O NCPC e a discricionariedade II - Uma necessária crítica do cinismo e da razão cínica

07/11/2016

Por Luis Henrique Braga Madalena – 07/11/2016 [1]

Não espereis que, conforme a tradição dos retóricos comuns, que eu faça a minha definição e tampouco fazer a minha divisão. Primeiramente, que é definir? É enclausurar a ideia de algo nos seus limites. E o que significa dividir? É separar uma coisa em várias partes. Ora, não me seria conveniente faze-lo. Seria um insulto limitar-me, pois o meu poder está desdobrado a toda a espécie humana. Do mesmo modo seria impossível dividir-me, pois tudo contribui para garantir a minha divindade que reina em todos os lugares. E por que me desenhar como a imagem numa definição já que estou frente a vossos olhos?

Erasmo de Rotterdam, A Loucura

Retomando o que iniciado na coluna de abertura, resta-nos buscar elucidar a primeira das questões que imaginamos indispensáveis para a identificação e controle da discricionariedade. Aqui, especificamente no âmbito no NCPC e suas inovações.

A questão é: Há limites para esta atribuição de sentido, ou seja, para o preenchimento do significado dos significantes constantes dos textos legais? Se sim, quais são eles? Sintáticos, semânticos, hermenêuticos etc.

Parece absolutamente simples respondermos que há, sim, limites, especialmente com tudo o que já escrito sobre a temática, especialmente por Lenio Streck[2]. O ponto aqui é demonstrar como esta identificação deve ocorrer, quais são os limites e como funcionam.

O assunto torna-se ainda mais relevante em razão das diversas decisões judiciais que não respeitam qualquer um destes limites, já ressaltadas na primeira coluna. Obviamente que aqui não se está a dizer que esta é uma práxis do Judiciário. Muito pelo contrário. Apesar de decisões absolutamente teratológicas estarem pululando nos últimos tempos, não podemos afirmar que estas são a grande maioria das corriqueiras manifestações judiciais ou que agora estão ocorrendo em razão das disposições do NCPC.

O que se quer abordar é como algumas “novas” disposições do NCPC servem de álibi para a discricionariedade judicial, absolutamente desvinculada dos limites acima mencionados.

Claramente os limites para a atribuição de significado aos significantes, ou seja, em face da apreensão de normas decorrentes das prescrições normativas, dos textos legais, são marcados pela Constituição. O ponto é que também a Constituição é recheada de prescrições normativas, de significantes que também pendem de atribuição de significado.

Falar em limites sintáticos implica em retomar a discussão do positivismo exegético, pós-revolução francesa, onde a interpretação das prescrições normativas não era admitida, claro que dentro do paradigma filosófico reinante na época. Isso se dava por uma questão não jurídica, claro, histórica, que certamente influenciava tal postura, aparentemente asséptica. Tal questão era a desconfiança que pairava sobre o Judiciário na condição de constante colaborador do rei, do governante absoluto, que por isso absolutamente desvalorizado em momento que se depositava todas as esperanças no Legislativo, especialmente como poder capaz de expressar a “vontade do povo”.

Os limites sintáticos eram evidenciados mesmo não havendo a separação entre texto e norma, de modo que a mera leitura da prescrição normativa já seria capaz, por si só, de delimitar o entendimento possível.

Evidentemente que estes limites meramente sintáticos já seriam capazes de barrar interpretações que violassem a integralidade do ordenamento, ou seja, que, por exemplo, cumprissem determinado permissivo do NCPC (art. 297), ignorando o que posto na Constituição. Isso é exatamente o que ocorre quando o julgador entende que o NCPC, de forma isolada, lhe dá poderes para determinar o corte da energia elétrica de uma Secretaria de Estado, ignorando o que determina a Constituição, especialmente em termos de Interesse Público etc. A questão é tão evidente que é só verificar a impossibilidade de escolher prejudicar toda a coletividade em detrimento de forçar o cumprimento de decisão cuja tutela tem caráter individual. Simples assim.

Não é preciso grandes exercícios interpretativos para isso!

Após observar que os limites sintáticos do positivismo exegético já teriam resolvido nossos problemas(!!!), cumpre ver o que pode o positivismo normativista fazer por nós.

Na verificação dos limites semânticos do normativismo já se admite a interpretação por parte do julgador, a qual deve ficar confinada em uma determinada janela ou moldura, conforme posto no capítulo oitavo da Teoria Pura do Direito, de Kelsen, ou na obra de Francisco Campos, ainda anterior às lições kelsenianas[3]. Obviamente que estes limites já são dados pelo que prenuncia o ordenamento como um todo, não sendo pertinente falar que uma decisão como a que mencionada anteriormente pudesse restar dentro da moldura e ser admissível, simplesmente por desrespeitar o que diz outra parcela do ordenamento, a Constituição.

Importante lembrar que os limites semânticos do positivismo normativista são um “avanço” restritivo em face dos limites sintáticos do exegetismo – assim, aquilo que não é admissível por este último certamente “não cabe na moldura”, que nada mais é do que um mecanismo de afastamento dos absurdos, das teratologias.

Portanto, lógico e evidente que já não poderá passar pelo filtro muitíssimo mais restrito da Crítica Hermenêutica do Direito, que leva em consideração a historicidade que cerca o ordenamento, diversamente das teorias analíticas, onde o problema da linguagem começa e termina na tarefa crítica cos conceitos, de modo que esta questão seria resolvida a partir de uma “clarificação” ou de uma melhor colocação dos conceitos. Para a hermenêutica, todavia, a história da filosofia é condição de possibilidade do filosofar e a representação sintático-semântica dos conceitos é apenas a superfície de algo muito mais profundo.[4]

Por tudo isso, para a Crítica Hermenêutica do Direito não faz sentido buscar a determinação abstrata do sentido das palavras e dos conceitos, sendo necessário colocar-se na condição concreta do que compreende de modo que o compreendido possa ser devidamente explicitado.[5]

Por isso, ainda mais inadmissível a questão acima sufragada, cujo desrespeito à Constituição é claríssimo, aqui tida como evento necessariamente visto em conjunto com a realidade que tem como objetivo transformar. Se assim não fizer uma decisão, certamente será inconstitucional.

Aqui, com Streck e Heidegger, não podemos nos afastar da hermenêutica filosófica, devendo agarrar-nos na linguagem, a fim de perceber que não há como isolar a prescrição normativa da “realidade”, da mundaneidade, conforme Heidegger, dado que não há prescrições normativas e/ou texto em abstrato.[6] O que pode existir são decisões judiciais que pretensamente/formalmente/simbolicamente atendem ao direito, o qual sempre possui seu conteúdo completado pela realidade que o cerca.

Isso se dá especialmente em países de modernidade tardia, como o Brasil, em que a Constituição não é instrumento de manutenção, mas de transformação da realidade. Trocando em miúdos, prescrição normativa/texto legal apenas é direito quando contrastado com a realidade que deve transformar.

Se assim não ocorre, o que teremos é um cumprimento meramente simbólico do direito, em que se tem o símbolo como elo de ligação entre o Sujeito e o Objeto, o que representa noção situada antes da reviravolta linguística da filosofia, quando ainda se tinha como possível o assujeitamento do objeto, na famosa relação sujeito-objeto. Certamente que em um Estado Democrático de Direito já não mais se faz possível a manutenção de tal paradigma da filosofia, ou seja, não se pode conceber a utilização da lente da filosofia da consciência para olhar uma Constituição como a de 1988, de modo que o julgador (sujeito) já não pode impor-se sobre o objeto (cidadão, jurisdicionado) da forma que melhor lhe aprouver.

Em resumo, esta conduta é inconstitucional, posto que incompatível com a resposta judicial aceitável em um Estado Democrático de Direito, necessariamente considerado em momento filosófico posterior a filosofia da consciência.

Ok, dito isso, cabe-nos desdobrar um pouco a explicação sobre os fundamentos disso tudo.

A dúvida que permanece é a seguinte: se são superados os limites e podemos identificar tais violações, mas mesmo assim isso não é capaz de constranger as decisões futuras, para onde devemos partir?

Na próxima coluna seguiremos para a resposta do segundo questionamento: Há um álibi, uma permissão normativa, que atribua poder ao julgador/intérprete para dar sentido de forma livre/arbitrária aos textos legais?


Notas e Referências:

[1] SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2010.

[3] CAMPOS, Francisco. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. 1958; KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984.

[4] STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2010. p. 37.

[5] Id.

[6] GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução por Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 172: Se interpretarmos corretamente a Heidegger, ele quer, antes de tudo, advertir sobre a tendência de se encarar enunciados como simples afirmações sobre objetos presentes e constatáveis, porque com isso se desconsidera o enraizamento da linguagem na estrutura de cuidado do ser-aí. (...) Quem quer entender hermeneuticamente um assunto lingüístico, deve sempre considerar conjuntamente o que não é expresso de imediato por ele, mas pensado com ele.


Luis Henrique Braga MadalenaLuis Henrique Braga Madalena é Diretor Geral da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Mestre em Direito Público pela UNISINOS-RS. Especialista em Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro do grupo DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Constitucional da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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