O princípio do contraditório e a inversão na ordem instrutória criminal

10/02/2016

Por Denize Carolina da Cunha - 10/02/2016

Onde estava ao tempo da infração? Uma das finalidades do processo criminal é proteger as pessoas do excesso de acusação pelo Estado – determinar se uma acusação contra um acusado se justifica. Não devemos acusar alguém a menos que acreditemos em sua culpa. E como podemos realmente acreditar sem ao menos ouvir todas as partes, principalmente a manifestação da parte acusada em relação às alegações acusatórias? Do ponto de vista da parte lesada, a verdade, por vezes, encontra-se na parte inferior de um poço.

Nossa legislação, mais precisamente a Carta Constituinte Federal de 1988, adota, como um dos princípios fundamentais do Direito Processual Penal, o princípio do contraditório – sendo aquele que garante às partes o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária – devendo ser garantido aos litigantes em processo judicial ou administrativo e também aos acusados em geral, como prevê o artigo 5º, LV do texto constitucional. Ainda, consoante o inciso LIV do artigo precedente: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Deve o processo, portanto, independentemente de sua natureza, buscar a verdade para que ocorra a aplicação das regras normativas incidentes – e descobrir a verdade é oferecer às partes a possibilidade deste fim.

Naturalmente, no arcabouço processual penal a aplicação desse princípio é ainda mais notável, porquanto é dele que outros princípios e garantias constitucionais do processo são oriundos; a presunção de inocência, a ampla defesa, a isonomia etc. Ademais, ele permite à parte acusada construir uma versão verossímil em seu favor, considerando todos os depoimentos e provas da fase extrajudicial e judicial. Para tanto, há o ato mais importante da persecução penal; o interrogatório – que permite à parte acusada a possibilidade de autodefesa ampla. Vê-se, sem maior esforço interpretativo, que a finalidade basilar do interrogatório é assegurar o princípio do devido processo legal e seus corolários; contraditório e da ampla defesa – sem os quais a jurisdição e o processo não poderiam, legitimamente, alcançar seu escopo de composição de litígios.

A modificação legislativa instituída pela Lei n. 11.719/08 prevê o interrogatório como último ato da instrução criminal, quando não aplicável procedimento especial, por exemplo, o procedimento de tóxicos[1] – Lei n. 11.343/2006, em que, diante da natureza da ação penal, ocorre a aplicação do princípio da especialidade, afastando-se, por conseguinte, a aplicação das normais gerais.

O mesmo regramento trouxe outra significativa modificação quanto ao interrogatório; destacou-o como meio preponderantemente de defesa, portanto, não apenas como meio de prova. Destaque-se, por oportuno, que embora seja o interrogatório o momento propício para a confissão, esta mesmo assim não lhe retira o caráter de meio de defesa, sendo este o primeiro momento da parte que será julgada com o processo. Portanto, vê-se, assim, a natureza dúplice do interrogatório, na qual a índole probatória permanece no segundo plano.

Em relação à ordem instrutória, esta é estabelecida pelo preceito normativo inserto no art. 400 do vigente Código de Processo Penal, que assim determina:

Art. 400.  Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.

A literalidade do artigo estabelece que o interrogatório da parte acusada seja efetuado após a coleta de todas as provas, com a determinação de que o interrogatório do acusado ocorra após a "tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas".

O artigo precedente também preceitua que a expedição de carta precatória possa inverter a ordem da oitiva das testemunhas de acusação e defesa. Ou seja, a pendência, a necessidade do cumprimento de uma carta precatória, destinada à oitiva de uma testemunha de acusação, por exemplo, não impede que o magistrado do Juízo Deprecante colha o depoimento de testemunhas de defesa. Em outras linhas, a ressalva feita à carta precatória restringe-se à alteração da ordem das testemunhas de acusação e defesa, não alcançando, portanto, o interrogatório.

Uma coisa é não suspender a instrução criminal, outra é não permitir à parte acusada o seu direito de se contrapor aos atos e termos da partes ouvidas – testemunhas, vítimas, informantes e os demais sujeitos da relação processual. Sintetiza esta finalidade Gustavo Henrique Badaró:

Não se pode esquecer que o princípio do contraditório não diz respeito apenas à defesa ou aos direitos do réu. O princípio deve aplicar-se em relação a ambas as partes, além de também ser observado pelo próprio juiz. Deixar de comunicar um determinado ato processual ao acusador, ou impedir-lhe a reação à determinada prova ou alegação da defesa, embora não represente violação do direito de defesa, certamente violará o princípio do contraditório[2].

Nesta senda, tornou-se esta ressalva uma agressão à defesa, porquanto ensejou interpretações, pelos órgãos julgadores, sem atentar-se aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Ou seja, antecipar o interrogatório da parte acusada quando necessária a inquirição por meio de carta precatória[3], sem dar a esta oportunidade de manifestação após o conhecimento das alegações expostas em Juízo. A propósito, convém sublinhar que não se questiona a necessidade de ato inquiritório fora do Juízo da ação penal, ou a manifestação das acusações pela parte acusada, mas de não possibilitar a defesa de forma igualitária, que, consequentemente, afasta a finalidade do interrogatório e do princípio do contraditório. Torna-se a autodefesa, neste cenário, algo abstrato e apenas uma mera formalidade.

Em teóricos termos políticos, constitucionais, a ausência da defesa, de fato, é a decorrência lógica da interpretação majoritária dos Tribunais – o relacionamento fundamental entre o cidadão e o Estado; a oportunidade de se defender – que torna o interrogatório o ponto alto do julgamento, o teste real das vítimas e testemunhas que ensejaram a acusação.

O sistema acusatório, adotado por nosso sistema processual penal, viabiliza os direitos constitucionais do indivíduo, servindo-lhe de escudo contra o arbítrio estatal – o pressuposto elementar do Estado Democrático e Social do Direito – e é neste contexto que deve se orientar o julgador. Como ensina Eugênio Pacelli: “[...] não se pode pensar em igualdade processual sem a afirmação de ambos.”[4] A obrigatoriedade é da manifestação.


Notas e Referências:

[1] HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PACIENTE CONDENADO PELO DELITO DE TRÁFICO DE DROGAS SOB A ÉGIDE DA LEI 11.343/2006. PEDIDO DE NOVO INTERROGATÓRIO AO FINAL DA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. ART. 400 DO CPP. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA PREVISTA NO ART. 33, § 4º, DA LEI 11.343/06. PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS. QUESTÃO QUE DEMANDA REVOLVIMENTO DE ELEMENTOS FÁTICO-PROBATÓRIOS. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. I – Se o paciente foi processado pela prática do delito de tráfico ilícito de drogas, sob a égide da Lei 11.343/2006, o procedimento a ser adotado é o especial, estabelecido nos arts. 54 a 59 do referido diploma legal. II – O art. 57 da Lei de Drogas dispõe que o interrogatório ocorrerá em momento anterior à oitiva das testemunhas, diferentemente do que prevê o art. 400 do Código de Processo Penal. III – Este Tribunal assentou o entendimento de que a demonstração de prejuízo, “a teor do art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta, eis que (…) o âmbito normativo do dogma fundamental da disciplina das nulidades pas de nullité sans grief compreende as nulidades absolutas” (HC 85.155/SP, Rel. Min. Ellen Gracie). [...] (HC 122229, Relator (a):Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 13/05/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-104 DIVULG 29-05-2014 PUBLIC 30-05-2014)

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 37.

[3] APELAÇÃO CRIMINAL. [...] RECURSO DA DEFESA. PRELIMINAR. ARGUIDA NULIDADE, ANTE A OITIVA DE TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO EM MOMENTO ANTERIOR AO INTERROGATÓRIO DO ACUSADO. INOCORRÊNCIA. TESTEMUNHAS QUE SERIAM OUVIDAS MEDIANTE CARTA PRECATÓRIA. EXPEDIÇÃO DE PRECATÓRIA QUE NÃO SUSPENDE A INSTRUÇÃO CRIMINAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 222, § 2°, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. [...].   1. Inocorre cerceamento de defesa em razão da inversão na ordem da oitiva das testemunhas de defesa e acusação ou mesmo em razão da realização do interrogatório do acusado antes da oitiva de testemunha no juízo deprecado, já que, nos termos do art. 222, § 1º, do Código de Processo Penal, '"A expedição da precatória não suspenderá a instrução criminal" [...]. (TJSC, Apelação Criminal n. 2013.085046-7, de Porto União, rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, j. 10-11-2015).

[4] PACELLI, Eugênio. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 136.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direito Fundamentais. Coimbra: Ed. Coimbra, 2004.

LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

PACELLI, Eugênio. Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012.


Denize Carolina da CunhaDenize Carolina da Cunha é Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, UNIDAVI, Brasil. Voluntária – Assessoria de Gabinete – no Poder Judiciário de Santa Catarina. Membro estudante do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Mente e Ciências Cognitivas (CNPq) e Grupo Hume da Universidade Federal de Santa Catarina. Organizadora do Livro Interfaces da Filosofia Contemporânea.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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