O NCPC e a discricionariedade - Uma necessária crítica do cinismo e da razão cínica

15/10/2016

Por Luis Henrique Braga Madalena – 15/10/2016 [1]

E não se via mais ninguém por detrás de tudo. Todas as coisas giravam incessantemente em torno de si mesmas. Os interesses mudavam a toda hora. Em parte alguma, objetivo algum (...). Os guias perderam a cabeça. Estavam exauridos ao extremo e senis... cada ser humano no mundo começava a perceber: não dá mais certo... O postergar do colapso ainda apontava um caminho...

Franz Jung, A conquista das máquinas, 1921

Decisões aberrantes sempre existiram. Ainda mais em um país que tem um sem número de processos judiciais, como o Brasil. O que salta aos olhos recentemente é o nível de arbitrariedade e de desrespeito ao Ordenamento assumido por algumas das mais absurdas decisões que tem se visto.

Desde ordens para que se recolham CNH e Passaporte de devedores, até determinações para corte de luz de Secretarias de Estado, sob o fundamento de cumprimento de decisão anteriormente proferida, até suspensões de redes sociais diversas, muitos julgadores brasileiros sentiram-se com poderes para criar um novo direito, apoiados por parcela da doutrina, que chama este movimento de variadas maneiras, como nova interpretação do direito, mutação constitucional, entre outras.[2]

Muitas destas “novas” decisões buscam fundamento em pretensos permissivos trazidos pelo novo Código de Processo Civil. Mas será que em alguma passagem o NCPC abriu a possibilidade de que condenações de cunho patrimonial resultassem em limitações corporais ao devedor? Ou será que em face do não atendimento de uma decisão judicial, o NCPC autoriza o magistrado a determinar medida coercitiva em face da parte descumpridora que atinja direitos fundamentais de terceiros, em especial da coletividade, por meio da limitação de serviços públicos?

Trata-se de movimento que deve receber imensa atenção, pois coloca em cheque as poucas conquistas da modernidade alcançadas pelo cidadão brasileiro.

Aqui, com Sloterdijk[3], pretendemos realizar uma crítica do cinismo e da razão cínica presente neste movimento, que representa o “crepúsculo da falsa consciência”, da ingenuidade que depois de desvelada não mais retorna ao estado anterior.

Faz-se interessante trabalhar com os conceitos de Sloterdijk exatamente por parecer que a postura decisória ora abordada é facilmente reprovável, sem maior grau de complexidade na crítica a ser desenvolvida[4]. Produzir crítica sobre uma “verdade” abaixo de qualquer crítica parece absolutamente despiciendo, para não dizer inviável, mas é exatamente neste momento que uma crítica meramente dogmática[5] ou fundada na tradicional teoria do direito[6] não chega ao âmago da questão a ponto de desconstruí-la. Falta um elemento: o cinismo.

Exatamente por esta característica, nos parece que a crítica dogmática e teórico-jurídica em face de aberrações decisórias não se encontra capaz de considerar a moderna mistura de cinismo e opinião, claramente presente em seu objeto de consideração, muitas vezes de correntes de posturas de autoconservação social e individual.

Diante destas considerações algumas perguntas devem ser respondidas:

  • Há limites para esta atribuição de sentido, ou seja, para o preenchimento do significado dos significantes constantes dos textos legais? Se sim, quais são eles? Sintáticos, semânticos, hermenêuticos etc.
  • Há um álibi, uma permissão normativa, que atribua poder ao julgador/intérprete para dar sentido de forma livre/arbitrária aos textos legais?
  • O Estado Democrático Constitucional de Direito é compatível e capaz de sobreviver em face da vontade de poder do julgador/intérprete do direito? Esta vontade de poder de fato é livre e incondicionada?
  • Como todo este “ambiente” funciona observado sob o enfoque do cinismo e pela realização de uma crítica da razão cínica?

Procuraremos responder as indagações realizadas de forma sintética, mas consistente, de modo a demonstrar a importância do respeito em face das instituições democráticas, para que haja a possibilidade de manutenção das (poucas) conquistas da modernidade no Brasil.

Isso será feito em uma sequência de colunas, vindouras na esteira desta.


Notas e Referências:

[1] SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

[2] As decisões serão devidamente referenciadas e abordadas em seus fundamentos, apenas a título exemplificativo, em momento oportuno, na sequência dos escritos derivados desta coluna.

[3] SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica.

[4] Ibid. p. 37: Ora fazemos uma analogia do exercício realizado por Sloterdijk na crítica ao “fascismo teórico”, que considerado abaixo de qualquer crítica, acaba não sendo alvo de nenhuma desconstrução consistente. Até hoje as explicações do fascismo como niilismo ou como produto do “pensar totalitário” permanecem dilatadas e imprecisas. Esta ausência levou-nos a resultados absolutamente catastróficos, como se sabe.

[5] Que certamente é capaz de resolver a problemática sob um aspecto de lógica jurídica, por confrontar o conteúdo decisório que se critica em face da Constituição e do restante da legislação aplicável.

[6] Capaz de demonstrar o quão incompatível e inautêntica a concepção decisória em face de qualquer das matrizes teóricas ocidentais que possam dar supedâneo a um Estado Democrático de Direito.


Luis Henrique Braga MadalenaLuis Henrique Braga Madalena é Diretor Geral da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Mestre em Direito Público pela UNISINOS-RS. Especialista em Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro do grupo DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Constitucional da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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