Por Samuel Mânica Radaelli – 18/04/2016
“um golpe na garganta e um tiro no coração” (Ter ou Ter, Belchior)
Onde anda o tipo afoito Que em 1-9-6-8 Queria tomar o poder? Hoje, rei da vaselina, Correu de carrão pra China, Só toma mesmo aspirina E já não quer nem saber.
Flower power! Que conquista! Mas eis que chegou o florista Cobrou a conta e sumiu Amor, coisa de amadores Vou seguir-te aonde f(l)ores! Vamos lá, ex-sonhadores, À mamãe que nos pariu! (os profissionais, Belchior)
Quando interpelado sobre o escândalo nominado como “mensalão” que começava a ser revelado, o então Ministro da Casa–Civil José Dirceu respondeu com outra pergunta: “qual governo no Brasil manteve-se sem a maioria parlamentar?” Alimentando o questionamento suscitado a época, o julgamento da Chefe do Executivo pelo Legislativo ocorre tendo como um dos fundamentos o combate à corrupção, alavancado por políticos com um longo histórico de graves denúncias. Tal processo judicial e/ou político ocorre em um contexto no qual o argumento das “instituições fortes” surge reiteradamente, em alguns casos dá carona ao apelo por autonomia, feito desde instituições em que seus membros sofrem, em razão terem poderes curtos diante da extensão do “bem” que ambicionam realizar.
No referido julgamento o conceito de crime de responsabilidade é dilatado para incluir “pedaladas fiscais” e outros tipos penais inéditos (“estelionato eleitoral”, “crise econômica”, e até “conjunto da obra”), mas restringe, casuisticamente, a sua aplicação às “pedaladas” específicas de uma determinada Chefa do Executivo, excluídos os chefes do Executivo Federal anteriores, ou mesmo Chefes do Executivo Estadual atuais incorrentes nesta prática. Dentre o conjunto fundamentador esta a imparcialidade, força e isenção das instituições que se fortalecem, 28 anos depois da superação do ocaso democrático causado por um golpe militar, sendo refeita a ordem democrática por meio da Constituição.
A compreensão de que a Constituição é um “marco zero” na vida política e social de um país, funciona como um simulacro, pois dá a ilusão de que a ordem política foi refeita, operando-se a refundação do estado e da política, que a partir de então passariam a funcionar de forma completamente diversa ao antigo regime (“Constituição como Simulacro” de Luiz Moreira). Em razão disso, crer que o novo texto constitucional opera uma guinada funcional e política, feita sem o questionamento das suas práticas antigas, tende a ocultar a continuidade destas práticas.
O “neogolpismo” assim se configura por revestir-se de uma aparente legalidade, por meio de interpretações cínicas da legislação, perpetradas por instituições inábeis na defesa da democracia, pois historicamente conviveram com arbítrio. Tal evento não se dissocia das práticas de messianismo e caudilhismo judicial, em que a lei e a razão jurídica são preteridas em nome da “luta do bem contra o mal” e a “salvação nacional”, para as quais, mais conveniente é o alvitre de quem julga.
O “Golpe Branco” sintetiza a velha prática de usurpação do poder, operada por forças que se arrogam falar e agir pelo povo, agora agindo com verniz institucional-constitucional. As instituições, embora o esforço renovador inaugurado em 1988 pela Constituição, também mantiveram vínculos subjetivos com o período de exceção, seja pela atuação de agentes oriundos deste período, seja pela racionalidade repetida indiferente a certos fundamentos da Nova República.
A convicção de que o Judiciário e o Ministério Público permanecem imaculados ante a corrupção que domina o Legislativo e o Executivo, permite que seus membros se arroguem uma função messiânica, para além das atribuições dispostas na Constituição e na lei. Crença revelada perigosa, a julgar pelo caso do Promotor-deputado, cuja a vida política depende da presunção de inocência por ele tão combatida, preceito jurídico esse invocado universalmente mas aplicado seletivamente.
Atualizada por métodos muito mais elegantes, a velha prática latino-americana e sul-mundial do golpe de estado, renova também o caudilhismo, agora ele passa a ocorrer pela via Judicial, por meio de julgamentos plebiscitários, espetacularizados em novas e velhas mídias. Se Gumercindo Saraiva disse “o governo é minha espada”, agora é parafraseado por ilustres magistrados: “a constituição é a minha pena”. Assim evoluímos no mesmo.
. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina – GEDIS. Email: radaelliadvocacia@yahoo.com.br. .
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