O que é mais relevante: garantias individuais ou o interesse coletivo?

01/02/2017

Por Paulo Incott – 01/02/2017

Existem conquistas democráticas que custam ser valorizadas por aqueles que não compreendem a magnitude do que significa viver sem elas. Assim, mesmo hoje é comum encontrarmos pessoas dispostas a levantar a questão temática deste escrito, muito embora do ponto de vista jurídico (doutrinário) esse seja um embate superado, ao menos do pós-guerra em diante.

Diante de diversos acontecimentos que ocorreram no ano passado manifestações foram feitas no sentido de que seria necessário sacrificar garantias individuais em prol de um suposto benefício coletivo. De certa forma este pensamento esteve por trás da decisão que contraiu o significado da presunção de inocência. Ele também anima muitas das “medidas” propostas na panaceia que ficou conhecida como “dez medidas anticorrupção”. Porém, o fato que pareceu trazer este argumento de modo mais escancarado à tona foi a infeliz colocação de Fátima Bernardes sobre a escolha entre um traficante gravemente ferido e um policial levemente ferido.

Não se pretende aqui discutir este fato em específico, mas sim procurar analisar a questão-tema do ponto de vista do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, da Constituição Federal como garantia de delimitação consensual para ação estatal. A análise será exemplificativa, uma vez que o tema é amplo e o espaço restrito. O ponto principal que se pretende demonstrar, ainda que brevemente, é de que a questão proposta se manifesta em um falso dilema.

Iniciemos com a compreensão do que significa o Estado Democrático de Direito, a partir do contraste deste com outras formas de organização estatal. Primeiramente, é mister estabelecer o conceito de Estado de Direito, para depois nos atermos um pouco à questão da democracia.

Evelyne Pisier descreve de modo sucinto as bases sobre as quais se pode diferenciar o Estado de Direito dos modelos de Estado anteriores às Revoluções Norte Americana e Francesa. A autora leciona:

Progressivamente, esta forma tenderá a tornar-se complexa, integrando os elementos que caracterizam o que hoje em dia se chama de Estado de Direito: um Estado dotado de mecanismos institucionais e jurídicos, separação de poderes e garantia de liberdades políticas, colocando, então, a distância, o Estado de simples polícia para submeter-se ao imperativo de proteção da liberdade individual.[1]

Muitos outros pontos poderiam e deveriam ser estudados para a compreensão das mudanças ocorridas com a construção deste modelo de Estado. Porém, é suficiente para o objetivo aqui proposto que compreendamos o fato de que o Estado de Direito tem como função precípua a garantia de liberdades (o adjetivo “políticas” no texto de Pisier pode ser compreendido de forma ampla, traduzindo-se num rol que acaba por ser destrinchado nas Constituições, como é o caso das liberdades/garantias elencados no art. 5º da Constituição Federal do Brasil). Não será necessário nos atermos à questão das “gerações” ou “dimensões” dos direitos fundamentais que se seguiram no desenrolar prático de atuação do Estado de Direito. Bastará que se tenha compreendido que sua característica peculiar se traduz na proteção a estes direitos ou garantias.

Vale lembrar que a gênese deste modelo de Estado, impulsionada pela burguesia, tinha como um de seus alvos justamente prover a esta um livramento dos arbítrios do absolutismo, primordialmente em questões penais.

Pede-se licença neste momento para fazer um breve desvio no desenrolar da linha raciocínio com o fim de acrescentar a observação de que uma das formas de pensamento que acaba por promover a ideia de que os interesses coletivos são uma categoria à parte das garantias individuais e estabelecê-lo como superior é a historiografia positivista, hoje superada. Comentando este ponto, Fonseca aduz:

Um exemplo importante e concreto desse tipo de procedimento utilizado por esta historiografia jurídica positivista pode ser facilmente identificado no privilégio desmedido dado à categoria “Estado” e a tendência de vislumbrá-lo de modo apartado da “sociedade civil” (como se fosse seu oposto). Ignora-se como essa “dicotomia” pertence muito mais aos tempos presentes que aos tempos passados (veja-se como essa divisão perde sentido no “antigo regime”) e, a partir daí outras falsas oposições aparecem e permeiam o discurso histórico jurídico: o direito privado e o direito público, o interesse particular e o bem-comum, a constituição material e a constituição formal, o fato e a norma, etc.[2]

Dando sequência, é crucial que se entenda a razão pela qual contemporaneamente costuma-se referenciar o Estado de Direito com o acréscimo da expressão “democrático”. Há inclusive quem defenda tratar-se de uma redundância. Porém, algumas observações serão úteis aqui.

Conforme já observado a força motora por trás das alterações que dará vida ao Estado de Direito foi o desejo da classe burguesa de alcançar o poder. Uma vez bem-sucedida em seu intento, diversos abusos se seguiram, criando um enorme abismo entre os proprietários do capital e a grande massa operária, sem contar no contingente flutuante de “pessoas não aptas ao trabalho” que precisavam ser mantidas sob vigilância. O ponto é que os desmandos provocados pela nova classe no poder deram ensejo a um forte contraponto, sendo o ápice deste o movimento socialista em suas muitas vertentes.

Diante da necessidade de encurtar esta digressão, passemos ao ponto em que o próprio socialismo deu vazão a regime totalitários. Esta falha estrutural do movimento socialista/comunista fez com que se erguesse contra ele poderosos inimigos, que acabaram por eliminá-lo quase por completo em nossos dias. O que nos interessa primordialmente nesta análise é que o modo de organização do Estado que, aos poucos, se estabeleceu como a melhor forma de evitar o aparecimento de novos “Estados totalitários de Direito” (não só socialistas “puros”, mas como os que subiram ao poder após a primeira guerra – fascismo/nazismo) foi a democracia. Esta passa a ser vista não apenas como um sistema político em que seus líderes são eleitos por sufrágio, mas como aquele em que é possível notar um genuíno pluralismo partidário, uma separação real entre os poderes e mecanismos efetivos de garantia dos direitos fundamentais.

Dentro desta percepção, fica claro que num Estado Democrático de Direito em hipótese alguma se poderá dizer que o interesse coletivo tem maior valor que as garantias individuais. As garantias individuais SÃO o interesse coletivo. Não existe a dicotomia oferecida. Todos os cidadãos possuem interesse em que as garantias sejam mantidas, uma vez que elas representam uma das colunas indispensáveis à democracia. Sendo ela vilipendiada, todo o sistema se fragiliza. A agressão aos direitos individuais é uma agressão aos direitos de todos; afinal, quem garantirá que você ou eu não seremos os próximos alvos da exceção?

Falando inclusive sobre exceção é importante destacar que ela foi o grande argumento “sacado” pelo nazismo (e outras formas de totalitarismo) para a “suspensão” (e posterior aniquilação) dos direitos fundamentais de determinados conjuntos de indivíduos. Na realidade, todo Estado autoritário que se estabeleceu após a solidificação dos Estados de Direito no ocidente logrou sucesso em seu intento utilizando essas três táticas: eleição de um ou mais grupos como “inimigos” responsáveis pelas mazelas econômicas e sociais que o Estado enfrentava; alegação da necessidade de constituir exceções “legais”, principalmente em matéria penal/processual penal para fazer frente aos “inimigos”; finalmente, forte apoio do judiciário para legitimação das decisões intentadas. A América Latina é rica em prover exemplos.[3]

Tendo ficado claro o falso dilema entre interesse coletivo e individual perante os elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito, aborda-se a seguir a questão do Constitucionalismo para reforço desta argumentação. Em uma excelente obra intitulada “O que é isto – as garantias processuais penais”, Lênio Luiz Streck e Rafael Tomaz de Oliveira abordam este ponto. Entre muitas considerações valiosas para o tema aqui abordado, recorta-se uma lição trazida pelos autores a partir do magistério de Georges Abboud:

A fórmula que postula necessária e incontestável primazia do interesse público sobre o particular é uma simplificação errônea e frequente do problema que existe entre o interesse público e os direitos fundamentais. Os direitos fundamentais são essencialmente direitos contra o Poder Público (Estado). A própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco, caso fosse admitida qualquer restrição contra eles, sob o argumento de que tal restrição traria benefício geral para a maioria da sociedade ou então para o próprio governo, ou ainda a preservação do interesse público. A primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse público configura premissa fundamental para caracterização do Estado Constitucional.[4] 

Resta clara a impossibilidade de se argumentar pela primazia do interesse público[5] em meio a um Estado regido por uma Constituição democrática.

Dentro da lógica constitucional não é sem razão que as garantias individuais são elencadas no início da Lei Maior, próximos aos fundamentos e objetivos fundamentais da República. Vale destacar que a dignidade da pessoa humana, princípio basilar de todos os direitos fundamentais, é elencado em nossa Constituição já no art. 1º, III, como um destes fundamentos; e que a “prevalência dos direitos humanos”, extremamente correlatos às garantias individuais, é estabelecida como princípio regente da República no art. 4º, II.

Isto posto, superado o falso dilema que opõe garantias individuais ao interesse público, qual a solução correta para o conflito entre direitos (garantias) individuais/fundamentais e ações que prejudiquem a coletividade?

Sinto decepcionar o leitor, mas a resposta não pode ser dada. Explico: os conflitos que emergem em nossa “modernidade líquida” são de matiz extremamente diversificada. Não existirão respostas padrão adequadas. O melhor caminho parece ser, ao menos na esfera jurídica, o ofertado pelos ensinos da “nova” hermenêutica ou hermenêutica crítica. De toda forma, será melhor não termos uma resposta pré-determinada do que termos uma que conflita diretamente com nossos fundamentos mais preciosos.


Notas e Referências:

[1] PISIER, Evelyne. Historia das Ideias Politicas. Barueri, SP: Manole, 2004

[2] FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012. p. 65

[3] SERRANO, Pedro Estevam A. P. Autoritarismo e Golpes da América Latina: Breve ensaio sobre Jurisdição e Exceção. São Paulo: Alameda, 2016.

[4] STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 38

[5] Interesse presumido, para não dizer imaginário. Afinal, quem é o “público”? Quantos foram consultados? Vale a opinião da maioria? Simples ou qualificada?

FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012

PISIER, Evelyne. Historia das Ideias Politicas. Barueri, SP : Manole, 2004

SERRANO, Pedro Estevam A. P. Autoritarismo e Golpes da América Latina: breve ensaio sobre Jurisdição e Exceção. São Paulo: Alameda, 2016.

STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O que é isto – as garantias processuais penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.


paulo-incott. . Paulo Incott é Advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduando em Criminologia. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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