O que a antiga pastoral cristã da confissão pode ensinar a juízes, psicólogos e assistentes sociais?

10/01/2016

Por Esther Maria de Magalhães Arantes - 10/01/2016

As alianças e disputas entre Igreja e Coroa, Medicina e Igreja, ou entre Medicina e Direito, não são batalhas menores. Foucault as demonstrou à exaustão. Dentre as particularidades dessas batalhas, uma, em particular, aqui nos ocupa: a que diz respeito ao depoimento judicial de crianças, como forma atualizada de práticas ocidentais cristãs, conforme os estudos genealógicos de Michel Foucault.

Antes, porém, façamos breve menção ao lugar que as práticas ocidentais cristãs ocupam nos estudos de Michel Foucault. Para isto, vamos nos valer do importante livro Foucault e o cristianismo (Candiotto, Souza orgs, 2012).

O cristianismo é, ao mesmo tempo, um objeto muito presente nos trabalhos de Michel Foucault – talvez o objeto mais presente – e, embora permaneça amplamente disseminado, ressaltado em vários lugares da obra, raramente estudado (Chevalier: 45).

O privilégio das práticas cristãs nos estudos de Foucault se explica pelo fato de ser o homem europeu “fundamentalmente um produto do Cristianismo” (LEME, 2012, p. 29-30). No entanto, é importante lembrar, de acordo com as considerações de Paul Veyne, apontadas pelo próprio Foucault (2009, p. 196), que a palavra “cristianismo” não recobre uma realidade única.

Para Chevalier (2012, p. 51), a questão nova colocada por Foucault, em 1980, é: “qual a relação com a verdade que nasce com o Cristianismo para que, alguns séculos mais tarde, todos tenham sido obrigados a dizer sua verdade?” Ou seja, Foucault teria reorientado seus estudos, apresentando “o projeto de uma história da ‘governamentalidade’, desde os primeiros séculos da era cristã” (SENELLART, 2009, p. 496).

[...] essa ideia de um poder pastoral, completamente alheio, em todo caso consideravelmente alheio ao pensamento grego e romano, foi introduzido no mundo ocidental por intermédio da Igreja cristã. Foi a Igreja cristã que coagulou todos esses temas de poder pastoral em mecanismos precisos e em instituições definidas, foi ela que realmente organizou um poder pastoral ao mesmo tempo específico e autônomo, foi ela que implantou seus dispositivos no interior do Império Romano e que organizou, no coração do Império Romano, um tipo de poder que, creio eu, nenhuma outra civilização havia conhecido. (Foucault, 2009: 173-174)

Assim, dos primeiros séculos da nossa era até o século XVIII, esse pastorado cristão constituiu-se em dispositivo de poder que não cessou de desenvolver-se – não significando, no entanto, que tenha permanecido o mesmo ao longo do tempo ou que o Cristianismo tenha sido o único a exercer o pastorado.

[...] creio que podemos dizer o seguinte: a verdadeira história do pastorado, como foco de um tipo específico de poder sobre os homens, a história do pastorado como modelo, como matriz de procedimentos de governo dos homens, essa história do pastorado no mundo ocidental só começa com o cristianismo. E sem dúvida a palavra “cristianismo” – refiro-me aqui ao que costuma dizer Paul Veyne – o termo “cristianismo” não é exato, na verdade ele abrange toda uma série de realidades diferentes. Sem dúvida seria necessário dizer, se não com maior precisão, pelo menos com um pouco mais de exatidão, que o pastorado começa com certo processo que, este sim, é absolutamente único na história e de que sem dúvida não encontramos nenhum exemplo em nenhuma civilização: processo pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constituiu como Igreja, isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida cotidiana a pretexto de leva-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não apenas de um grupo definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade (Foucault, 2009: 196).

Mas em que, exatamente, consiste a especificidade deste pastorado? Segundo Chevalier (2012, p. 50), Michel Foucault teria feito uma afirmação surpreendente: que o Cristianismo é a religião da “salvação na imperfeição”.[1]

Quando um homem é batizado, o Espírito de Deus desce sobre ele, e ele assim recebe: 1) um conhecimento iluminativo e definitivo da verdade; 2) uma purificação pelos seus pecados. Mas, problema: se ele comete um pecado após o seu batismo, existe para ele uma nova possibilidade de ser salvo, ou seja, de se converter uma segunda vez? Com efeito, a primeira conversão é a do batismo, e era inicialmente a única. Para um filósofo grego, como para os primeiros pensadores cristãos, profundamente marcados pelo estoicismo ou pelo neoplatonismo, se tivermos sido iluminados uma vez, estamos definitivamente na verdade; e se cairmos de novo, significa que não fomos verdadeiramente bem iluminados.

(...)

Com o cristianismo, como o confirma o texto do Pastor, aparece pouco a pouco a ideia – revolucionária para a época -, que, mesmo se o batizado tiver recebido a verdade inteira e brilhante no batismo, ele pode sempre recair no erro. Logo, se aceitarmos a possibilidade de recaída, faz-se, portanto, necessário aceitar uma segunda chance; o que será definido e instituído a partir do século III sob o termo de “segunda penitência” (CHEVALIER, 2012, p. 52).

Para ser novamente aceito na Igreja, o cristão que cometeu um pecado grave deve fazer uma confissão pública ou “ato de fé”, reconhecendo-se pecador e manifestando enfática adesão à verdade do Cristianismo.

Aparece, no entanto, um pouco mais tarde, outro modelo de penitência, mais discreto e, inicialmente, restrito aos monges, que comporta três aspectos: uma relação de obediência permanente e incondicional ao pastor, o exame exaustivo de consciência e a obrigação de dizer a totalidade dos movimentos do pensamento.

Foucault insiste então no fato de que não há uma tecnologia cristã da verdade, mas que há duas, radicalmente distintas, mesmo que o cristianismo não cesse de atravessá-las e de articular uma sobre a outra: de um lado, uma prática privada, verbal e subjetiva; de outro, uma prática pública, não verbal e objetiva. Mas esses dois modelos, por opostos que sejam, repousam numa mesma problematização, radicalmente nova, das relações entre sujeito e a verdade: apesar da iluminação recebida uma única vez no batismo, o cristão deve constantemente recomeçar sua conversão, repetir o primeiro movimento que o fez virar-se para Deus, pois sua vida, até seu último suspiro, será ameaçada pelo pecado – sem repouso possível. A penitência não é mais um acontecimento particular (antes do batismo), mas a própria condição humana (p. 53).

(...)

Toda a pastoral ulterior da confissão dos pecados, da necessidade de fazer regularmente penitência para voltar sem cessar para Deus (e, portanto, de ser ajudado pela mediação de um padre, de um diretor, de um superior, de um conjunto de técnicas e de instituições) nasceu dessa relação nova com a verdade. Tal é o corte cristão, em relação com a filosofia antiga: a verdade não é mais o que incorporo mais um pouco a cada dia pelo uso de minha razão, sempre melhor esclarecida (...); mas ela é o que não cesso de perder a despeito do fato que ela me é dada e dada de novo sem cessar – é o esquema da pastoral cristã. (p. 53).

Nesta nova pastoral da confissão, o que está em jogo é a decifração do pensamento pelo exame e pelo relato exaustivo dos movimentos do pensamento, assegurando que este não é o resultado de um espírito maligno que nos engana, mas vem de Deus. Esta nova pastoral começa a ser formada nos séculos XII-XIII, ganhando novo fôlego a partir do século XVI, período caracterizado como sendo de uma “cristianização em profundidade”. (FOUCAULT, 2002, p. 223.)

(...) não é mais um código de atos permitidos ou proibidos; é toda uma técnica para analisar e diagnosticar o pensamento, suas origens, suas qualidades, seus perigos, seus poderes de sedução e todas as forças obscuras que podem esconder-se sob o aspecto que ele apresenta. E se o objetivo é, enfim, expulsar tudo o que é impuro ou indutor de impureza, não se pode estar atento a não ser por meio de uma vigilância que não desarma jamais, uma suspeita que é preciso ter em qualquer lugar e a cada instante contra si mesmo (Candiotto: 2012:106).

Surge toda uma literatura destinada aos penitentes, que são os manuais de confissão, mas, principalmente, os grandes tratados destinados aos confessores, pois estes devem possuir conhecimentos e virtudes para desempenharem suas funções de confessor e não sucumbirem às tentações a que estarão expostos ouvindo os pecados dos penitentes.

A título de exemplificação, eis o que poderia ser uma confissão exaustiva:

Num manual de confissão da primeira metade do século XVII (...) encontramos o detalhe do que podia ser, do que devia ser uma boa confissão quanto ao sexto mandamento (ou seja, quanto ao pecado da luxúria) (...). Eis alguns exemplos do que devia ser dito ou das perguntas que deviam ser feitas pelo confessor (...). A propósito do pecado (...) da polução voluntária sem conjunção dos corpos, o penitente tinha que dizer (...) em que precisamente pensara enquanto praticava essa polução. Porque, conforme tivesse pensado nisso ou naquilo a espécie de pecado devia mudar. Pensar num incesto era evidentemente um pecado mais grave do que pensar numa fornicação pura e simples (...). Era preciso perguntar (...) se ele tinha se valido de um instrumento, ou se ele tinha se valido da mão de outrem, ou ainda se ele havia se valido de uma parte do corpo de alguém. Ele tinha de dizer qual era essa parte do corpo (...). Tinha de dizer se havia se valido da parte do corpo unicamente por um motivo utilitário, ou se havia sido levado a ela por um (...) desejo particular. Quando se abordava o pecado de sodomia, era necessário também fazer certo número de perguntas (...). Se se tratava de dois homens que chegavam ao gozo (...). No caso de duas mulheres (...). Quanto à sodomia entre homem e mulher, se ela se deve a um desejo pelo sexo feminino (...) (mas se) se deve a um gosto particular pelas partes posteriores (...). (pgs. 275-276)

A exigência do exame exaustivo não se fará sem consequências, propiciando o aparecimento da “carne” enquanto correlata de tais procedimentos: “A carne é o que se nomeia, a carne é aquilo de que se fala, a carne é o que se diz” (p. 257).

Antes do concílio de Trento, entre os séculos XII e XVI, a confissão dos pecados contra o sexto mandamento, por exemplo, se dava basicamente no modelo “jurídico” da infração da lei ou dos mandamentos. “Era, no fundo, o inventário das relações permitidas e proibidas” (p. 235).  A partir de então, o novo exame “vai ser um percurso meticuloso do corpo, uma espécie de anatomia da volúpia. É o corpo com suas diferentes partes, o corpo com suas diferentes sensações” (p. 236).

Tentei lhes mostrar que esse exame obedecia a duas regras. Por um lado, deve ser na medida do possível extensivo à totalidade da existência: seja o exame que se procede no confessionário, [seja] aquele a que se procede com o diretor de consciência – trata-se em todo caso de fazer a totalidade da existência passar pelo filtro do exame, da análise e do discurso. Por outro lado, esse exame é colhido numa relação de autoridade, numa relação de poder que é ao mesmo tempo muito estrita e exclusiva. Deve-se contar tudo ao diretor, ou contar tudo ao confessor, mas só a ele. O exame que caracteriza essas novas técnicas da direção espiritual obedece, portanto, as regras da exaustividade, por um lado, e da exclusividade, de outro (p. 256).

(...)

Em outras palavras, não se entra numa idade em que a carne deve ser enfim reduzida ao silêncio, mas numa idade em que a carne aparece como correlativa de um sistema, de um mecanismo de poder que comporta uma discursividade exaustiva e um silêncio ambiente criado em torno dessa confissão obrigatória e permanente.  (p. 257)

Como nos esclarece Foucault, a confissão exaustiva não se aplicava à totalidade dos cristãos, mas, principalmente, aos que viviam nos conventos e seminários. No entanto, a partir de meados do século XVI, aparece o fenômeno da possessão, que Foucault distinguirá do fenômeno da feitiçaria dos séculos XV e XVI – devendo ambos os fenômenos, no entanto, serem compreendidas como efeitos gerais de uma grande onda de cristianização ocorrida nos países europeus. A feiticeira será intensamente combatida pela Inquisição.

É no bojo da instituição cristã mesma, é no bojo mesmo desses mecanismos da direção espiritual e da nova penitência de que eu lhes falava, é aí que aparece esse personagem não mais marginal, mas ao contrário absolutamente central na nova tecnologia do catolicismo. A feitiçaria aparece nos limites exteriores do catolicismo. A possessão aparece no foco interno, onde o catolicismo tenta introduzir seus mecanismos de poder e de controle, onde ele tenta introduzir suas obrigações discursivas: no próprio corpo dos indivíduos. É aí, no momento em que ele tenta fazer funcionar mecanismos de controle e de discursos individualizantes e obrigatórios, que aparece a possessão (p. 260).

Diferentemente da feiticeira, a pessoa possuída resiste ao demônio, não sendo sua cumplice e nem com ele fazendo tratos. Como manifestação desta possessão, o seu corpo é tomado por tremores, agitação, sendo a sua marca a convulsão. Segundo Foucault, a convulsão é “essa imensa noção-aranha”, cujos fios se estendem tanto pelo lado da religião e do misticismo, como se estende pelo lado da medicina e da psiquiatria, e que vai ser motivo de uma batalha entre poder eclesiástico e poder médico (p. 269).

Pergunta: o que faz com que a carne, levada até certo ponto, possa se tornar “carne convulsiva”? Segundo Foucault, a “carne convulsiva” é o efeito da resistência dessa cristianização no nível dos corpos individuais. Ou seja, resistência do corpo submetido à obrigação do exame de consciência exaustivo e permanente.

A Igreja, confrontada com os efeitos de suas próprias técnicas de poder, desavisada do que era verdadeiramente “a carne”, tratou de controlá-los. Inicialmente, tentando reinscrevê-los no campo mais conhecido da feitiçaria. No entanto, isto não lhe caia bem, sendo principalmente as religiosas as possuídas.

Em outras palavras, como é possível governar as almas de acordo com a fórmula tridentina, sem se chocar, num momento dado, com a convulsão dos corpos? Governar a carne sem cair na cilada das convulsões (...) penetrar a carne, fazê-la passar pelo filtro do discurso exaustivo e do exame permanente; submetê-la, por conseguinte em detalhe, a um poder exclusivo; logo, manter sempre a exata direção da carne, possui-la no nível da direção, mas evitando a qualquer preço essa subtração, essa esquiva, essa fuga, esse contrapoder, que é a possessão. Possuir a direção da carne, sem que o corpo oponha a essa direção esse fenômeno de resistência que a possessão constitui. (p. 275)

Foi para resolver tal impasse que a Igreja criou alguns mecanismos, que Foucault chamará de “anticonvulsivos” (275), dentre os quais: um moderador interno, significando, por exemplo, diminuir a visibilidade entre o confessor e o penitente no móvel do confessionário, utilizando-se telas ou grades, ou seguir regras tais como o confessor não olhar para o penitente. Também não insistir nos detalhes, a não ser na primeira confissão, seguindo o preceito do “laxismo”, de que “é melhor para o confessor absolver um pecado que ele acredite ser venial, quando é mortal, do que induzir pela confissão mesma desse pecado novas tentações no espírito, no corpo, na carne do seu penitente” (p.277).

Assim é que o concílio de Roma, em 1725, deu conselhos explícitos de prudência aos confessores para seus penitentes, principalmente quando estes são gente jovem e, mais ainda, crianças. De tal sorte que chegamos a esta situação paradoxal na qual duas regras vão agir no interior dessa estrutura de confissão (...): uma é a da discursividade exaustiva e exclusiva, a outra, a que agora é a nova regra da enunciação contida. É preciso dizer tudo e é preciso dizer o menos possível; ou ainda, dizer o menos possível é o princípio tático numa estratégia geral que manda tudo dizer. (pgs. 277-278)

Como consequência da regra de “tudo dizer” - que sustenta o princípio da confissão exaustiva - não apenas em relação aos atos consumados, mas também em relação aos toques, olhares e palavras sensuais, passou-se à regra de “maior reserva”, principalmente em se tratando de crianças e jovens.

Com crianças, é bem melhor faltar com a integridade material da confissão do que ser a causa de aprenderem o mal que não conhecem ou inspirar-lhes o desejo de conhecê-lo. (FOUCAULT, 2002, p. 279.)

Um segundo “anticonvulsivo” utilizado é a transferência do penitente ao poder médico, transformando a convulsão em fenômeno desvinculado e estranho à direção de consciência. Ou seja, o que a modalidade da penitência cristã organizou como carne, a medicina tomará como doença dos nervos.

Quando as convulsões não se encontrarem mais apenas nos conventos das ursulinas, mas, por exemplo, entre os convulsionários de Saint-Médard (isto é, numa camada da população relativamente baixa da sociedade), ou entre os protestantes de Cévennes, então a codificação médica passará a ser um imperativo absoluto. De sorte que, entre Loudun (1632), os convulsionários de Saint- Médard ou de Cévennes (início do século XVIII), entre essas duas séries de fenômenos, começa, se arma toda uma história: a história da convulsão como instrumento e objeto de uma liça da religião consigo mesma, e da religião com a medicina. (p. 281).

Restaria ainda, segundo Foucault, um terceiro “anticonvulsivo”, que é o apoio que o poder eclesiástico buscará nos sistemas disciplinares. O policiamento e a vigilância dos corpos, principalmente da criança e do adolescente, toma, então, a primazia face à direção da consciência.

Os aparelhos disciplinares (colégios, seminários, etc.), policiando os corpos, substituindo-os num espaço meticulosamente analítico, vão permitir que se substitua essa espécie de teologia complexa e um tanto irreal da carne pela observação precisa da sexualidade em seu desenrolar pontual e real.

(...)

Assim, no âmago, no núcleo, no centro de todos esses distúrbios carnais ligados às novas direções espirituais, o que vamos encontrar vai ser o corpo, o corpo vigiado do adolescente, o corpo do masturbador. (p. 287).

É, principalmente, na aula de 5 de março de 1975, que Foucault (2002) fará uma análise minuciosa desta questão. Não entraremos em detalhes sobre este tema, que foge aos objetivos mais imediatos deste texto, cabendo, no entanto, assinalar um ou dois pontos. A intensa cruzada contra a masturbação das crianças, que tem início a partir de meados do século XVIII, resultou, primeiramente, num discurso médico “ficcional”, ou como prefere Foucault, numa “fabulação científica”, uma vez que a masturbação passa a constar como causa possível de todas as doenças: meningite, doenças ósseas, doenças dos olhos, doenças cardíacas, tuberculose, alienação ou loucura.

(...) Em suma, a infância é acusada de responsabilidade patológica, o que o século XIX não esquecerá.

E assim, por esta espécie de etiologia geral, de potência causal concedida à masturbação, a criança fica responsável por toda a sua vida, por suas doenças e por sua morte. É responsável, mas será culpada? (p. 307)

De fato, não era razoável culpar as crianças pelos seus atos, uma vez que os médicos haviam observado a masturbação em crianças muito pequenas. Isto não significou, no entanto, encarar a masturbação como fenômeno corriqueiro ou natural. Ao contrário, a culpa passa a ser atribuída aos pais, que não vigiam e nem corrigem os seus filhos, deixando-os a cargo de uma “criadagem desqualificada”. Exigia-se que o espaço da família se transformasse em espaço de vigilância contínua das crianças. Esta família centrada em si mesma, que exerce contínua vigilância sobre seus filhos, tem o médico como seu melhor aliado. É a ele, médico, que se deve fazer a confissão da sexualidade.

Os pais devem, portanto, vigiar, espiar, chegar pé ante pé, levantar cobertas, dormir ao lado [do filho]; mas, descoberto o mal, têm de fazer o médico intervir imediatamente para curá-lo. Ora, essa cura só será verdadeira e efetiva se o doente aceita-la e participar. O doente tem de reconhecer seu mal; tem de compreender as consequências dele; tem de aceitar o tratamento. Em suma, tem de confessar. Ora, está muito bem dito, em todos os textos dessa cruzada, que a criança não pode e não deve fazer essa revelação aos pais. Só pode fazê-la ao médico. “De todas as provas – diz Deslandes , a que é a mais importante adquirir é uma confissão”.  Porque a confissão elimina “toda espécie de dúvida”. Ela torna “mais franca” e “mais eficaz a ação do médico”. (pgs.317-318).

O médico passará a prescrever uma série de medidas, incluindo, se necessário, a mutilação genital das meninas, o que Foucault caracterizou como sendo “uma grande perseguição física da infância” no século XIX nas Europa, resultando no surgimento dos “distúrbios internos do corpo familiar, centrado no corpo da criança” (p. 322).

Foi Antoine Dubois, parece que no início do século XIX, que retirou o clitóris de uma doente que tinham tentado curar em vão, amarrando-lhe as mãos e as pernas (p. 320).

(...)

Por certo, discute-se no século XIX a legitimidade dessas castrações ou quase castrações, mas Deslandes, o grande teórico da masturbação, em 1835, diz (...) que inconveniente haveria nisto? “O maior inconveniente” seria colocar a mulher assim amputada “na categoria, já tão numerosa”, das mulheres que são “insensíveis” aos prazeres do amor, “o que não as impede de virem a ser boas mães e esposas-modelos [rectius:dedicadas]”. Ainda em 1883, um cirurgião como Garnier praticava a ablação do clitóris das meninas que se entregavam à masturbação. (pgs. 320-321)

Em todo caso - através de tudo isto que não há como não chamar de uma grande perseguição física da infância e da masturbação no século XIX, perseguição que, sem ter as mesmas consequências, tem quase a mesma amplitude das perseguições às bruxas nos séculos XVI-XVII -, constituiu-se uma espécie de interferência e de continuidade medicina-doente. (p. 321)[2].

Por certo Foucault não desconhece que a demanda para que a família se ocupasse da criança também estava ligada a uma preocupação pela vida da criança: “Os pais têm de cuidar dos filhos, os pais têm de tomar conta dos filhos, nos dois sentidos: impedir que morram e, claro, vigiá-los e, ao mesmo tempo, educá-los” (p. 323).

Em suma, os perigos que levaram a Igreja Católica a introduzir mudanças nas regras do exame exaustivo foram, além do problema da convulsão, o risco de se ensinar ao penitente o pecado da carne que ele não deveria cometer e o risco de macular a pureza do confessor. Ou seja, passou-se a temer os efeitos indutores de tal exame.

E qual a relevância desta discussão histórica, tendo-se em vista os direitos atuais de crianças e adolescentes?[3]

Em 2003, teve início, na Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, um projeto intitulado Depoimento sem Dano. De lá, para cá, tal iniciativa ganhou a adesão do Conselho Nacional de Justiça, existindo diversas experiências de “depoimento sem dano” ou “inquirição especial” em andamento no Brasil, totalizando 41 salas até meados de 2011.

Tal projeto foi implantado na 2ª Vara e prevê a possibilidade de produção antecipada de prova no processo penal, antes do ajuizamento da ação, para evitar que a criança seja revitimizada com sucessivas inquirições nos âmbitos administrativo, policial e judicial. A sistemática permite a realização de audiência, simultaneamente, em duas salas interligadas por equipamentos de som e imagem. Na sala de audiência ficam o juiz, o promotor e as partes. O magistrado faz as inquirições por intermédio do profissional que se encontra com a criança em outra sala. Simultaneamente, é efetivada a gravação de som e imagem em CD, que é anexado aos autos do processo judicial.[4]

Afirma-se, por um lado, que tal procedimento não é, senão, o cumprimento do Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança, e que tal dispositivo tem possibilitado uma condenação acima de 70% dos suspeitos de abuso sexual de crianças e adolescentes. No entanto, por outro lado, alegando justamente a pouca idade e a imaturidade da criança, busca-se designar psicólogo ou assistente social para tomar o seu depoimento, a despeito do que pensam os Conselhos Profissionais destas áreas e a despeito da compreensão que a criança possa ter de seu envolvimento em tal situação e do impacto que isto terá em sua vida. Necessário, então, ver o que estabelecem a Convenção e os documentos internacionais sobre o tema.

O direito da criança de ser ouvida e ter sua opinião levada em consideração constitui um dos quatro princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil em 1990 (Decreto nº 99.710), sendo os demais o princípio da não discriminação, o direito à vida e ao desenvolvimento, e o princípio do melhor interesse da criança. Assim, os direitos internacionais da criança não mais se limitam, como na Declaração sobre os Direitos da Criança de 1959, aos direitos que derivam de sua vulnerabilidade e dependência do adulto. Neste sentido, um dos dispositivos mais celebrados da Convenção tem sido o Artigo 12, que assegura à criança o direito de exprimir suas opiniões livremente, levando-se devidamente em conta essas opiniões em função de sua idade e maturidade.

No entanto, como qualquer outro princípio, este não pode ser visto de forma isolada, mas guardando dependência e inter-relação com os outros princípios da Convenção. Deve-se lembrar, igualmente, que expressar seus pontos de vista é um direito e não uma obrigação da criança.

Em função, justamente, de dificuldades na compreensão deste direito, o Comitê da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança promoveu, em 2006, um dia de discussão para explorar os significados do Artigo 12 e suas relações com os outros dispositivos da Convenção.[5]

A questão é tão sensível que o próprio Comitê lembra que a “escuta” é um processo difícil que pode ter um impacto traumático na criança. Ressalta que, em procedimentos administrativos ou judiciários, a escuta requer, antes de mais nada, que a criança seja informada sobre as condições nas quais será ouvida e as consequências que poderão advir desta escuta. O direito a esta informação é essencial, como pré-condição para uma decisão esclarecida. Adverte que todos os processos nos quais a criança participa e é ouvida devem ser transparentes e informativos, devendo a criança ser informada dos procedimentos, propósitos e possíveis consequências de sua participação; voluntários, nunca devendo a criança ser coagida ou obrigada a participar, tendo o direito de parar a qualquer momento; respeitosos, oferecendo à criança a oportunidade de participar; relevantes, dando à criança a oportunidade de dizer o que é relevante para ela; amigáveis, ou seja, adaptados à criança; inclusivos, evitando discriminação; e, seguros e sensíveis a riscos, dentre outros.

Na Resolução nº 2005/20 (Guidelines on Justice in Matters involving Child Victims and Witnesses of Crime), afirma-se que a participação da criança vítima ou testemunha de crimes pode ser necessária para a condenação de infratores, reconhecendo, no entanto, as dificuldades envolvidas em tal participação. Assim, a criança deve ser tratada de forma cuidadosa e sensível durante todo o processo judicial, levando-se em consideração sua idade, desejos, compreensão, gênero, orientação sexual, etnia, cultura, religião, formação linguística, condição socioeconômica, status de refugiado ou imigrante, bem como as necessidades especiais de saúde e assistência, dentre outras. As crianças e seus responsáveis devem ser protegidos quanto à sua privacidade, além de ser prontamente informados da existência de serviços de saúde e outros serviços se assistência e suporte relevantes.

O documento Justice in Matters involving Child Victims and Witnesses of Crime. Model Law and Related Commentary – UNODC e UNICEF, 2009, lembra que o princípio do melhor interesse da criança deve prevalecer sobre quaisquer outras considerações, e que a criança vítima e/ou testemunha tem o direito de ser tratada com dignidade e compaixão; ser protegida contra discriminações; ser informada; ser ouvida e expressar seus pontos de vista e suas preocupações; receber assistência efetiva; além de ter direito à privacidade; ser protegida de danos durante o processo judicial; ter direito à segurança, à reparação, dentre outros.

Daniel O´Donnel (2009) analisa o Artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança face às leis internacionais de Direitos Humanos, apresentando, também, um levantamento sobre os esforços de alguns países para sua implementação. Segundo o autor, a disposição não postula a necessidade de a criança participar de procedimentos administrativos e jurídicos mas apenas confere a ela o direito de expressar seus pontos de vista e serem eles levados em consideração, de acordo com sua idade e maturidade.

No levantamento empírico sobre os procedimentos adotados em diferentes países, O‘Donnel encontrou grande variedade, classificando-os, no entanto, em três grandes grupos: no primeiro, crianças abaixo de determinada idade não são ouvidas em procedimentos judiciais; o segundo grupo não estipula, via legislação, uma idade mínima para que a criança seja ouvida, existindo, em geral, uma idade mínima baseada em jurisprudência ou regulamentação. Um terceiro grupo estipula que crianças acima de uma determinada idade devem ser ouvidas.

De acordo com estudo de Gerison Lansdow (2005), o princípio do desenvolvimento da capacidade da criança tem grande implicação para a compreensão dos direitos da criança. Tal princípio estabelece que a proteção dos pais ou responsáveis deva diminuir na medida em que aumenta a capacidade da criança de exercer seus direitos por ela mesma e em seu benefício. Assim, o conceito de desenvolvimento da capacidade é central para se equacionar a tensão entre proteção e autonomia introduzida pela Convenção no Direito da Criança. Ao mesmo tempo em que é necessário respeitar o direito de participação da criança, é igualmente necessário não colocá-la prematuramente em situações de responsabilidade que possam lhe causar danos.

Neste sentido, segundo o autor, no que o risco associado à decisão for relativamente pequeno, pode-se conceder à criança o direito de decidir sem que ela demonstre nível significativo de capacidade. No entanto, quando o risco for considerado alto, é necessário assegurar maior grau de competência e maturidade, o que implica as habilidades de compreender e comunicar informações relevantes; pensar e escolher com certo grau de liberdade; entender potenciais benefícios, riscos e danos; e possuir um conjunto de valores básicos que possibilite tomar decisões.

A questão, no entanto, continua sendo como verificar estes níveis de maturidade e competência da criança para participar de decisões administrativas e jurídicas, uma vez que não há resposta fácil para esta questão. Ademais, deve a criança ser constantemente submetida a exames de especialistas para o exercício de seus direitos?

Lansdown (2005, p. 16) afirma que esta é, talvez, “a questão mais difícil e controversa”, em se tratando dos direitos de crianças e adolescentes, postulando a necessidade de se buscar uma articulação entre as noções de desenvolvimento, participação/autonomia e proteção.

De qualquer modo, seja convocando, convidando ou apenas permitindo que crianças testemunhem, o que é relevante, segundo O´Donnel (2009), é que a modalidade de sua participação deve ser consistente com a totalidade dos direitos e princípios reconhecidos pela Convenção, bem como por outros documentos internacionais pertinentes. Neste sentido, em relação à participação de crianças como testemunhas de crimes, o autor considera que a questão mais relevante do ponto de vista das autoridades e da sociedade é se a criança pode oferecer evidências e, neste caso, que peso atribuir a elas e quais salvaguardas devem ser acionadas para amparar o impacto da experiência da tomada do depoimento judicial em crianças e adolescentes.

Diante de tantas salvaguardas necessárias para se proteger a criança, uma vez  reconhecido que a experiência de depor na justiça pode causar novos danos a uma criança já fragilizada e, quiçá, traumatizada, não é o caso de se reconhecer, assim como fez a Igreja Católica, ao perceber o dano que certos procedimentos de confissão poderiam causar às crianças, de que é melhor para o juiz e para a sociedade absolver um possível infrator do que causar novos danos à criança?

Não se trata, aqui, segundo Wanderlino Nogueira Neto, de impor ou impedir, via legislação, que qualquer pessoa menor de 18 anos seja inquirida em Juízo. Trata-se, no entanto, de situar o debate nos marcos dos direitos humanos. Neste sentido, é necessário evitar que crianças sejam usadas como meio de prova único e preponderante em processo penal, devendo-se lutar pelo aperfeiçoamento da investigação processual policial e judicial. Deve-se também lutar para que a criança não tenha sua condição peculiar de desenvolvimento e sua dignidade desrespeitadas nessas situações extraordinárias de depoimento. E que o depoimento não seja confundido com a escuta profissional nas áreas da Medicina, Psicologia, Antropologia, Serviço Social etc. Quando, excepcionalmente, se precisar ouvir crianças e adolescentes (ou quando eles claramente declararem seu desejo de serem ouvidos), é necessário que estejam previamente orientados e fortalecidos por uma equipe de advogados, assistentes sociais, psicólogos, antropólogos (crianças indígenas, quilombolas, ciganas, povos tradicionais etc).[6]


Notas e Referências:

[1] Em considerações sobre a aula de 27 de fevereiro de 1980 do curso Do governo dos vivos (ainda não publicado no Brasil), a propósito do texto O pastor, de Herman, da metade do século II.

[2] Foucault nos dirá que a sexualidade, assim investida, é que se constituirá no grande domínio médico das anormalidades.

[3] Parte desta discussão encontra-se em Arantes, E. M. M. (2012).

[4] Informações sobre depoimento sem dano ou especial podem ser encontradas em: http://jij.tj.rs.gov.br

[5] Convention on the Rights of the Child. Committee on the Rights of the Child. Fifty-first session. Geneva, 25 may-12 June 2009. (CRC/C/GC/12, 20 July 2009).

[6] Comunicação pessoal, s/d.

ARANTES, E. M. M. Pensando o direito da criança de ser ouvida e ter sua opinião levada em consideração. In: AASPTJ-SP; CRESS-SP (Org.). Violência sexual e escuta judicial de crianças e adolescentes: a proteção de direitos segundo especialistas. 2012.

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Publicado na Revista da EMERJ n. 65.
Esther Maria de Magalhães Arantes

Esther Maria de Magalhães Arantes é Normalista, pelo Instituto de Educação de Goiás (1967); Bacharel em Psicologia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971); Formação de Psicólogos, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em Educação, pela Boston University (1976); Doutorado em Educação, pela Boston University (1981) e Pós Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Professora do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3876442600525617


Imagem Ilustrativa do Post: Thinking // Foto de: Miroslav Vajdic // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/miroslav-vajdic/10324382173

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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