O PL 5555/2013 e a vingança virtual ou pornô: uma proposta legislativa que carece de aperfeiçoamento

01/05/2017

Por Fabricio da Mota Alves - 01/05/2017

A Câmara dos Deputados aprovou, no último dia 21 de fevereiro, o projeto de lei nº 5555, de 2013, de iniciativa do Dep. João Arruda (PMDB/PR) – que, hoje, encontra-se no Senado Federal como PLC 18, de 2017, mais precisamente perante a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sob a relatoria da Senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) – que, em linhas gerais, pretende criar o crime de vingança virtual e assegurar maior proteção, nesse contexto, à mulher vítima de violência doméstica ou familiar.

Antes de qualquer digressão a respeito da proposta, necessário destacar a adoção, consciente, neste texto, da nomenclatura “vingança virtual”, por expressa associação àqueles que entendem que o uso da expressão "vingança pornô" (ou "pornografia de vingança") seja pejorativa e fortemente preconceituosa, pois posiciona a vítima em situação de prejulgamento moral com relação à sua liberdade sexual. Ora, o uso da pornografia como elemento de identificação desse comportamento já a reputa imoral. Note-se que a palavra “pornografia” vem de "escrita sobre prostitutas", o que somente ratifica esse posicionamento.

Não por outra razão, o FONAVID (Fórum Nacional dos Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) recomenda à magistratura que evite, no exercício de sua jurisdição especializada, aquelas expressões depreciativas.

Quanto ao texto, originalmente, se previu a criação de mecanismos de combate de condutas ofensivas contra a mulher na internet, mediante três alterações pontuais na Lei nº 11.340, de 2006 – Lei Maria da Penha. No entanto, à matéria foram apensados ainda 12 outros projetos de lei, todos com temática assemelhada à do texto do deputado paranaense, seja no intuito de inovar a Lei Maria da Penha, seja criminalizando condutas.

Como resultado dessa fase inicial do processo legislativo, o Plenário da Câmara aprovou um novo texto, da lavra da Dep. Laura Carneiro (PMDB-RJ), então relatora da matéria perante da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) daquela Casa, por meio do qual se buscou alterar tanto a Lei Maria da Penha como o Código Penal.

No caso das alterações na Lei protetiva da mulher, foi proposta a inclusão, no art. 3º, da comunicação como um dos direitos cujo exercício deve ter condições asseguradas obrigatoriamente pelo Estado. No art. 7º, estabeleceu-se mais uma forma de violência doméstica e familiar contra a mulher: a violação da intimidade da mulher. Assim, além das espécies já previstas na lei[1], o legislador optou por uma nova e específica forma: a que agride a intimidade da mulher.

Por fim, quanto às alterações na legislação penal, a redação da CCJC manteve a proposta de criação de um novo tipo: o crime de exposição pública da intimidade sexual.

A despeito de toda a euforia em torno da aprovação da matéria, que é absolutamente meritória quanto à intenção do legislador, é necessário um olhar mais sereno e reflexivo sobre a redação aprovada pelos deputados federais, pois ali residem opções legislativas possivelmente equivocadas, que poderão, ao final, se mantido o texto pelo Senado, inviabilizar ou, quando menos, dificultar seriamente o combate a esse comportamento humano reprovável.

De plano, pode-se afirmar, com segurança, que a violação da intimidade e da privacidade sexuais é comportamento que reclama a devida criminalização. Não há aqui qualquer alinhamento à ampliação do Estado penal. Adere-se, tanto quanto possível, ao ideal de um Direito Penal mínimo. Porém, existem condutas cuja ausência de criminalização face ao silêncio legislativo repercute em impunidade absoluta. E esse parece ser o caso.

Em primeiro lugar, quanto às alterações na Lei Maria da Penha, é preciso suscitar um questionamento basilar: há necessidade jurídica ou, ainda, justificativa social para tal proposta? Um dos preceitos que regem a atividade legislativa é o princípio da necessidade. Por tal razão, essa indagação tem pertinência, ao menos, teórica.

Ao se analisar a questão a fundo, parece que a resposta seria negativa: a vingança virtual – ou qualquer que seja a nomenclatura que se opte por denominar essa conduta – já pode, atualmente, atrair a incidência normativa da Lei nº 11.340, de 2006, seja por sua configuração como uma forma de violência psicológica, ou mesmo como violência moral.

Ora, as definições legais para esses tipos de violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 7, inc. II e V) são suficientemente abrangentes, a ponto de permitir que o julgador possa aplicar a lei especialíssima e todos os seus mecanismos jurídicos de proteção também em benefício de vítimas dessa modalidade de violação de direitos.

Ou seja: a Lei vigente já oferece à mulher – que tenha sua intimidade sexual devassada e se encontre em situação de violência doméstica e familiar – as medidas protetivas de urgência, tal como previsto nos arts. 22, 23 e 24, cujo rol, diga-se, não é taxativo, sendo, inclusive, permitido ao juiz, por expressa delegação legislativa, a discricionariedade de emitir as medidas de proteção que considerar pertinentes, ainda que não previstas ostensivamente na Lei. É o que se lê no caput desses dispositivos: “entre outras” (arts. 22 e 24) e “sem prejuízo de outras medidas” (art. 23).

Portanto, salvo melhor juízo, não parece haver necessidade jurídica para a inovação legislativa ora proposta.

Não bastasse isso, o projeto ainda faz uma opção dissociada do delicado contexto de combate à violência doméstica contra a mulher ao desprezar o histórico normativo dos acordos internacionais firmados pelo Brasil, os quais estabelecem cinco formas de violência praticadas contra a mulher no âmbito doméstico e familiar.

Veja-se que a Convenção de Belém do Pará, adotada pelo Brasil em 1994, prevê explicitamente três formas de violência: sexual, física e psicológica. A ampliação desse rol, de maneira a abranger também a violência patrimonial e a moral, tal como adotada pela Lei Maria da Penha, segue recomendação da própria Organização Mundial da Saúde, conforme o “Modelo de Leyes y Políticas sobre Violencia Intrafamiliar contra las Mujeres”, publicado em abril de 2004, pela Unidad, Género y Salud – OPS/OMS.

Portanto, a pretensão de inovar na classificação normativa das formas de violência doméstica e familiar deveria ser precedida de amplo e rigoroso debate perante, inclusive, a comunidade internacional, sobretudo pelo histórico de construção desse subsistema de justiça social.

Para além dessa questão, é preciso que se compreenda que a inserção dessa temática na Lei Maria da Penha acaba por restringir o alcance da questão somente às mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar, pois é esse o âmbito de incidência dessa Lei.

Portanto, o PL, nesse ponto, sonega, por exemplo, a proteção à mulher que se relaciona sexualmente e de maneira ocasional com um estranho ou um conhecido (seu chefe ou colega de trabalho, por exemplo) e, não obstante, venha a se sujeitar à devassa de sua intimidade sexual por esses indivíduos. Isso porque não há, nesses casos, a situação de violência doméstica ou familiar e, portanto, não se poderia ali aplicar a Lei Maria da Penha.

Mais ainda: considerando-se que a doutrina e a jurisprudência ainda são vacilantes quanto à aplicabilidade da Lei de proteção à mulher em relacionamentos íntimos passageiros, como o namoro, a exposição não consentida da intimidade sexual da mulher dificilmente poderia contar com os mecanismos de proteção da Lei Maria da Penha.

Outro ponto crítico do projeto está na inserção de uma expressão ainda bastante controvertida em matéria legislativa: os “dados pessoais”. Pela redação aprovada, constitui uma forma de violência decorrente de violação da intimidade da mulher a divulgação não consentida de dados pessoais da vítima através da internet.

Ocorre que inexiste, no ordenamento jurídico nacional, um conceito adequado apto a definir o que seria um dado pessoal, o qual, inclusive, difere do dado cadastral quanto ao tratamento jurídico conferido – desafio tormentoso, aliás, para a aplicabilidade de outras normas que padecem do mesmo hiato normativo. É o caso do Código de Defesa do Consumidor, da Lei Geral de Telecomunicações, do Marco Civil da Internet e da Lei Antibullying, para citar alguns.

Fato é que nenhuma norma brasileira apresenta definição para o dado pessoal, abrindo margem para uma aplicabilidade jurisdicional heterogênea.

Parte da jurisprudência, inclusive, a fim de contornar a questão, tem entendido, por analogia, que dados pessoais seriam aqueles previstos na Lei de Registros Públicos. Não se pode dizer, no entanto, que essa solução seja adequada para toda e qualquer situação, mais ainda quando houver reflexos penais, o que reclama estrita obediência ao princípio da reserva legal.

Na verdade, tramitam no Congresso Nacional proposições que preenchem esse vácuo legislativo, mas, por ora, não são mais que propostas ainda em discussão. Daí que a consequência maior decorrente desse problema reside justamente em aplicações potencialmente indevidas da Lei Maria da Penha, sempre que houver a exposição de dados pessoais da mulher. Exemplo: seria a divulgação isoladamente do nome completo de uma vítima em rede social uma forma de violência doméstica ou familiar? Mais ainda: seria essa conduta um ato de vingança virtual? Porque é disso que a lei trata.

Tudo indica que o projeto preocupou-se em enquadrar o comportamento igualmente nocivo de devassar a intimidade com cenas de sexo ou nudez associadas a elementos de identificação da vítima, tal como ocorre, por exemplo, quando um vídeo íntimo é divulgado na internet com menções do nome ou dos contatos da vítima, inclusive revelação de nomes de usuário e perfis em redes sociais. Porém, da forma como proposta, a intenção não está bem traduzida em uma efetiva proteção normativa.

Ainda nessa linha, outro elemento conceitual que o projeto apresenta revela-se claramente dissociado do contexto de violência doméstica e familiar: a hospitalidade. Também pelo texto, constitui uma forma de violação da intimidade da mulher a divulgação de cenas de nudez ou sexo, dados pessoais etc. quando obtidos no âmbito de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade.

No entanto, a relação de hospitalidade não apresenta qualquer traço de convergência com a situação legal de violência doméstica e familiar, ao menos, não que já não estivesse prevista na própria Lei: ou a relação é efetivamente doméstica, ou é familiar ou é íntima de afeto, com ou sem coabitação.

Por fim, entendemos equivocado mencionar na lei que o consentimento deva ser “expresso”, de forma a afastar a violação de intimidade. É um excesso de termos que dificultam, cada vez mais, a aplicabilidade da norma. Bastaria dizer que qualquer divulgação de conteúdo íntimo sem consentimento da vítima já configuraria a violência perpetrada. Daí que, se o Senado mantiver o “expresso consentimento”, já podemos antecipar as infindáveis discussões sobre prova do consentimento e uma dialética em torno da forma do consentimento, se tácito ou expresso.

A segunda parte do projeto trata de matéria exclusivamente penal.

Cria-se o crime de “exposição pública da intimidade sexual”. Pelo texto, configura esse tipo penal o ato de “ofender a dignidade e o decoro de outrem, divulgando, através da internet, vídeo ou qualquer outro meio, material que contenha cena de nudez ou de ato sexual de caráter privado”.

Nesse ponto, entendemos haver um equívoco conceitual quanto ao que de fato representa a vingança pornô. Evidentemente que se trata de uma conduta violadora e ofensiva da honra, da imagem e da privacidade de uma pessoa, mas a conduta que merece reprimenda social não deveria ser a de ofender, e, sim, a de divulgar de forma não autorizada. Esse é o comportamento subversivo e repulsivo que deve ser o enfoque da legislação penal.

A opção por tutelar a honra na criminalização da vingança pornô, além de um erro legislativo, tem, ainda, repercussões jurídicas indesejadas.

Veja-se que a criminalização da ofensa à dignidade ou ao decoro está voltada à proteção da honra subjetiva da vítima, tal como ocorre com o crime de injúria: “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”. E, em razão dessa subjetividade, duas consequências são inafastáveis: a impossibilidade de sucessão processual e a legitimidade para promover a ação.

No primeiro caso, havendo a morte ou declaração judicial de ausência da vítima, não podem os herdeiros darem continuidade à persecução penal ou apresentarem a respectiva queixa-crime. Esse fato é gravíssimo, pois são recorrentes os episódios de suicídio em razão do vazamento de conteúdo íntimo, principalmente entre mulheres. No segundo caso, a ação se procede mediante queixa, ou seja, trata-se de ação penal privada. Dada a dimensão da conduta, talvez o mais adequado seria estabelecer a natureza da ação como sendo pública condicionada à representação, tal como ocorrem com os crimes contra as liberdades sexuais. Aliás, temos que a vingança pornô está mais próxima desse tipo de delito penal do que de crime contra a honra.

Por fim, cabe uma digressão sobre a pena estabelecida.

Curiosamente, o crime prevê pena máxima de 1 ano, que é menor do que a pena prevista no mesmo Capítulo para o crime de calúnia (pena máxima de 2 anos). O legislador passa a impressão de entender que acusar falsamente alguém de ter praticado crime é delito mais repreensível do que vazar conteúdo íntimo pela internet. Ou seja, publicar em rede social que alguém é “ladrão” seria mais grave do que publicar um vídeo privado de sexo.

Enfim, há outros elementos que poderiam ser analisados, mas o que há de mais grave pudemos abordar neste artigo.

Cabe, agora, ao Senado Federal, promover os ajustes necessários, para que não tenhamos mais uma Lei Carolina Dieckmann, cuja pressa acabou por introduzir no ordenamento pátrio um delito de difícil e raro enquadramento penal, tal a complexidade de constatação da materialidade e da autoria, face às múltiplas elementares do tipo que demandam esforço quase impossível para a certificação do crime nos autos judiciais.


Notas e Referências:

[1] A saber: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.


Fabricio da Mota Alves. . Fabricio da Mota Alves é Advogado, Professor de Direito Constitucional e de Direito Digital, sócio proprietário do escritório Mota Alves Advocacia Sociedade Simples. . .


Imagem Ilustrativa do Post: d a y d r e a m // Foto de: Adrian V. Floyd // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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