O que é Jurisprudência Inercial?  

29/08/2021

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

Nas duas últimas décadas as decisões de Tribunais em relação às suas naturezas e efeitos, intra e extraprocessuais, notadamente dos Tribunais Superiores, foram objeto de diversos entendimentos, doutrinários, legislativos e mesmo da própria jurisdição.

O termo Jurisprudência deixou de ser apenas conceituado classicamente como o “conjunto de decisões judiciais” para ganhar contornos e subcategorias que refletem não apenas em um debate teórico (veja-se, a propósito, mais recentemente, a extensa produção acadêmica sobre Precedentes Vinculantes no Brasil), mas, principalmente, na atuação prática e pragmática dos Tribunais e na reflexividade externa à jurisdição, na medida que a normatividade jurisdicional passa a condicionar comportamentos e condutas, de pessoas, governos e empresas.

Assim é que, em termos doutrinários, por exemplo, Rodolfo de Camargo Mancuso[i] constrói uma pirâmide escalonada da Jurisprudência em que, da base para o topo, se encontram: (i) certos acórdãos, mesmo isolados ou até minoritários, que passam a ser invocados em abono de teses jurídicas e se tornam “verdadeiros marcos regulatórios em certas questões”; (ii) acórdãos de julgamentos de recurso extraordinário e especial repetitivos, decisões plenárias do STF de grande influência social, política, econômica e jurídica, acórdãos proferidos em questões de ordem pelo pleno ou órgão especial dos tribunais, os acórdãos oriundos do incidente de assunção de competência e a posição adotada pelo STJ no pedido de uniformização da interpretação do direito federal, relativa às Turmas de Uniformização dos Juizados Especiais; (iii) acórdãos expedidos em um razoável tempo e de modo uniforme, “assim configurando o sentido básico da jurisprudência”; (iv) jurisprudência dominante, assim entendida os acórdãos do terceiro degrau, qualificados pela preservação firme e constante em número importante de casos (inclui o autor também a jurisprudência pacífica); (v) súmulas, simples ou persuasiva; (vi) súmulas vinculantes.

Ainda, combinando-se “os critérios grau de uniformização com o grau de formalização da verificação, é possível classificar a jurisprudência em: (a) jurisprudência divergente; (b) jurisprudência dominante; (c) jurisprudência pacificada; e (d) jurisprudência sumulada”[ii].

Em sede legislativa, após amplo debate e controvérsias, incluiu-se no ordenamento jurídico brasileiro, como norma constitucional (Emenda Constitucional n. 45/2004), a súmula vinculante, que pressupõe para sua edição, “reiteradas decisões sobre matéria constitucional”[iii].

Na mesma emenda constitucional foi criado filtro jurisprudencial da Repercussão Geral em relação ao Recurso Extraordinário: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

Recentemente, em julgamento de Tema de Recurso Especial Repetitivo (Tema 1.004), no REsp 1.750.660/SC, julgado em 11.05.2021[iv], inseriu-se mais uma subcategoria à Jurisprudência.

Trata-se da Jurisprudência Inercial.

Em voto-vista, vencedor no julgamento, o Ministro Herman Benjamin, criador do termo, que denominou de um fenômeno da prática judiciária[v], assim dispôs:

Denomino de jurisprudência inercial a deformidade da prática judicial patenteada por precedentes-solitários – ilhotas perdidas em oceano antagônico –, cuja força genética de inspiração normativa desapareceu, no caso da lei; ou, na hipótese de princípios, sucumbiu ao descrédito ou desuso; ou, ainda, em situação de divergência interna entre órgãos colegiados do mesmo Tribunal, foi afastada por orientação vinculante firmada em grau superior (p. ex., Seção versus Turma). A anomalia traduz tripla infração, simultaneamente ao dever de uniformização da jurisprudência, ao dever de manutenção da estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência, e ao dever de fundamentação adequada e específica na modificação de jurisprudência pacificada, consoante prescrição taxativa estampada nos arts. 926, caput, e 927, § 4º, do Código de Processo Civil.

A natureza inercial se explica, embora não se legitime, por várias razões. Entre elas, mencione-se, de início, o comodismo imposto pela rotina de trabalho, que fomenta a repetição automática de parâmetros jurisprudenciais "zumbi" (mortos e vivos a um só tempo), imperfeição compreensível diante de desgovernado e inavegável dilúvio de processos que aflige o STJ e outros Tribunais brasileiros, cenário agravado por sermos, até recentemente, compelidos a tudo manusear por meio de autos físicos. Além disso, avulta a facilidade, na era do computador, de reiteração acrítica ("copia e cola") de precedentes, mecanicismo por vezes incapaz de identificar ou descartar proposições jurisprudenciais reverberantes de ideias concebidas sob inspiração de regimes jurídicos anacrônicos, revogados ou incompatíveis com as premissas éticas, jurídicas e políticas do presente.

Destaca-se da denominada Jurisprudência Inercial, além de ter sido utilizada para refutar a aplicação da Jurisprudência de modo cômodo, acrítico, desconectado, descontextualizado e desatualizado historicamente; além de apontar uma tripla infração, quais sejam, “ao dever de uniformização da jurisprudência, ao dever de manutenção da estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência, e ao dever de fundamentação adequada e específica na modificação de jurisprudência pacificada”; uma crítica contundente, de próprio membro do Tribunal da Cidadania, a tal fenômeno jurisprudencial.

Em tempos de reafirmação do Estado Democrático de Direito se mostra oportuna a exposição de tal fenômeno e sua criticidade, deixando reassentado que, constitucional e processualmente exigido é que a decisão judicial não seja ou utilize argumentos de autoridade (como a Jurisprudência Inercial), mas sim, sejam os argumentos a autoridade da decisão, já que a “autoridade do argumento é, talvez, a única não autoritária”[vi].

 

Notas e Referências

[i] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Sistema brasileiro de precedentes: natureza, eficácia, operacionalidade, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 135-136.

[ii] MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. A jurisprudência uniformizada como estratégia de aceleração do procedimento, In, Direito jurisprudencial, coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 352. Na sequência Monnerat conceitua tais subcategorias de Jurisprudência: “A jurisprudência divergente seria aquela caracterizada pela existência de vários julgados sobre a mesma matéria em sede de tribunais, havendo, porém, um número relevante de julgados de mais de um sentido. Jurisprudência dominante pode ser caracterizada, tal como a divergente, pela existência de vários julgados sobre a mesma matéria em sede de tribunais com uma quantidade considerável de julgados em mais de um sentido, mas onde é possível a constatação de que um dos entendimentos possui maior aplicação. Já a jurisprudência pacificada é aquela em que há vários julgados sobre a mesma matéria em sede de tribunais em um mesmo sentido, sendo inexistentes ou, se existentes, em quantidade irrelevante ou superados, julgamentos que consagrem um entendimento em sentido diverso. A jurisprudência sumulada, por sua vez, representa, formalmente, a jurisprudência pacífica, ou dominante, e emerge de um procedimento específico de reconhecimento da pacificação ou domínio do entendimento jurisprudencial. A última categoria acima citada admite uma subespécie aqui denominada de jurisprudência sumulada qualificada pela força emprestada pelo ordenamento jurídico, em especial o ordenamento processual”.

[iii] Art. 103-A, da Constituição Federal: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.  § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”.

[iv] A tese do Tema 1.004 ficou assim redigida: “Reconhecida a incidência do princípio da boa-fé objetiva em ação de desapropriação indireta, se a aquisição do bem ou de direitos sobre ele ocorrer quando já existente restrição administrativa, fica subentendido que tal ônus foi considerado na fixação do preço. Nesses casos, o adquirente não faz jus a qualquer indenização do órgão expropriante por eventual apossamento anterior. Excetuam-se da tese hipóteses em que patente a boa-fé objetiva do sucessor, como em situações de negócio jurídico gratuito ou de vulnerabilidade econômica do adquirente."

[v] Salvo outras referências que possam existir sobre o termo “jurisprudência inercial” que possa por nós ser desconhecidas, nos parece que esta foi a primeira vez que foi utilizado”.

[vi] DEMO, Pedro. Argumento de autoridade x autoridade do argumento: interfaces da cidadania e da epistemologia, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 9.

 

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