O LUGAR DAS REMINISCÊNCIAS HISTÓRICAS FRENTE AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA  

24/07/2021

Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; ou então: "O ator Martinho² cantará uma de suas melhores árias".[1]

Mestre Romão, personagem machadiano, do conto Cantiga Esponsais, ao ser lembrado pela remissão a outros sujeitos, já nasce velado na estória. O artifício serve para retratar a crise identitária pela qual o país passa(va). Todo o enredo e o espaço construído, com a acidez peculiar do autor, visam denunciar uma sociedade que, conquanto constituída sob vestes talares, oculta corpos vulgares. Desse modo, o realismo empregado não pretende esquadrinhar o mundo tal qual nos vem à primeira vista, mas evidenciar o insólito inefável.

Na literatura, figuras de linguagem são usualmente utilizadas para a(du-)lteração dos significados, com o fito de superar sua esfera semântica originária. O uso de metáforas como recurso de indicar certa solidariedade entre os termos, metonímias, com a finalidade de realçar a proximidade entre ideias, e demais tipos de paralelismos são expedientes manejados para denunciar certo estado de coisas, mas, por outro lado, para encobrir outras.

Com perspicácia, Machado eleva esses recursos linguísticos ao altiplano da psicologia, introduzindo o papel que a memória exerce na constituição do (in)consciente e na formação da nossa história. Assim, a ilustração de “Mestre Romão” realça as associações com as quais os nossos pensamentos trabalham e, consequentemente, o modo como se externalizam opiniões, gostos, escolhas etc.

Expressando-se pela (e na) linguagem, o fenômeno da tributação também está umbilicalmente entretecido com essas concepções prévias. Isso quer dizer que o significado imediato que nos vem não está isento de juízos anteriormente adquiridos, que parametrizam nossa compreensão.

Dentro desse acervo, podemos falar de paradigmas, enquanto um elemento a priori constituinte de nossa maneira de compreender o mundo em nossa volta. Veremos que o que está inserido nessa caracterização pode ser extraído a partir de um recorte filosófico-teórico, captando seu sentido pela forma com a qual os temas são enfrentados.

Naturalmente, o objetivo traçado nos coloca diante do princípio da legalidade, pois é a partir de sua sedimentação que o Direito Tributário inicia o seu caminho. Assim, direcionando-nos para onde a doutrina clássica primeiro guia, poderemos compreender o papel que os conceitos, regras e princípios desempenham na prática.

De regra, sua descrição se inicia com o relato histórico sobre o reinado de John Lackland, famigerado ‘João Sem Terra’, sendo grifado que sua sanha arrecadatória teria sido contida pelas concessões impostas pela Carta Magna.

Alguns chegam a aprofundar na revolução norte-americana, enfatizando que o episódio da “Boston tea party” teria sido o estopim da ira dos colonos contra a tributação excessiva.

À semelhança de “Mestre Romão”, o princípio da legalidade parece não possuir sentido próprio, pois o que chega aos nossos ouvidos são os sussurros dos inconfidentes contra a derrama instituída pela Coroa…

No interior dessa cunhagem histórica, constituiu-se o berço de toda a experiência e horizonte do terreno tributário brasileiro. Da narrativa, sobressai-se a convicção de que haveria uma renda “pré-tributária”, decorrente dos direitos naturais à liberdade e à propriedade. Sendo o “ser humano” o dono da sua própria sorte, não concorreria para a formação da riqueza variáveis outras como as de ordem política (aquilo que o Estado faz ou deixa de fazer). Daí o predomínio de manifestações enraizadas em teorias que rivalizam os referidos direitos com a tributação.

Tudo isso encontra respaldo no paradigma conceitualista vigente, que carrega consigo o lema in claris cessat interpretatio. Corrente para a qual a hermenêutica ocupa lugar apenas quando a compreensão não ocorre de imediato. Em consequência disso, as soluções dos mal-entendidos suscitam o acionamento de alguma instância decisória para (re-)produzir o sentido do texto ou, até mesmo, para produzir novos textos.

Assim, o significado de tributo se prende a um conjunto de características suficientes e necessárias para delimitar o conteúdo do pensamento. Tanto é que a dogmática em geral centra seus esforços na construção de modelos teóricos (regra-matriz, fato gerador, p.ex.), classificações (espécies tributárias, tributo direito e indireto, vinculado ou não-vinculado, p.ex.), conceituações (renda, propriedade, venda, p.ex.) etc. Há um fetiche pelo “dado” ou “positivo”, figurando o jurista como um sujeito cognoscente que se relacionará diretamente com o objeto a ser conhecido. Acredita-se, com efeito, na justaposição entre a construção linguística e a realidade a que se refere.

A repercussão prática desse “modo-de-ser” reverbera de tal maneira nas discussões judiciais no plano dos Tribunais Superiores que a função jurisdicional se reconfigurou para enfrentar ações veiculadas sob o suporte físico de ‘teses tributárias’, ou seja, despidas de toda a sua singularidade. Todo imbróglio passou a envolver, de um lado, um esquema de interpretação segundo o qual se pretende reduzir a complexidade da realidade a grandezas matematizantes (conceitos de renda, lucro, receita etc.); e de outro, um ponto de vista que presume uma essência real da coisa (“renda em si”, “lucro em si”, “receita em si” etc.).

Uma maneira de explicar essa cobiça pode ser pela frustração humana de não se reconhecer como um ser finito e falho. O que pode ser definido como um complexo em que a criatura se vê à imagem e semelhança de Deus. Na sua raiz, encontra-se um desvio comportamental que hipostasia um universo onde se torna um ‘ser’ onisciente e não um ‘ser’ sujeito à temporalidade.

Nesse arranjo institucionalizado, deposita-se, a meu ver, a arché da litigiosidade tributária, que podemos traduzi-la pela busca incansável da essência (pré- ou extra-)linguística e/ou da linguagem perfeita.

Por conta disso, afirmamos que a tributação segue sendo interpretada segundo (pré-)conceitos não interrogados, impedindo uma relação que não seja com aquela familiarizada. Isto é, o reconhecimento da “coisa tributária” permanece (in-)visível, na medida em que a sua “imagem”, “sentido” e “aplicação” estão engessadas a um tempo histórico completamente descontextualizado. Dessa maneira, as possibilidades de abertura para o novo, estruturada por uma experiência que não seja mero reflexo de sentidos prévios, resta inviabilizada.

Nessa ordem de ideias, o formalismo-individualista impede que se tenha à vista os problemas do mundo real, tais como a inefetividade das promessas previstas na Constituição. Isso porque o seu mundo artificial oblitera todas as vicissitudes, idiossincrasias, vícios e mazelas sociais, escamoteando o indizível. Com efeito, reduzindo o papel da doutrina à mera descrição dos diplomas legais e da jurisprudência, a base do conhecimento continua impregnada pela metodologia, fundamentada na crença de uma racionalidade pura apta a dar todas as respostas antes das perguntas. Configurado para matar a charada por adivinhação, o Direito adquire uma função instrumental que desconhece os problemas reais.

Ocorre que todo o rodeio semântico positivista em voga esbarra naquilo que Gadamer[2] já assinalara acerca da fragilidade da noção de “mundo em si”. Movendo-nos no interior da linguagem, nunca alcançaremos algo que não outro aspecto ou acepção cada vez mais amplos. Estando o acontecimento operante na própria realização da compreensão, a verdade não é questão de método e nem se reduz a conceitos. Vinculados a um ponto de vista, a compreensão e o horizonte de possibilidade da interpretação se dão a partir desse acontecer. Daí a importância da tomada de consciência da situação hermenêutica em que estamos inseridos.

Por sermos seres fundamentalmente históricos, a existência humana se revela exatamente na dinâmica da compreensão. Dada a infinitude da experiência humana do mundo, o sentido que conferimos às coisas não passam de projetos. Dito de outro modo, não há como abarcar o mundo todo em fórmulas vazias, e nem aceder à essência das coisas, tal qual pregado pelo positivismo. Enfim, todo saber constitui um acontecimento não acabado – e que, portanto, submete-se a novos juízos a cada instante.

Nesse sentido, a busca pelo sentido do princípio da legalidade não se resume a uma atividade descritiva de eventos históricos. Concordamos com Heidegger[3] que afirma a necessidade de estabelecermos um diálogo para onde a tradição livremente nos remete. Pôr-se à disposição desse caminho pavimentado envolve um juízo reflexivo de apropriação e transformação daquilo que nos foi transmitido, a fim de escutarmos o que o estranho tem a nos dizer. Dessa dinâmica, Gadamer afirma que toda a nossa possibilidade de ser se concretiza nesse projetar-se, tendo em vista que fazemos história por sermos históricos. Da relação entre facticidade e historicidade, a própria existência se realiza compreensivamente, uma vez “operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro”.

Mesmo sem transitar dentro da tradição hermenêutica, Ronald Dworkin não se afasta da ideia de que a interpretação somente alcança êxito quando melhor realiza o objetivo adequadamente atribuído à prática pertinente[4]. Submetendo o Direito ao plano fenomênico, a correta aplicação dos conceitos depende da melhor justificativa do papel que eles desempenham para nós. A unidade de significação, portanto, não se resolve sem um aspecto da pragmática, isto é, daquilo que o sentido representa ou está implicado, bem como o modo como é usado no seio de um contínuo horizonte histórico.

Poucos se lembram, mas o imposto sobre a renda é um tributo relativamente recente. Entremeio a uma sociedade escravagista, sofreu forte oposição das elites, sob a alegação de que ofendia o direito à livre iniciativa e à propriedade. Somente a partir do século XX, consolidou-se como sendo um tributo vocacionado a promover a justiça fiscal, sendo, hoje, a principal fonte de arrecadação dos países desenvolvidos.

Outra transformação na percepção sobre o fenômeno da tributação se viu no caso do “state tax” (equivalente ao ITCMD) nos EUA. De forma expressa, consta do boletim de estatísticas da Internal Reserve Service – IRS[5] (equivalente à Receita Federal) que o tributo passou a objetivar a redistribuição de riqueza, e não mais sua função primitiva de financiamento de guerras.

Sendo a história um horizonte de acontecimento, toda objetividade e transparência apregoadas pelo princípio da legalidade só ganha verdadeira consistência sob a perspectiva da experiência linguística, dentro do plano da facticidade e historicidade. Uma compreensão hermeneuticamente educada requer a consciência de que sobre ela atua os efeitos da história, pressupondo que sempre falamos dentro de alguma situação tradicional em diálogo com o presente. Assim, a hermenêutica abrange a totalidade que a dogmática não consegue abraçar, em busca pela unidade significativa estabelecida em um horizonte histórico onde o novo vem intermediado pelo sempre atuante passado.

Diante disso, a “coisa tributária” não deve se alojar a uma determinada perspectiva, confundindo-se necessariamente com um fenômeno atrelado ao “poder de destruir” (the power to destroy)[6]. Quem pensa, interpreta ou fala assim, está olhando, vendo ou ouvindo a si mesmo. Afinal de contas, todo compreender acaba sendo um compreender-se[7]. Dito de outro modo, quem se recolhe e se fecha na exclusividade da sua vivência e história, fecha os ouvidos e desvia o olhar de todo o resto. Reminiscências, portanto, não nos aprisionam ao passado, apenas carregam consigo nosso destino.

 

Notas e Referências

[1] ASSIS, Machado. Cantiga de Esponsais. In: Contos Escolhidos. São Paulo: Martins Claret, 2012, p.31-35.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

[3] HEIDEGGER, Martin. Que é isto a filosofia?. Trad. Ernildo Stein.1.ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

[4] A raposa e porco-espinho: Justiça e Valor. Tradução por Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

[5] https://www.irs.gov/pub/irs-soi/84rpfallbul.pdf.

[6] Explicito como a questão vem sendo tratada no âmbito do STF no artigo intitulado “O caso Mcculloch v. Maryland e o caso do ICMS na base de cálculo da PIS/COFINS (RE 574.706/PR): o que o Chief Justice Marshall diria?”. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-caso-mcculloch-v-maryland-e-o-caso-do-icms-na-base-de-calculo-da-pis-cofins-re-574-706-pr-o-que-o-chief-justice-marshall-diria.

[7] GADAMER, op. cit., p.394.

 

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