O nocaute moral do direito (à presunção de inocência)

10/09/2016

Por Márcio Gil Tostes dos Santos – 10/09/2016

Conforme amplamente noticiado, o STF no HC nº 126.292/SP mudou sua jurisprudência admitindo a possibilidade da execução antecipada da pena após condenação em segundo grau, isto é, antes do trânsito em julgado, relativizando o princípio da presunção de inocência. O Pleno seguiu o voto do ministro Teori Zavascki, Seguiram o voto de Zavascki os ministros Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Ficaram vencidos os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.

Vejamos alguns argumentos dos ministros Barroso e Fux.

O Ministro Barroso asseverou que “a condenação de primeiro grau mantida em apelação inverte a presunção de inocência”. Para ele, o princípio da não culpabilidade é sinônimo de dois graus de jurisdição, não de trânsito em julgado. Além disto, a impossibilidade de execução imediata da pena que resulta na “interposição sucessiva de recursos protelatórios, o que evidentemente não é uma coisa que se queira estimular”. “Advogados criminais não podem ser condenados, por dever de ofício, a interpor infindáveis recursos. Isso é um trabalho inglório, e aqui a crítica não é aos advogados, é ao sistema.”

O ministro Fux aduziu ter havido “deformação eloquente da presunção de não culpabilidade” na Constituição Federal. Para o ele, “isso não corresponde à expectativa da sociedade”. “Quando uma interpretação constitucional não encontra eco no tecido social, quando a sociedade não a aceita, ela [a interpretação] fica disfuncional. É fundamental o abandono dos precedentes em virtude da incongruência social. ” 

São bons argumentos? Talvez, mas não são jurídicos, são asserções morais, de política, seja criminal e processual, tentando corrigir a norma  dos artigos 5º inc. LVII e LXI da CRFB e 283 do CPP respectivamente.

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; 

Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva

A questão é, pode a Suprema Corte adotar posicionamentos morais, econômicos ou políticos em suas decisões, isto é condizente com o Estado Democrático de Direito, em outras palavras o círculo do Poder atribuído à jurisdição constitucional neste quadrante da história permite esta atuação de “vanguarda” para além dos limites da do direito?

Não se discute aqui a boa vontade dos ministros, mas a vontade (de e no poder), valores, moral e ideais políticos (criminais e processuais) não se coadunam com o direito pós-positivista em pleno Constitucionalismo Contemporâneo, diante de uma Constituição normativa instituidora de um Estado de Direito Democrático e não voluntarista.

Antes da virada copernicana operada pelo constitucionalismo contemporâneo, depois da segunda guerra, momento no qual as Constituições eram documentos políticos, de baixa ou nenhuma normatividade, Kelsen[1] negava que o direito possuísse uma parcela mínima da moral, para ele se assim fosse existiria uma moral absoluta, comum a todos os ordenamentos jurídicos. Para o mestre de Viena, em diversas épocas entre distintos povos e até mesmo dentro de um mesmo grupo social é reconhecido a existência de sistemas morais distintos e até mesmo contraditórios, levando com que algo seja considerado injusto e mal para alguns e justo e bom por outros, é porque não há elemento comum entre as diferentes ordens morais.

Diante desta percepção Kelsen nega a existência de um a priori comum a todas as ordens morais, aquele que deveria estar presente em todos o Ordenamentos Jurídicos para serem considerados como morais e justos. É nesta mesma linha a asserção do jurista austríaco[2] de que embora os princípios morais e políticos possam ser chamados de jurídicos por terem influenciado o legislador na criação da norma geral ou ao juiz quando da decisão judicial, eles não integram ou passam a fazer parte do Ordenamento Jurídico. Tal influência sobre os atos dessas autoridades não denotam qualquer obrigatoriedade destes princípios.

Para Kelsen esse vazio moral do direito permite que as decisões judiciais sejam influenciadas pela moral e convicções políticas particulares do juiz, conforme o capítulo VIII do seu Teoria Pura do Direito, em outras palavras, no momento de efetivação do direito há amplo espaço para a discricionariedade do julgador, a quem caberá “escolher” qual moral lhe guiará para decidir, no final das contas, o direito será (ab)usado para realizar a vontade do magistrado e não a do direito entendido como conceito de construção intersubjetiva e democrática a partir do texto constitucional. Para o mestre de Viena decidir é um ato de vontade, vontade de poder, completamos.

Como tivemos oportunidade de falar na coluna passada aqui no Empório (clique aqui), é justamente este vazio moral no Direito e o seu preenchimento discricionário, subjetivista, foi determinante na Alemanha para ascensão do Partido Nazista, o qual, através dos juízes, preencheu o vazio moral do direito com seus próprios valores o racismo e o autoritarismo, cujos argumentos políticos permitiram a uso do direito para a realização da barbárie pior todos conhecida.

Após a Segunda Guerra, este (ab)uso do direito,  sua instrumentalização para legitimar toda e qualquer atitude não era mais aceitável, era necessário blindá-lo contra inserção de vontades e valores morais particulares. Todavia esta blindagem só seria bem-sucedida se o vazio moral do direito fosse preenchido, para tal só havia um caminho, o direito deveria ter sua própria carga axiológica, carreando para dentro dele os elementos morais, políticos e econômicos de forma a não mais ser submetido, mas sim submeter as vontades morais, políticas e econômicas aos limites do seu dever-ser. Enfim, era necessário que o direito passa a ter  um a priori não alcançável, substituível seja pela ideologia política dominante, pelo legislador ou julgador, ficando fora das deliberações de maiorias eventuais, o dotando de autonomia, deixando de ser um instrumento para qualquer coisa e se tornando um fim em si mesmo.

Não por outro motivo, o fim da segunda guerra é o marco inicial da nova fase do constitucionalismo, o Contemporâneo, o qual dá origem ao Estado de Direito Democrático, que como tal deve ser dotado de autonomia. Esta conquista ocorre mediante a incorporação dos sistemas morais, políticos e econômicos na própria Constituição, na forma de princípios constitucionais.

Perceba, com esta institucionalização da moral pelo direito, além de superar dicotomia positivista que estabelecia a dependência ou a vinculação entre os dois, promove mudança na teoria das normas, pois os princípios constitucionais passam ser expressões deônticas. “É nesse contexto que os princípios ingressam no direito. No seu âmago, introduzem no direito as virtudes republicanas, a igualdade, os direitos fundamentais, as promessas de vida boa, a liberdade....!”[3].

Pois bem, diante da do texto da Constituição a atuação do STF em antecipar o cumprimento da pena privativa de liberdade é pautada em claros argumentos morais e políticos na tentativa de “corrigir”, segundo à sua vontade (de poder, e não da de Constituição), a literalidade do texto magno. Na realidade o STF terá que “declarar” este dispositivo constitucional originário inconstitucional, é neste sentido a petição inicial da ADC 43 na qual os subscritores, dentre ele Lenio Streck e André Karam Trindade, questionam: “A questão a saber é: poderá o Supremo declarar inconstitucional um dispositivo legal que reproduz o próprio texto constitucional a ser por ele guardado? ”

É claro que os textos normativos, inclusive a Constituição através das emendas, são modificados pelas maiorias políticas eventuais, mas não pelo Jurisdição, mas sim pelo órgão constitucionalmente determinado, no caso, o Congresso Nacional. Entretanto, defendemos ser impossível inclusive ao Poder Constituinte Derivado Reformador antecipar o juízo de culpa inserindo, via emenda, logo após o texto do inc. LVII do art. 5º da CRFB, que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a seguinte redação: “de juízo de segundo grau”, por violação ao art. 60 §4º, cláusulas pétreas, dada a restrição no direito ali consagrado.

Torcemos para o direito vença a moral na “revanche” que ocorrerá quando do julgamento da ADC 43 e 44 e não seja novamente nocauteado por ela.


Notas e Referências: 

[1] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Trad. Alexandre Krug et alli. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1986.

[3] STRECK, Lenio Luiz.. Pósfácio à obra “Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico”, de Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Landy, 2010 . p.33


marcio-gil-tostes-dos-santosMárcio Gil Tostes dos Santos é Professor de graduação e pós-graduação das disciplinas, Hermenêutica, Jurisdição e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais -PUC- campus de Juiz de Fora-MG; do Centro Universitário Estácio de Sá de Juiz de Fora- MG; Centro de Estudos Jurídicos Compreender Direito. Mestre em Direito pela UNESA – Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro. Colunista do site www.emporiododireito.com.br. Autor do Livro Resposta Adequada ao Constitucionalismo Contemporâneo. Advogado. E-mail: marciogilprofessor@gmail.com Facebook: https://www.facebook.com/marciogil.tostesdossantos


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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