O Poder Econômico Privado e Pandemia: poderá o mercado dar respostas à crise?

08/05/2020

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Em tempos de COVID-19, pandemia sanitária mundial, os processos produtivos globais estão quase totalmente "paralisados"; principalmente nos centros urbanos, onde trabalhadores e empregadores, encontrando-se em "isolamento social", geralmente, com fechamento total ou parcial de indústrias, comércios e serviços como bancos. Com a quarentena, ainda que parcial, há retração das atividades econômicas podendo resultar, consequentemente, em desemprego, falência de empresas, redução de arrecadação de tributos e queda do nível de vida.

A atual pandemia possui características próprias, bem distintas das crises cíclicas do capitalismo de tempos modernos, como a de superprodução do século passado (crise de 1929) e da especulação financeira (crise de 2008); também não se iguala com as crises vividas durante a primeira e a segunda guerra mundial. Agora, quase simultaneamente, o vírus alastra-se em inúmeros territórios nacionais e as vítimas letais, da guerra contra o "inimigo invisível"[i], podem ser qualquer pessoa. A paralisação/restrição da vida e dos setores econômico atinge a todos.

Logicamente, o Estado tem um papel crucial na coordenação, indução e ação no domínio econômico, não somente em tempos de crises e de pandemias, como impõe a nossa Constituição de 1988, pois aos poderes públicos foi estabelecida a competência de realizar um programa transformador[ii] da realidade socioeconômica e ambiental brasileira, marcada pela desigualdade e injustiça social. Assim, o Estado deve atuar no campo econômico, de forma planejada[iii], sobretudo quando se trata de políticas públicas objetivando salvar e socorrer a todos, durante e após a pandemia. Aliás, como estamos assistindo, mesmo que timidamente e por pressão social e dos demais poderes, o Poder Executivo Federal atuou, por intermédio da suspensão de artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal, concedida pelo STF (ADI 6.537); aprovação legislativa da instituição da renda básica emergencial e concessão de créditos às pequenas empresas.

Contudo, a indagação nesse instante é: qual o papel a ser empreendido pelo poder econômico privado em cenário de pandemia e sofrimento social? Historicamente, a partir da lógica do sistema capitalista de matriz liberal (agora neoliberal)[iv], o comportamento desses agentes econômicos tenderam em grande medida à consolidação dos oligopólios (nacionais e internacionais) mediante a concentração de riquezas, até mesmo em detrimento da saúde da população, da sustentabilidade alimentar, de culturas e o do meio ambiente.

A se prevalecer a premissa neoliberal de que o protagonismo do mercado é mais benéfico e eficiente à sociedade, emerge a dúvida de qual será o comportamento do Poder Econômico Privado? Manterá sua postura a partir de uma ética meramente concorrencial, de base utilitarista, insensível aos efeitos socioeconômicos catastróficos decorrentes da pandemia, como a grande escala de mortes, desemprego e falência de pequenos negócios? Ou então, como "agente solidário" salvando seus ditos "colaboradores", digo, trabalhadores (os reais criadores das riquezas), contribuindo na reconstrução da vida plena?

Os números demonstram a disparidade na concentração de riqueza mundial e a possibilidade de ação do poder econômico privado: considerando a população adulta mundial, 0,7%, equivalente a 33 milhões de pessoas, detêm, cada uma, fortuna de mais de U$ 1 milhão, enquanto 73,2% da população adulta mundial, 3,546 bilhões de pessoas, a base da pirâmide produtiva, têm, na média, patrimônio de até U$ 10.000,00. Desde 2015, o 1% mais rico tem mais riqueza que o resto do planeta somado; 8 indivíduos detêm, sozinhos, mais riqueza que a metade mais pobre da população mundial. A renda dos 10% mais pobres aumentou apenas U$ 65,00 entre 1989 e 2011 enquanto a renda dos mais ricos aumentou, no mesmo período, U$ 11.800,00; nos próximos 15 anos, 500 pessoas deixarão U$ 2,1 trilhões em herança. Até então, o sistema produtivo capitalista tem servido ao proveito de forma muito particular de apenas 1% da população mundial[v]. Ressalte-se que as grandes fortunas não são necessariamente de produtores, mas de agentes da financeirização da economia.

No Brasil o sistema de acumulação do poder econômico privado é particularmente perverso, pois tem a possibilidade de juros ilimitados para o sistema bancário, alta remuneração de títulos públicos e sistema tributário regressivo. Desde a Emenda Constitucional n. 40 de 2003, que revogou o artigo 192 da CR[vi], não há limite para a cobrança de juros no Brasil. Enquanto na Europa, as taxas de juros gravitam entre 1,5% e 3,5%[vii], em nossa nação, o cheque especial tem juros de 320% e o rotativo 485% ao ano. A remuneração de títulos públicos, em países de capitalismo avançado, não é utilizada para enriquecer, mas para aplicações temporárias até que se invista no sistema produtivo real. No Brasil, durante os anos FHC, após o fim da hiperinflação, os bancos passaram a se financiar por meio de títulos públicos. À época, a Selic, taxa que remunera tais títulos oscilou entre 20% e 46%, atualmente em queda, 4,25%, é a classe média quem perde dinheiro, pois as taxas de juros bancárias se mantém tão elevadas que a acumulação financeira permanece inalterada para os muito ricos. Quanto à regressividade da carga tributária, todos, ricos e pobres, pagam a mesma tributação sobre consumo, de modo que a pessoa rica paga muito menos tributo sobre o que consome, em relação à sua renda, que uma pessoa pobre. A tributação sobre a renda também é injusta, pois não alcança diversos bens, como os dividendos, tributados em todos os países da OCDE, com exceção da Estônia[viii]; no Brasil, a isenção de tais valores distorce ainda mais a tributação, tornando-a regressiva, injusta e concentradora de riquezas.

A urgência da visão de "agente solidário" reforça-se, quando lembramos que as grandes empresas foram beneficiadas generosamente pelas políticas econômicas estatais  reguladoras e de austeridade[ix] através de: desreguralação nas relações laborais, regimes diferenciados e redutores de tributos para as grandes empresas, compras estatais constantes de bens e serviços  dos oligopólios, afrouxamento da legislação ambiental e créditos constantes para o agronegócio em detrimento da agricultura familiar[x]. Tais benesses são concedidas, muitas vezes, em detrimento da parte significativa da sociedade, via de regra marginalizada pela concentração de renda e falta de direitos fundamentais.

Agora é hora, portanto, do poder econômico privado assumir sua responsabilidade perante a sociedade e viabilizará a solidariedade nacional e internacional, efetivando a função social da propriedade dos bens de produção e do capital (art. 170, III da CR), "minimizando" os efeitos da crise por meio de ações que garantam à dignidade humana aos trabalhadores e demais integrantes da sociedade brasileira.

São medidas necessárias por parte do poder econômico privado[xi], assumindo sua responsabilidade perante a crise: (i) conservar e ampliar empregos; (ii) abrir mão de seus inúmeros benefícios, como os fiscais, por exemplo; (iii) investir nas cadeias produtivas reais e não na especulação financeira; (iv) contribuir para a satisfação das necessidades materiais da sociedade, bem como daqueles que contribuem para a efetivação da cadeia produtiva, papel exercido por pequenos e médios empresários; (v) alterar as suas linhas de produção e serviços a fim de salvar vidas e reestruturar o tecido social, etc.

Não estamos em momento de "chantagens" sociais a fim de privilegiar os lucros em detrimento das vidas. O grande capital privado não pode usar da "violência simbólica"[xii] a fim de pressionar os governos e a sociedade pelo término do isolamento social em uma ação genocida, impondo seu unilateral ponto de vista dissonante da opinião técnica das autoridades sanitárias, em verdadeira postura totalitária, objetivando o retorno das atividades sociais e produtivas a qualquer preço, com risco de perda de vidas.

Por outro lado, o grande capital, além de ampliar os postos de trabalhos e contribuir para o retorno futuro da vida plena, não deve agir fragilizando (reduzindo) os autônomos, pequena, micro e media empresas, dilatando sua concentração de renda. Uma vez vilipendiados, os acima citados acabam por ser conduzidos ao trabalho assalariado ou até mesmo informal, alternando dias de emprego, desemprego e atividades autônomas, além de verem suas reduzidas reservas acumuladas absorvidas pelos efeitos da crise da COVID-19. Essa fogueira, também, deve ser desativada pelo poder econômico privado, sobretudo pelos agentes do capitalismo financeiro[xiii].

A história irá demonstrar qual será o papel do poder econômico privado, de eterno agente utilitarista e especulador, como habitualmente atuou nas crises cíclicas do capitalismo e pandemias, dilatando o seu poderio e ampliando a concentração de suas riquezas; ou então, se desempenhará o papel de "agente solidário", ainda que temporariamente, com ações persecutórias da dignidade para todos os integrantes de nossa desigual sociedade, assumindo suas devidas responsabilidades, contribuindo com suas riquezas acumuladas por décadas, diante do atual contexto do processo civilizatório.

 

Notas e Referências

[i] SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o pais se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.

[ii] BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988.  São Paulo: Malheiros, 2005.

[iii] SOUZA, Washignton Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2017.

[iv] CASTRO, Antônio Carlos Lúcio Macedo de. Direito Econômico e a Legitimidade das Decisões Judiciais. Curitiba: Juruá, 2015.

[v] DOWBOR, Landslau. A era do capital improdutivo: por que oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

[vi] SENADO FEDERAL. Emenda Constitucional n. 40 de 2003. https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_06.06.2017/art_192_.asp

[vii] EUROPEAN CENTRAL BANK. Taxas de juros bancários. Disponível em: goo.gl/wN8XWb

[viii] CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018.

[ix] CLARK, Giovani. CORRÊA, Leonardo Alves. NASCIMENTO, Samuel Pontes do. A Constituição Econômica entre a Efetivação e os Bloqueios Institucionais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n, 71, jul/dez 2017, p. 677-700.

[x] LELIS, Davi Augusto Santana de. Ensaios sobre a Atuação Estatal: a política pública capaz  da alteridade e uma análise do PRONAF como política pública da ética primeira. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2019.  

[xi] CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Curso Elementar de Direito Econômico. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2014.

[xii] SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira: ou como o pais se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.

[xiii] AVELÃS NUNES, Antônio José. Os Caminhos da Social-Democracia Europeia. São Paulo: Tirant, 2019.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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