No dia 18 de outubro de 2008, morreu em Salvador, aos 88 anos de idade, o Professor Calmon de Passos, um homem que alcançou elogios por mérito próprio, pela assiduidade e constância ao estudo, alguém que galgou a notoriedade, o reconhecimento e o respeito sem subterfúgios ou concessões de qualquer natureza. Aqui está a certeza e a prova da possibilidade da equanimidade humana, independente de raça, credo ou cultura.
Calmon de Passos merece estar no panteão dos homenageados pelo valor, pela idoneidade, pela competência, pela inteligência, pelo trabalho e pelos dotes morais: eis porque desta homenagem. Dizem que o discurso sempre sai ou do intelecto ou da emoção. Este saiu de ambos. Da inteligência, porque indispensável, porque nos faz adquirir o hábito da reflexão e do raciocínio. E por maior que ela seja – e a minha não o é – ainda seria insuficiente para dizer tudo que se deve e se pode dizer, na sua completude, sobre o Professor Calmon de Passos.
Porém, saíram também estas palavras da emoção, porque diante dos laços de amizade que nos uniam, a palavra do coração falou mais alto. Aliás, não há luz que se acenda na inteligência que não vá buscar sua origem no coração. Ele dá vida às palavras. Relembro um trecho do prefácio que o Mestre Calmon de Passos escreveu na primeira edição do meu livro, onde se lê: “Há um ditado antigo advertindo-nos de que não devemos perguntar sobre razões, quando quem fala é o coração. Por isso também se diz que o coração tem razões que a própria Razão (com letra maiúscula) desconhece". E continuou o Mestre: “Mas o coração, no particular, falou mais alto, e se foi ele quem falou, não lhe perguntem sobre as razões por que o fez.” Ainda a propósito, lembro-me também a letra de uma canção de Renato Russo que dizia no refrão o seguinte: “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração; e quem irá dizer que não existe razão”.
Eu e Calmon estivemos, muitas vezes e para minha felicidade, lado a lado, sejam nos acontecimentos jurídicos, nas salas de aula (onde fui seu aluno na pós-graduação), etc. Daí lembranças que não se apagam, reminiscências que não se desfazem.
Já disse em outra oportunidade (homenageando a um outro amigo) que o pior da morte não é propriamente a morte, mas o vazio deixado pela ausência que se eterniza. Aliás, a vida poderia ser, como disse o poeta Quintana, “simplesmente um dos deveres que nós trouxemos para fazer em casa. E se me dessem, um dia, uma outra oportunidade, eu nem olhava para o relógio, seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas”. Mas a vida não dá tempo para a vida. Pessoalmente, só posso lamentar a ausência, não apenas dessa passagem sem volta, mas do curto tempo que pude privar do amável convívio com o Professor Calmon de Passos. Apesar de curto, foi riquíssimo, com verdadeiras lições de mestre. Lamento, ainda, por nós que ficamos desde há cinco anos órfãos de quem nos ensinou a lutar por cidadania.
Calmon de Passos construiu uma obra jurídica e contestatória de inestimável valor, fazendo da ironia uma arma capaz de derrubar prepotências e denunciar safadezas. Nunca ficou em cima do muro para ver melhor os dois lados. O que me conforta é que seu exemplo de amor à dignidade permanecerá. Uma vida útil marcada pela simplicidade, pela fé e pelo amor. Lição de um grande Mestre que jamais esqueceremos.
Aliás, só morre de verdade quem é esquecido. Calmon de Passos jamais correrá esse risco. Primeiro, porque o tempo não o apagará da nossa memória. Segundo, porque o seu ofício era trabalhar o mais imorredouro tema da humanidade, que são as paixões, os ódios e os conflitos do homem: o cerne da existência humana.
As marcas e as virtudes do seu gênio ficarão gravadas para sempre na lembrança de todos aqueles que admiravam a grandeza do seu caráter, o civismo, o desassombro das atitudes, a inesgotável energia moral. Legado extraordinário deixado à cultura do Brasil. Privilégio de bem poucos em nossos dias.
Calmon de Passos transmitia valores de uma vida profissional plena, com amor e dedicação ao trabalho, difundindo, ao mesmo tempo, serenidade, firmeza e credibilidade. Era impressionantemente inteligente e determinado. Tinha um imenso amor pelo ensino. Sua vocação teve sempre um pé no magistério. Só quem ensina com prazer e por prazer sabe do que estou falando. Humberto de Campos costumava citar uma frase atribuída a D. Pedro II, nos seguintes termos: “Se eu não fosse imperador, desejaria ser professor, pois não conheço missão maior e mais nobre que a de dirigir as inteligências juvenis e preparar os homens do futuro.” Já Celso Ribeiro Bastos, um conhecido constitucionalista brasileiro, à beira da morte, aos 64 anos, no último encontro com o amigo inseparável, o Professor Ives Gandra da Silva Martins, apenas teve forças para perguntar-lhe o seguinte: “Ives, será que eu ainda vou conseguir dar aula?”
Foi, certamente, um dos homens mais trabalhadores e dinâmicos com quem convivi. Arguto, perspicaz e excelente ouvinte são outros tantos adjetivos que se somam e que me veem à mente quando busco descrevê-lo. Advogou honestamente e com coragem, atraindo para si olhares de admiração de seus pares e de inveja de seus desafetos. Um homem que aceitou desafios; acho que até mesmo os procurava, pois foi essa busca de avanço na atividade profissional que marcou sua trajetória e melhor define sua personalidade. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho escreveu que existem “autores que sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (...); para estes, “o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível.”[1] Não foi um homem que se acomodou e se deu por realizado com posições já alcançadas, que não foram poucas, como Procurador-Geral de Justiça e Presidente da OAB/BA. Jurista de renome, deixou-nos uma vasta obra, nacionalmente reconhecida e citada. A sua ausência foi uma perda irreparável, um vazio que demandará tempo a ser preenchido. Ele empregou a linguagem culta com uma felicidade singular. Quando falava ou escrevia, mostrava possuir uma imaginação fecunda em pensamentos novos, variáveis, vigorosos, às vezes, e por necessário, irônico e sarcástico.
Foi um extraordinário e inspirado escritor e orador eloquente. Caráter forte, natureza robusta e vontade firme, nunca recuou, nunca se atemorizou e nunca se desvaneceu diante de poderosos. Em tempos de papagaios, vamos sentir muito a falta de quem não desperdiçava palavras e esbanjava bom humor. Figura colossal, cuja vida, tão ativa como diuturna, tão fecunda como longa, encheu sua época e nossos dias.
Este é o meu perfil do Professor Calmon de Passos que fez, com nobreza de caráter, tudo que desejou fazer, realizando seus sonhos. Que escreveu que precisamos na vida “definir objetivos e, em função desses fins, fixar qual a melhor conduta individual e social a seguir no seu viver e conviver.”[2]
Cremos ser esta, em suma, a melhor lição a respeito de como se conduzir eticamente. Como escreveu Paulo Freire, “falo da ética universal do ser humano. Da ética que condena o cinismo do discurso, que condena a exploração da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal.”[3]
Evidentemente que não poderia terminar este texto sem fazer referência à sua obra póstuma: REVISITANDO O DIREITO, O PODER, A JUSTIÇA E O PROCESSO – Reflexões de um Jurista que trafega na contramão (Salvador: JusPodivm, 2013). É bem verdade que no ano de 1999, a Editora Forense já havia publicado a obra DIREITO, PODER, JUSTIÇA E PROCESSO. Porém, este novo trabalho, agora “relançado”, além de “revisitado”, não se trata de uma mera atualização, muitíssimo pelo contrário. É possível afirmar, sem receios, que este é um novo livro ... e que livro!
O primeiro capítulo tem como epígrafe “Os Pilares do Pensamento”. Logo de início consegue o Mestre[4], com absoluto êxito, trazer a lume reflexões a respeito do Direito, da Ética, do Processo e da Função Jurisdicional (não como um mero exercício de dogmática), de maneira a entregar-nos um manancial seguro contra aqueles que, manipulando estas questões, procuram “empulhar os consumidores, colocando rótulo ´moderno’ numa embalagem cujo conteúdo é algo velho, já sem sabor e sem poder nutritivo”. Aproveita para fazer uma crítica bastante pertinente ao tão propalado ativismo judicial, que “dá a esmola não desfalcando o seu patrimônio, mas o do povo brasileiro, porquanto, penalizando a empresa, ou a inviabiliza ou ela transfere o ônus para o consumidor”. (...) Se houvesse intenção honesta, jamais seria penalizado o Estado, mas os agentes políticos responsáveis pelo abuso.”
Já na segunda parte, o jurista e pensador baiano trata do que ele chama de “Espaço onde opera o Direito: pressupostos econômicos, políticos e ideológicos”. Nesta etapa reflete sobre o homem, suas necessidades e conflitos, o poder e a política (naquele sentido...). Aqui, faz-se um estudo aguçado sobre Ideologia (erudito e ao mesmo tempo de fácil compreensão), onde, valendo-se das lições de Bobbio, Stoppino e Leandro Konder, conclui ser “impossível uma ideologia do direito dissociada da ideologia do poder que o legitima, pois o direito é a viabilização da legitimação do poder.” Nada mais impactante e correto.
Em seguida, temos outro capítulo que trata da “Democracia e Poder Judiciário: uma conspiração insidiosa”. Esta etapa da leitura é a mais ampla, pois Calmon transmite o seu pensamento sobre a Democracia, a Constituição, o Constitucionalismo e, novamente, mas sem ser repetitivo, sobre a Função Jurisdicional. Aproveita a oportunidade para tratar do Magistrado que, “numa Democracia, nem é o deus que alguns ingenuamente pensam que são, nem monarcas soberbos ou semideuses que olham de cima para baixo, com desprezo ou piedade, o restante dos mortais.”
Após, temos um capítulo que trata de “O Operador do Direito”: o seu papel social e a sua dimensão profissional, seja no aspecto individual, seja sob o ponto de vista social. Sobre todos nós, Calmon lembra, como uma advertência, “que assim como existem os maus artistas e os maus artesãos, também nós, operadores do direito, poderemos, por incompetência ou por má fé, tornar inóspita e feia a casa dos homens, porque todo pigmeu faz as coisas na medida de seu tamanho e todo meliante decora-a na ótica de seus interesses.” Neste capítulo, talvez haja uma especial atenção aos Advogados (não poderia afirmá-lo ao certo). Calmon os compara aos “integrantes de uma orquestra da qual se excluiu o maestro. Há partituras e músicos, mas não há harmonia. Só dissonância.” Depois de afirmar que a batalha pela Democracia foi dos Advogados, deixa um recado (ou talvez um desafio): “Se não iniciarem agora a nossa resistência, não haverá mudança alguma amanhã. E essa resistência é pessoal.” Não pode o advogado ser mero instrumento “para servir aos que realmente vão ser protagonistas.”
O livro (quase) encerra-se “Para além do Imediato”, com textos sobre questões que sempre “atormentaram” Calmon de Passos: o Homem, o Direito, a Ética, a Democracia e a Liberdade. O último deles trata da crise do paradigma da modernidade (quando lembra em alguns momentos Boaventura de Souza Santos[5]). Com uma absurda nitidez afirma que hoje a “ênfase dada à coerção, cada vez mais necessária para assegurar as chamadas ordem social, ordem política e ordem jurídica” mais do que ter causado um “desencanto do mundo”, em verdade produziu “o desencanto da vida”. Estimulou-se “a competição, em detrimento da solidariedade, fazendo da derrota do outro nossa coroa de louros.” Eis a modernidade! Que obra genial, imperdível e de leitura obrigatória.
Quando Calmon de Passos morreu lamentei a perda, não apenas pelo fim (afinal de contas vivemos para isso mesmo, para o fim), mas pelo curto tempo que pude privar do seu amável convívio. Apesar de curto, foi riquíssimo, com verdadeiras lições de mestre. Lastimei também por nós que ficamos órfãos de quem nos ensinou a lutar por cidadania. Calmon de Passos construiu uma obra jurídica, filosófica, sociológica, política e, sobretudo, contestatória, de inestimável valor, fazendo de sua coragem uma arma capaz de derrubar prepotências e denunciar safadezas. Nunca ficou em cima do muro para ver melhor os dois lados.[6] Lição de um grande Mestre que jamais esqueceremos. O seu ofício era trabalhar o mais imorredouro tema da humanidade, que são as paixões, os ódios e os conflitos do homem: o cerne do Direito e da vida.
Viva a Calmon de Passos, figura colossal, cuja vida, tão ativa como diuturna, tão fecunda como longa, encheu sua época e nossos dias. Que falta você nos faz!
Para encerrar, transcrevo esta poesia (transformada por mim em prosa), acho que vale a pena:
“A Mário de Andrade ausente” - Manuel Bandeira (1945)
“Anunciaram que você morreu. Meus olhos, meus ouvidos testemunharam: A alma profunda, não. Por isso não sinto agora a sua falta. Sei bem que ela virá (Pela força persuasiva do tempo). Virá súbito um dia, Inadvertida para os demais. Por exemplo, assim: À mesa conversarão de uma coisa e outra, uma palavra lançada à toa baterá na franja dos lutos de sangue. Alguém perguntará em que estou pensando: sorrirei sem dizer que em você. Profundamente. Mas agora não sinto a sua falta. (É sempre assim quando o ausente. Partiu sem se despedir: Você não se despediu). Você não morreu: ausentou-se. Direi: Faz já tempo que ele não escreve. Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel. Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque. Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida? A vida é uma só. A sua continua. Na vida que você viveu. Por isso não sinto agora a sua falta.”
Notas e Referências:
[1] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
[2] Direito, poder, justiça e processo – Julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 53.
[3] Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra, 35ª. ed., 2007, p. 15.
[4] ... que admirava profundamente Hannah Arendt e a citava constantemente em suas aulas, palestras e escritos, e cuja obra prima (pelo menos para mim) é “A Condição Humana”. Aliás, ela que costumava recusar o título de filósofa (pois preferia o de cientista política), escreveu ensaios imperdíveis sobre política (não no sentido que se lhe empresta usualmente), encontrados nas obras “O que é Política?” e “A Dignidade da Política”, dentre outras.
[5] O autor de “A Crítica da Razão Indolente – Contra o Desperdício da Experiência” também era um dos preferidos de Calmon. Eles sabiam das coisas...
[6] Escreveu Calmon: “Firmado em minhas certezas sou como um bom galo de briga: só deixo a rinha depois de morto.”
Imagem Ilustrativa do Post: Saint-Antoine Buildings // Foto de: Jason Thibault // Sem alterações
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