo do ano anterior[1]) foram transcritos e traduzidos para o português do Brasil pela Editora Martins Fontes.

Algumas aulas de Foucault no Collège de France (1975-1976) deram origem ao livro Em Defesa da Sociedade[2]. Nesse momento do desenvolvimento do seu pensamento, Foucault se ocupava das relações de poder na sociedade, a partir do uso do ius puniendi do Estado. Nessa obra há a inversão do teorema de Clausewitz, o qual dizia que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, enquanto que o pensador francês vai levantar a tese de que “a política é a continuação da guerra por outros meios”.

Foucault não poderia estar mais certo, e nas suas análises, nos idos do século passado, foi antecipado todo esse direcionamento político criminal dado hoje em diversas partes do mundo, a partir de vários setores, em diferentes perspectivas e formas de abordagem: a utilização dos meios de guerra para o controle social.

Nós, enquanto advogados criminalistas, e todos aqueles que se somem ao front das liberdades, entrincheiramos a última linha de contenção do avanço punitivista, e temos que estar vigilantes e atentos a essas tendências que estão sendo provocadas a partir da política criminal maximalista. O momento é de atenção total, e de união de esforços em prol da minimização da irracionalidade desse sistema!


Notas e Referências:

[1] FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. Ivonne C. Bennedetti (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2015.

[2] FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Maria Ermantina Galvão (Trad.) São Paulo: Martins Fontes, 2005.


Gabriel Bulhões. . Gabriel Bulhões é Advogado criminalista militante, atual Presidente da Comissão dos Advogados Criminalistas da OAB/RN, especialista em Ciências Criminais e Professor de Processo Penal.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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