O papel do Estado Regulador no Direito Penal

18/08/2016

Por Liliana Santo de Azevedo Rodrigues - 18/08/2016

A intervenção do Direito Penal tendencialmente encontra-se numa relação de domínio face a outros ramos do Direito. Mas devemos ter em consideração a defesa dos direitos civis e a segurança dos cidadãos, o que nem sempre implica ter o direito penal como elemento central.

Na verdade, não é certamente pela intervenção penal que se consegue impedir a atividade criminosa. Não é através de normas penais cada vez mais restritivas, com molduras penais mais elevadas e consequentemente uma maior privação da liberdade, que se vai obter alguma eficácia na prevenção geral do problema. Todo o aparato legal que se cria em torno do direito penal, muito tem a ver com o estigma social que é gerado em torno dos cidadãos, no sentido de que para crimes violentos devem existir penas igualmente severas.

O que defendemos é que o crime deve ser combatido na sua verdadeira origem. O que significa criar mecanismos que dificultem a propensão para a atividade criminosa. No caso, criar fortes mecanismos adequados na luta da prevenção da criminalidade, não obstante, ter sempre presente que o direito penal terá sempre a última palavra no caso. O que significa que o direito penal tem uma intervenção subsidiária, de ultima ratio, de bens jurídicos dotados de dignidade penal.

Para uma melhor proteção dos bens jurídicos devem ser criados mecanismos preventivos, que condicionem de forma relevante determinadas práticas que, por sua vez, vão evitar a efetiva lesão desses bens jurídicos. A proteção da sociedade não se consegue exclusivamente através do direito penal. É defensável uma prevenção primária para que se consiga combater as origens do crime.

É neste contexto que surge a tutela administrativa. Se os órgãos da administração se concertarem na prevenção de práticas abusivas e lesivas dos interesses dos cidadão e da comunidade vão concretizar um significativo entrave na prática de delitos. Desta forma se garante uma maior compatibilidade entre os procedimentos adoptados e as garantias individuais, evitando a prática de ilícitos através de mecanismos de prevenção, nomeadamente de uma fiscalização de natureza puramente administrativa.

É da competência do Estado regulamentar juridicamente o funcionamento da economia e do mercado e proteger bens públicos, como por exemplo os serviços de interesse económico geral.

Ainda que não caiba ao Estado a obrigação de produção desses bens públicos, ele tem a incumbência não apenas de facilitar o funcionamento do mercado, mas também, e em especial, de corrigir o mercado. Conforme Pedro Costa Gonçalves (2003, p. 13) “o direito da regulação do Estado de garantia não é, pois, um ‘facilitativelaw’, mas, antes, um ‘marketcorrectinglaw’.” Na verdade, representa uma atividade regulatória com iniciativa estadual que conjuga iniciativas que fomentam a atividade econômica de uma forma harmonizada, corrigindo e sancionando práticas que prejudiquem a economia.

Incumbe ao Estado Administrativo de Garantia a função de regulador, impondo regras de conduta aos operadores econômicos que prestam serviços de interesse público geral, portanto um Estado Regulador e de Garantia. No entanto, não é necessariamente uma relação linear entre o regulador e o regulado. Trata-se antes de uma relação tripartida entre o regulador, as empresas e os cidadãos (ou empresas), conforme os destinatários dos serviços e bens em causa. Nesta relação tripartida repartiremos a função regulatória em dois grandes pilares: o Estado e o Mercado. O Estado, conforme vimos, enquanto agente administrativo, regulador da atividade econômica; o Mercado, enquanto atividade econômica onde se estabelecem relações entre empresas ou entre estas e os particulares.

Flora Pinotti Sano (2008, p. 15) classifica as funções do regulador em supervisão, fiscalização e regulação propriamente dita. Escreve ainda a autora, conforme as directrizes estabelecidas pela IOSCO[1], que não existe uma estrutura ideal para a autoridade reguladora. O principal objetivo é alcançar as metas propostas, independentemente da estrutura organizacional que seja estabelecida, desde que em pleno respeito pelos princípios estabelecidos. A IOSCO define cinco princípios fundamentais que devem ser respeitados pelo regulador (SANO, 2008, p. 16):

  1. as responsabilidades do regulador devem ser estabelecidas de forma clara e objetiva;
  2. o regulador deve ser operacionalmente independente, prestar informações e ser responsivo quanto ao exercício de suas funções e poderes (accountability);
  3. o regulador deve ter poderes adequados, recursos apropriados e a capacidade de desempenhar suas funções e exercer seus poderes;
  4. no exercício de suas atribuições, o regulador deve adotar procedimentos claros e consistentes; e
  5. os membros que compõem a estrutura responsável pela regulação devem observar os mais elevados padrões profissionais, inclusive de confidencialidade.

Importa relevar que para implementar esses princípios tem de se ter em consideração as especificidades de cada jurisdição e o grau de desenvolvimento do mercado de capitais em questão.

Ana Raquel Gonçalves Moniz (2003) sublinha os entraves que estão associados à atividade administrativa do regulador uma vez que estão envolvidas atividades de diversas áreas, afetando várias relações jurídicas, ainda que todas sejam dirigidas à supervisão do mercado.

A intervenção do Estado pode ocorrer de forma direta ou indireta. No primeiro caso, a produção de utilidades econômicas é feita através de órgãos estatais que controlam os respectivos meios (HAMMERCHMIDT, 2002) . A atuação indireta do Estado sucede com a criação de normas que afectam o âmbito de atuação dos agentes econômicos (SILVA, 2005, p. 184).

A função do Estado Regulador vai ser determinante para um controlo mais rigoroso, impondo às entidades sujeitas regras de conduta específicas que fomentem a atividade econômica de uma forma harmonizada, corrigindo as práticas que prejudiquem a economia. A intervenção Estadual termina a sua atuação exatamente onde começa o Direito Penal, ou seja, com a aplicação de contra ordenações e infrações disciplinares, que representam as penas máximas que podem ser aplicadas pela Administração Pública.


Notas e Referências:

GONÇALVES, Pedro Costa. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra Editora, 2013.

HAMMERSCHMIDT, DENISE; et alli. Natureza e Fins da Regulação da Actividade Económica. In: Revista Jurídica Cesumar, Vol. 2, n. 1. Maringá: Unicesumar, 2002.

MONIZ, Ana Raquel Gonçalves. A Crise e a Regulação: o Futuro da Regulação Administrativa. In: A Crise e o Direito Público, VI Encontro de Professores portugueses de Direito Público, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2013.

SANO, Flora Pinotti. O Modelo de Supervisão Baseado em Risco e o Papel da Auto-Regulação. In: Auto Regulação e Desenvolvimento do Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

SILVA, João Nuno Calvão da. O Estado Regulador, as Autoridades Reguladoras Independentes e os Serviços de Interesse Económico Geral. In: Temas de Integração, 2.º Semestre de 2005, n.º 20. Coimbra: Almedina, 2005.

[1] Organização Internacional das Comissões de Valores que regula o mercado de valores mobiliários. Os seus membros são, por norma, a Comissão de Valores Mobiliários ou o principal regulador financeiro de cada país.

Liliana Santo de Azevedo Rodrigues é Advogada, inscrita na Ordem dos Advogados de Portugal e na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Norte (OAB - RN). Possui graduação e mestrado em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade Portucalense Infante D. Henrique (2010), títulos revalidados, no Brasil, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, cursa o Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais na Universidade de Coimbra. Investigadora da Instituto Jurídico da Portucalense. Professora de Graduação em Direito na Faculdade Natalense de Ensino e Cultura (FANEC)/Universidade Paulista (UNIP), na Faculdade Maurício de Nassau e na Faculdade Estácio de Natal. Professora convidada de Pós-Graduação do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UniRN).    .


Imagem Ilustrativa do Post: Weathered Iron Park Bench // Foto de: dun_deagh // Sem alterações.

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dun_deagh/14538297175/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura