O lançamento do Vade Mecum “feminino” e a banal reprodução do machismo

25/02/2016

Por Marcelli Cipriani – 25/02/2016

Nos últimos dias, uma conhecida escola e editora jurídica brasileira lançou a nova edição de seus Vade Mecum – o famoso livro que acompanha qualquer estudante de Direito, assim como segue sendo utilizado por advogadas e advogados, já que agrega textos legais genéricos, legislações específicas, ou ambos. As versões para 2016, apresentadas por seu design “arrojado, mais prático e atrativo” conta, em especial, com uma exclusiva coleção de capas personalizadas. Ambas são destinadas às mulheres, consoante se pode apreender do marketing lançado em redes sociais pela empresa, e são vendidas em duas variações: uma, ocupada por flores rosa-choque; a outra, por flores de cores e formatos variados, com fundo em verde-água. Um das publicações que as divulga traz, também, um gif composto por mulheres gritando de alegria e satisfatoriamente surpresas com a “nova linha de capas femininas” e, ainda, com a “#asmulherespiram”.

O movimento feminista contemporâneo, diferentemente de sua expressão original – especialmente constituída por mulheres brancas e de classe média, assim como por demandas que refletissem essa amostra em particular – constitui-se como múltiplos discursos dotados de variadas tendências (NARVAZ e KOLLER, 2006), calcadas em pressupostos teóricos e em estratégias de resistência igualmente diferenciados. Entretanto, se há bases comuns nessa amálgama de perspectivas sobre as relações socialmente assimétricas entre homens e mulheres – e elas existem – uma das mais explícitas é o fato de que ser mulher, em sociedades que se ergueram imersas no patriarcalismo, não configura algo natural, determinado biologicamente ou aclarado por explanações de nível espiritual.

Para além de diferenças cromossômicas e genitais que tradicionalmente chamamos de “sexo” (categoria que, parte do movimento entende como algo dado, materialidade da qual partem os forjados papéis de gênero, enquanto outros de seus espectros compreendem como esfera igualmente construída socialmente, posto que apenas adquire significado coletivo a partir de determinações de gênero), é senso comum entre as diferentes vertentes do feminismo que não é do corpo físico, em si mesmo, que surgem o desprestígio da mulher em algumas áreas de conhecimento, a reduzida representação feminina na política institucional, os assédios cotidianos ou os delitos de ódio.

É a existência desse processo de significação, dessa elaboração feita pelo conjunto civilizatório e reproduzida indefinidamente como algo neutro, que Simone de Beauvoir já tentava demonstrar no final da década de 1940, ao publicar o primeiro dos ainda atuais volumes de “O Segundo Sexo”. De acordo com a autora, “a mulher não se define nem por seus hormônios nem por misteriosos instintos, e sim pela maneira que reassume, através de consciências estranhas, o seu corpo e a sua relação com o mundo” (BEAUVOIR, 1980, p. 494). Nesse sentido, o feminino seria produto de um conjunto de pressupostos que tomam a mulher como “Outro” a partir de sua relação com o homem, e que intervém em seu destino de forma a levar a um determinado resultado:  “[...] esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (BEAUVOIR, 1980, p. 09).

Semelhante é o que defende, já em 1986, Joan Scott, ao colocar a necessidade de interpretarmos o gênero como produto da atividade humana, desde uma matriz histórica, como “um elemento constitutivo de relações baseadas nas diferenças percebidas entre sexos” (SCOTT, 1995, p. 86) e, mais do que isso, “uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). O que a historiadora quer demonstrar com tais assertivas é, por um lado, o caráter fundamentalmente social de distinções que se calcam em corpos sexuados e, por outro, o aspecto relacional que existe entre estes – do que decorre a pressuposição de um feixe de comportamentos, gostos, práticas, aptidões e demais variáveis a partir do que se toma como homens e mulheres. Perpassando relações de poder, essa gama alocada como “feminina” ou “masculina” permeia instituições, normas, posições e redes de significados que compõem as vidas de todas as pessoas que convivem em uma mesma sociedade.

Quando Judith Butler afirma, mais recentemente, que a generificação se dá através da norma e que a produção de gênero se faz pelo discurso performático, ela igualmente parte de um substrato extrínseco ao sujeito: está a afirmar que, em uma sociedade binária (sistema de gênero no qual a matriz heterossexual é assegurada e compulsoriamente colocada a partir de apenas dois sexos, coerentes, desconectados e opostos) é a repetição de atos, gestos e signos culturais que determinam a construção dos corpos masculinos e femininos como nós os encaramos socialmente (BUTLER, 2012). Portanto, nesses contextos de binarismo, para que uma pessoa seja vista como mulher ou homem, ela precisa reiteradamente se expressar em consonância com aquilo que se toma, pela coletividade, como feminino ou masculino.

Pode-se perceber, em face disso, que a despeito das diferentes possibilidades de se encarar o feminismo, ele tem como lugar comum o afastamento da feminilidade como algo anterior ao manejo humano e existente apesar deste. Dessa informação, por sua vez, é que se questiona e se recusa a imposição (ou mesmo a sugestão) de comportamentos como, por essência, femininos, e se percebe que, por exemplo, meninas deverem brincar de casinha, de panelinhas ou de comidinhas, enquanto meninos ganharem carrinhos, espadas e bonecos de super-heróis; enxovais para bebês serem – a partir do resultado de ecografias – definidos como rosa ou azul; mulheres, desde cedo, serem ornamentadas com saias em tons pastel, estampas floridas e laços no cabelo, enquanto meninos são vestidos com calças, bermudas e camisas são, todos, construções culturais que reforçam estereótipos de gênero: os jogos infantis que marcam quais serão os espaços sociais de cada um por excelência, as cores que recuperam o dócil ou o assertivo, as roupas que restringem ou não os movimentos (como precisamos no sentar, como temos que portar-nos, dentre outros).

Em tal âmbito, ao definir que seus produtos personalizados em rosa-choque e florais em colorido-pastéis são “a nova linha de capas femininas”, a escola e editora em questão apenas reforça o que já vêm sendo feito desde há muito: a redução do que é ou não é tipicamente feminino, como algo que se distancia do que poderia, também, ser masculino. Não existem, no entanto, capas femininas em azul, verde ou amarelo. Não existem, ademais, opções para ambos os gêneros, porque quanto a esta basta a estética original, em cores e em formatos “neutros”. Não existem, também, alternativas “masculinas”, porque o coquetismo distancia-se, de plano, do que é másculo. Para as mulheres, entretanto, a vida profissional e o mundo público permanece imbricados em uma contradição que precisa ser sanada: quando a mulher adentra o espaço que nunca foi seu, “tornam-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma mulher, que não perca sua feminilidade” (BEAUVOIR, 1980, p. 23) (grifos da autora).

É nessas dinâmicas que se colocam como invisíveis, nesses ínfimos detalhes que soam como inofensivos, que a grande figura daquilo que somos (ou do que devemos ser) é articulada e reafirmada. Não pelas grandes violências que transbordam a radicalização da misoginia, ou pelos atos explícitos de discriminação – por óbvio, muito mais graves, mas consequências de um processo que se dá em sentidos simbólicos e de significados, em micro-relações que, agindo em frentes das mais inúmeras, compõem o quebra-cabeças do “ser mulher” fixo, estável e imutável. É por esse motivo que, apesar da urgência de o movimento feminista atuar em esferas estruturais e iminentes, ele também precisa se ocupar da denúncia e da refuta ao que parece irrelevante.

As pequenas opressões do dia a dia, em última instância, legitimam outras, que implicam largo alcance ou dano evidente. A banalização do machismo, especialmente em estratos que se colocam como progressistas e contrários ao mesmo, se insere pelas frestas interpretadas como “bobagens”. E, daí pra frente, já bem sabemos no que desembocam: a crítica ao “politicamente correto” e a afirmação de que as mulheres estão sendo, sempre, exageradas (como ocorre com negros e negras que denunciam o racismo ou com homossexuais que denunciam a homofobia e a lesbofobia, por exemplo). Entretanto, como bem coloca a marca, #asmulherespiram, de fato e com toda a razão. Lamentavelmente, não por termos um documento exatamente igual a todos os outros, mas que foi feito especialmente “para nós” ao reafirmar o que, insistentemente, nos esforçamos para mostrar que não é (nem nunca foi), coisa “de mulher”.


Notas e Referências:

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando pesquisa, clínica e política. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 647-654, set./dez. 2006. Disponível em:

< http://www.scielo.br/pdf/pe/v11n3/v11n3a20.pdf>. Acesso em 12 fev. 2016.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n.2, p. 71-99, jul./dez. 1995. (versão revisada do texto original, que data do ano de 1986).

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.


Marcelli CiprianiMarcelli Cipriani é Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC – PUCRS), e do Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Feminismos (GP-GSFem – PUCRS); bolsista de Iniciação Científica do Grupo de Pesquisa Prismas do Direito Civil-Constitucional (PRISMAS – PUCRS).


Imagem Ilustrativa do Post: 152.MXPDDC.Upper.MeridianHill.WDC.12August2012 // Foto de: Elvert Barnes // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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