Por Walter Bittar - 24/02/2016
O atual modelo de investigação em curso no Brasil, ainda que sem a devida regulamentação (excepcionada a hipótese do inquérito policial[1]), em especial pela inexistência de limites concretos sobre a atuação do Ministério Público na fase pré-processual, admitindo-o como responsável pela investigação, em especial a partir da possibilidade de requisição de diligências investigatórias, referidas no art. 129, VIII, da Constituição Federal, aceitou a existência em nosso ordenamento jurídico de uma espécie de dupla via investigativa, aumentando – ainda que a doutrina não tenha dado a devida atenção – o poder coercitivo do Estado.
A partir do momento em que a legislação pátria permitiu a existência contra o sujeito que é objeto de investigação, de duas vias não neutras (porque produzidas apenas por um dos lados envolvidos na persecução criminal) e similares, porém, aparelhadas para a propositura da ação civil pública e para a ação penal que são a investigação criminal (não apenas o inquérito policial) e o inquérito civil, terminou por produzir uma inusitada situação onde uma parte interessada, o Ministério Público, tem a possibilidade de monopolizar expressiva parte da produção probatória na fase pré-procesual, especificamente nos procedimentos inerentes a improbidade administrativa, cujos reflexos nos procedimentos criminais são evidentes.
Ao contrário do inquérito policial, que não é um instrumento privativo da Polícia Judiciária, pois sofre fiscalização do agente ministerial, o inquérito civil, outro meio de investigação preliminar[2], tem como uma de suas características principais ser um instrumento privativo do Ministério Público (art. 9º, §§ 1º, 2º, 3º e 4º, da Lei 7.347/85), o que determina a sua completa independência institucional.
É cediço que as consequências jurídicas advindas da prática de ato de improbidade administrativa muito se assemelham ao aspecto criminal, particularmente porque se trata de uma ação tipicamente repressiva, sendo corrente no âmbito doutrinário a admissão de que princípios como o in dubio pro reo e a presunção de inocência devem ser aplicados em tais procedimentos[3].
Todavia, a legislação que regulamenta a ação de improbidade administrativa, contempla especificidades que devem ser observadas como forma de resguardar o interesse público e a legalidade, dentre elas, notadamente, a norma que veda a formalização de acordo nesta matéria.
Dessa forma, com a abertura do inusitado caminho para a instituição responsável pela persecução penal, ter legitimidade concorrente para a defesa da probidade[4] e outros bens jurídicos difusos e coletivos, levando para o âmbito da improbidade administrativa ações investigativas, até então comumente realizadas em sede de inquérito policial é que a presente abordagem envereda, com foco na hipótese de alargamento dos efeitos da delação premiada prevista na Lei 12.850/13, em tese uma legislação com efeitos jurídicos exclusivamente no âmbito penal, para alcançar também as ações de improbidade administrativa, especialmente porque envolvem interesse público.
O incômodo tem como base o poder estabelecer um âmbito de coerência, a partir da expectativa de um modelo investigativo, capitaneado pelo famigerado inquérito policial e processo penal que prende e liberta, sem instrução, ou mesmo julgamento, agora aliado a procedimentos estranhos a questão penal, em especial os inquéritos civis e ações civis públicas, lastreadas em acordos de leniência[5], paralelamente construídos com o suposto fim comum de punir e ressarcir os cofres públicos e, assim, responder ao cidadão comum sequioso por justiça, propiciando aos envolvidos a oportunidade, inclusive, de promover uma lavagem de ativos[6] (pasme-se), por meio de acordos de colaboração homologados pela justiça, conforme se demonstrará adiante.
A possibilidade prevista no art. 4º da Lei 12.850/13, da concessão do prêmio da redução, isenção de pena e até mesmo exclusão do pólo passivo do processo criminal ao investigado ou processado criminalmente que colabora efetiva e voluntariamente com a persecução penal, não faz qualquer alusão ao inquérito civil ou ação civil pública, existindo expressa previsão no § 8º de que “o juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto”.
No entanto, no Estado do Paraná, o Ministério Público tem oferecido, e o Poder Judiciário tem homologado, em especial no juízo singular, acordos de colaboração premiada que contemplam como prêmio, a possibilidade de devolução de bens adquiridos sob a suspeita de conduta ilícita (porque objeto de investigação ou processo criminal e civil), bem como deixar de aplicar a sanção pecuniária, em sua totalidade, inerente aos procedimentos de inquéritos civis ou ações civis públicas[7], fazendo constar, ainda, nos acordos de colaboração que o delator terá parte dos valores objeto de persecução (e, portanto, suspeitos de origem ilícita) devolvidos.
Há uma nítida tentativa de alargar os efeitos da delação premiada (a estrela emergente da persecução criminal no Brasil), prevista na Lei 12.850/13, com efeitos jurídicos exclusivamente no âmbito penal, para alcançar também as ações de improbidade administrativa, especialmente porque envolvem interesse público e indisponível, valendo-se do entendimento – equivocado – da possibilidade do uso da analogia, como método de integração do direito, em benefício do réu para fundamentar a aplicação os termos do acordo de colaboração premiada também para a improbidade administrativa e com isso, incentivar e incrementar a prática da delação como meio de prova[8].
A questão é que, para além da discutível espontaneidade de uma colaboração feita nestes moldes, subsistem três óbices intransponíveis a sustentar esse entendimento: a. o Ministério Público não possui discricionariedade para dispor do patrimônio público, mesmo que para restituir parcela do dano causado; b. o art. 17 da Lei 8292/92 expressamente proíbe a formalização de acordo em procedimentos judiciais previstos na referida legislação[9]; c. a Lei 12.850/13 não trata de acordo de leniência, tampouco permite, a realização de acordos de colaboração com benefícios para pessoas jurídicas.
Fato é que “em se tratando de ação civil pública fundada em ato de improbidade administrativa (Lei 8.429/92), há previsão expressa vedando ‘transação, acordo ou conciliação’ (§1º, do art. 17)”, em complemento, “ainda que, para argumentar, a transação viesse atender aquele primeiro objetivo (que concerne ao interesse fazendário), ainda assim restaria em aberto o desate de parte substancial da controvérsia, qual seja o interesse público em que a alegada improbidade venha cumpridamente sindicada, e punido o responsável.”[10]
Além da inexistência de previsão legal para a oferta de um prêmio não previsto na legislação sobre a delação premiada no Brasil[11], há outros motivos determinantes para repelir a aplicação de benefícios ao indivíduo que figure como colaborador na esfera penal, em face dos desdobramentos decorrentes dos atos de improbidade administrativa, “pois importaria na disposição dos mecanismos de proteção do patrimônio público moral e material e esvaziamento por completo da ação”[12].
Mesmo diante da contaminação do direito continental pelo modelo adotado pelo direito comum (dentre eles o norte-americano), ainda diante de uma relativização do princípio da legalidade, protagonizada pela Lei 9.099/95, e a ampliação das possibilidades de negociação entre as partes, certo é que o Ministério Público não está acima do bem e do mal, devendo respeitar o seu campo de atuação, sob pena de clara e inegável usurpação da função legislativa, além do que, a negociação do patrimônio público, implica transação de valores que não pertencem ao Parquet, mas a toda a sociedade.
Além do mais, sabe-se que, por força do princípio da legalidade, enquanto ao particular admite-se a prática de todos os atos não proscritos em lei, no âmbito público somente é possível atuar nos limites da lei[13] (art. 37, caput, CF), soando – no mínimo – paradoxal a atuação do Ministério Público à margem e acima da lei.
Insta salientar que não socorre ao Parquet a aventada utilização da analogia como argumento plausível a ensejar que a delação premiada espraie seus efeitos à improbidade administrativa, mormente porque a analogia constitui método de integração do ordenamento jurídico, ou seja, caracteriza-se por “aplicar a um caso não previsto a norma que rege outro semelhante.”[14]
Observe-se que subsiste norma clara, objetiva e específica proibindo expressamente a pretensão de conceder prêmios ao delator, conforme dicção do art. 17, §1º, da Lei 8.429/92 e, que a atuação dos integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público será tanto mais legítima quanto mais se aproxime dos critérios da legalidade e nessa perspectiva, “cabe referir que o art. 17, § 1º, da Lei n. 8.429/92 vedou a possibilidade de transação, acordo ou conciliação no campo da improbidade, o que, induvidosamente, reforça o princípio da obrigatoriedade na medida em que se veda ao Parquet e aos demais legitimados qualquer possibilidade de disposição quanto ao direito material.”[15]
Com efeito, aludido dispositivo constitui uma densificação infraconstitucional do contido no art. 37, §§4º e 5º, da Constituição Federal, os quais estabelecem inúmeras consequências para o agente público responsável por cometer ato de improbidade administrativa, afirmando-se ainda a imprescritibilidade de eventual prejuízo ao erário.
Na verdade, o oferecimento de acordo de colaboração premiada estendendo seus efeitos para a improbidade administrativa teria o condão de caracterizar ato violador à moralidade, legalidade e à pessoalidade perpetrado por todos os subscritores do acordo, ante a negociação de valores e bens considerados indisponíveis pela Constituição Federal.
A questão existente na ação civil pública é tão absurda e ilegal que nas “10 medidas contra a corrupção” propostas pelo Ministério Público Federal, há anteprojeto de lei prevendo justamente a utilização das colaborações premiadas na Lei de Improbidade Administrativa[16], o que hoje não pode acontecer e, mesmo se aprovada tal sugestão esdrúxula sua ilegalidade seria flagrante pois daria ao Ministério Público a possibilidade de violação da própria legislação, em especial uma inusitada lavagem de ativos patrocinada pelo agente estatal.
Admitir que um réu, por meio de um acordo de delação, receba parte do que admite ser produto de atividade ilícita, configura sem sombra de dúvidas o crime do art. 1º, § 1º da Lei 9.613/98, em face da conversão em ativos lícitos.
A hipótese é tão absurda que permitiria a prática de ilícitos com o intuito de obtenção de acordo de colaboração, com fins de lavar parte dos ativos ilícitos, valendo-se para tanto de uma sentença homologatória, algo surreal mas que, para além das tentativas de sua introdução no ordenamento jurídico pátrio (10 medidas contra a corrupção), já é uma realidade palpável[17].
Diante disso, e em conclusão, a colaboração premiada firmada pelo Ministério Público não possui qualquer valor nas ações civis públicas, por se tratar de esfera que não possui legislação específica para regular o tema, de modo que eventuais indisponibilidades de bens e as sanções devem ser aplicadas aos corréus delatores, podendo ainda invalidar o acordo de colaboração premiada, eventualmente homologado nestas condições.
Por fim, a toda evidência, não existe espontaneidade e muito menos voluntariedade em um acordo de colaboração premiada, quando uma das partes é ludibriada ao receber uma proposta de um prêmio inexistente, bem como seja esteja contaminada com promessas ilegais, sem previsão legal e que dê guarida legal a práticas ilícitas.
Notas e Referências:
[1] Com a sua conformação legislativa essencialmente descrita nos arts. 4º a 23 do CPP, observando o art. 22, I, da CF, que determina a competência privativa da União para legislar sobre direito processual, trata-se o inquérito policial de um procedimento administrativo investigatório, de caráter eminentemente inquisitorial, caráter que foi apenas mitigado pela atual Constituição, sem olvidar que existem outros dispositivos esparsos na legislação que, igualmente, fazem referência de forma mais ou menos direta ao inquérito policial. Porém, se há um mérito ao inquérito é que sua delimitação legislativa, se não é completa, pelo menos é suficiente permitir a fiscalização (ainda que não total, por óbvio) das garantias jurídicas do investigado, em especial a origem, formalização e documentação da prova produzida.
[2] Veja-se, por todos: SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Ação civil pública e inquérito civil, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 114.
[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo – Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 6ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p .108/110.
[4] Com mais detalhes veja-se: VIEIRA, Fernando Grella. Ação civil pública de improbidade – Foro privilegiado e crime de responsabilidade. In, MILLARÉ, Edis (coord.). A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 174.
[5] Legislação pertinente: Lei 10.149/00; Lei 12.846/13 e MP 703.
[6] Art. 1º, Lei 9.613/98.
[7] Como, por exemplo, pode ser conferido nos autos do Agravo de Instrumento nº. 1361478-7, atualmente em trâmite na 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
[8] Sobre a Delação como meio de prova veja-se: BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 175 e ss.
[9] Ressalte-se que a Medida Provisória 703/15 revogou a proibição, porém, a previsão é apenas para a pessoa jurídica, logo, não existe a possibilidade de concessão do beneplácito para a pessoa física.
[10] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública – Em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores – Lei 7.347/1985 e legislação complementar. 12ª. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 282.
[11] São várias as legislações que preveem o instituto no Brasil. Com maiores detalhes veja-se: BITTAR, Walter Barbosa. Delação Premiada, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 83 e ss.
[12] BARROS, Suzana de Toledo. Parecer: TJDF - Acórdão n.698504, 20040111174335APC, Relator: FERNANDO HABIBE, Relator Designado:ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS, Revisor: ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS, 4ª Turma Cível, Data de Julgamento: 10/07/2013, Publicado no DJE: 06/08/2013. Pág.: 300.
[13] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 95.
[14] MONTORO, André Franco. Introdução ao Estudo do Direito. 26ª. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 442.
[15] Improbidade Administrativa. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 851.
[16]“Art. 1º Acresça-se o art. 17-A à Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, nos seguintes termos: Art. 17-A. O Ministério Público poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas físicas e jurídicas responsáveis pela prática dos atos de improbidade administrativa previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e com o processo judicial, desde que dessa colaboração resulte, cumulativamente: (...).
[17] TJDFT - Acórdão n.804101, 20110110453902APC, Relator: CARMELITA BRASIL, Revisor: SÉRGIO ROCHA, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 09/07/2014, Publicado no DJE: 21/07/2014. Pág.: 100; AC 0000174-15.2004.4.01.4200 / RR, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL I'TALO FIORAVANTI SABO MENDES, Rel.Conv. JUÍZA FEDERAL CLEMÊNCIA MARIA ALMADA LIMA DE ÂNGELO (CONV.), QUARTA TURMA, e-DJF1 p.93 de 02/06/2014; TJPR - 5ª C.Cível - AC - 1243310-0 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina - Rel.: Carlos Mansur Arida - Unânime - - J. 09.12.2014
. . Walter Bittar é Doutor em Ciências Criminais pela PUC/RS, professor da PUC/PR e advogado criminalista. . .
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