O mercado da moral: onde tudo está à venda

25/03/2017

Por Maurício Fontana Filho – 25/03/2017

É através do liberismo que o mercado não apenas impõe sua lógica, mas seus valores, sendo estes dois principais: a) o princípio de que tudo está à venda; b) o valor de que é natural que quem tenha mais recursos tenha melhores oportunidades e em maior quantidade. Desta maneira, ao limitar a intervenção do Estado na economia, está-se a eleger um novo Deus: o todo-poderoso e reverenciado mercado, o outorgador da moral (SANDEL, 2015).

O nacionalismo, a paixão pelo organismo do Estado em detrimento das partes é o grande fomentador da inversão de valores morais pelos de mercado, afinal, o benefício, a glória do Grande Irmão (ORWELL, 1992) se sobrepõe a interesses e meros indivíduos, elencando-se soberana. Não é nada pessoal, são apenas negócios (SINGER, 2004).

O que outros Estados farão com nossos bens comercializados não nos cabe realizar juízo de valor, pelo contrário, nossos interesses se encontram como sendo um dever ser. Se puderem pagar, estará tudo bem. A responsabilidade subjetiva com o bem-estar, tanto individual quanto coletivo se apresenta em segundo plano em face das demandas do mercado. O comércio não é uma atividade neutra, mas agressiva (SINGER, 2004).

O moral a ser feito no momento em que um Estado descobre estar realizando atividade comercial com nações ávidas a canalizar os recursos derivados desta de maneira viciosa, financiando ditadores ou extermínios em massa é deixá-las em paz até que Estado legítimos se apresentem (SINGER, 2004).

Para Michael J. Sandel (2015, p.88-89) a economia não é uma ciência que se encontra em posição longínqua da moral, mas pelo contrário, a lógica de mercado e a lógica moral se conectam em razão de que “quando os mercados aumentam sua penetração nas esferas não econômicas da vida, mais se envolvem em questões morais [...] quando a lógica de mercado vai além do terreno dos bens materiais, terá de ‘lidar com a moralidade’.”

Isso significa dizer que a intervenção de mercado na vida das pessoas pode tomar várias formas, sendo aquela que se sobrepõe ao campo moral a mais perigosa. Nos esportes promove exclusão social, enquanto que nas conquistas coisifica indivíduos e valores (SANDEL, 2015).

Segundo Sandel (2015, p.173) a criação de camarotes luxuosos é um símbolo de separação entre chefes e empregados, ricos e pobres. Dois polos que já habitam mundos diferentes passam a ser privados dos pequenos momentos de confraternização:

Quando eu ia aos jogos dos Twins de Minnesota no meado da década de 1960, as diferenças de preço entre os assentos mais caros e os mais baratos era de US $2. Na verdade, durante a maior parte do século XX, os estádios eram lugares onde os executivos empresariais sentavam-se nas mesmas filas para comprar cachorro-quente e cerveja, e ricos e pobres igualmente se molhavam se chovesse. Nas últimas décadas, contudo, isso mudou. O advento de camarotes especiais muito acima do campo separou os abastados e privilegiados das pessoas comuns nas tribunas e arquibancadas mais embaixo.

No momento em que o dinheiro pode ser utilizado como um lubrificante transacional no que repercute tudo aquilo que desvaloriza bens ou lesa interesses haverá lesão moral. A compra de uma amizade irá dissolvê-la ou modificá-la; um prêmio vendido perderá o seu valor, afinal, o que se adquire é o bem material, mas não a honra de tê-lo conquistado; uma criança comprada tem seu valor estipulado e, em decorrência, é quantificada, perdendo seu valor (SANDEL, 2015).

Na obra Nothing de Janne Teller (2010), a Pile of Meaning era tomava a forma de uma figura de linguagem utilizada para descrever um amontoado de bens subjetivamente importantes. Através do depósito do bem mais precioso de cada criança em uma caixa, fora estipulado o qualitativo e insubstituível, o qual perdeu seu valor quando ofertada à venda, passando a representar nada mais, por ter sido corrompida e quantificada pela ganância.

Zygmunt Bauman (2003, p.116) conceitua a moral dizendo que “[...] nada mais é que uma manifestação de humanidade inatamente estimulada – não ‘serve’ a propósito algum e com toda certeza não é guiada pela expectativa de lucro, conforto, glória ou auto-engrandecimento.”

No Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry (2008) um bem é quantitativo até que tenha cativado ou sido cativado, tenha criado laços com alguém, tendo isso ocorrido o valor passa a ser abstrato, não possuindo mais caráter quantitativo, mas qualitativo: insubstituível. A partir do momento em que tenha sido reconhecido como possuidor de valor inerente a si, um bem como qualquer outro transcende os liames que o prendem a sua realidade, passando a deter caráter indecifrável.

Jean Teulé (2010), em A Loja dos Suicidas, disserta sobre a lesão à sociedade civil que incorre aquele fomenta a sobreposição do comercio à moral. Independente de existir uma demanda, não cabe ao indivíduo supri-la se incidir sobre matérias morais. Na obra, a morte é comercializada livremente, o que suscita os valores que envolvem a prática, tornando a vida em sociedade uma vida dentro de um campo de depressão.

O mercado é o grande promotor da ideia de que não somos seres singulares, mas apenas números em uma sequência. Quando o mercado intervém no campo do amor, as relações sexuais e familiares são corrompidas; o consumo de união, o consumo de relacionamentos se tornou algo rotineiro comum e, em razão disso, aceitável. A satisfação sexual, através do império soberano das lógicas de mercado, determinou os ditames que regrariam a vida amorosa em sociedade. Indivíduos possuidores de valor inerente a si foram transformados em insignificantes objetos para uso e descarte (BAUMAN, 2003).

O Deus-Terreno Mercado exige a vinculação do dinheiro com e através da vida, repercutindo sobre suas relações e categorias. Se para José Ortega y Gasset (2016) o conceito de moralidade é submissão consciente a determinados princípios elencados pelo próprio indivíduo, através do mercado, a submissão consciente e voluntária se dá através do dinheiro (ZEIFERT, 2004).

Os recursos são a moralidade contemporânea. A mutilação ao caráter moral não apenas afeta o indivíduo isolado, mas os liames que o ligam à sociedade de maneira a enfraquecer os vínculos que a mantém unida (ZEIFERT, 2004).


Notas e Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. 5.ed. Campinas: Vide editorial, 2016.

ORWELL, George. 1984. London: Everyman’s library, 1992.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2008.

SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

SINGER, Peter. Um só mundo: a ética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

TELLER, Janne. Nothing. New York: Atheneum, 2010.

TEULÉ, Jean. A loja dos suicidas. São Paulo: Ediouro, 2010.

ZEIFERT, Luiz Paulo. A exclusão social na Grécia clássica e a postura dos sofistas: repercussões nos processos emancipatórios contemporâneos. Ijuí: Unijuí, 2004.


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Maurício Fontana Filho. Maurício Fontana Filho é acadêmico do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, RS e bolsista Fapergs no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. .


Imagem Ilustrativa do Post: Mannequins / Schaufensterpuppen II // Foto de: Christian Schnettelker // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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