Seguindo as normas constitucionais a partir da admissibilidade do impeachment no Senado e com o afastamento da Presidenta Dilma Rousseff, o vice-presidente Michel Temer assume interinamente por até 180 dias enquanto se dá seguimento ao processo. Situação normal e legalmente prevista no direito brasileiro, senão estivéssemos falando de um golpe institucional, arquitetado pelo vice-presidente.
Há algumas questões sobre esse novo governo que nasce no dia 12 de maio de 2016, interino ou, até, um futuro governo definitivo, que precisam ser destacadas. Primeiramente, é preciso lembrar que Temer foi eleito em uma chapa e com um certo programa de governo que foi apresentado ao escrutínio popular e que tal chapa e tal programa é que foram vencedores em outubro de 2014.
Quando houve o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello por crime comprovadamente de responsabilidade o então vice-presidente Itamar Franco, que, ressalte-se, não arquitetou a queda, ao assumir manteve, em linhas gerais, o direcionamento da política que já estava sendo feita e eleita: estabilização da moeda, combate à inflação e redução do tamanho do Estado. Esse havia sido o projeto submetido às urnas e que venceu as eleições.
No entanto, quando vemos que o novo governo e seu partido, desde 29 de outubro de 2015, estão anunciando um outro projeto, nominado de Uma Ponte para o Futuro[1] em direção oposta ao que foi escolhido nas urnas, há aí um problema de legitimidade que viola os preceitos democráticos: o mandato popular não é uma carta em branco e qualquer democracia minimamente consolidada exige que planos e propostas passem pelo crivo do voto.
Todavia, para o novo presidente, o mandato é sim uma carta em branco que nasce de sua vontade e do seu partido já que, anteriormente à sua posse, algo estranho e intrigante, através de uma propaganda eleitoral do PMDB, veiculado ano passado em rede nacional, apresentaram à sociedade um novo projeto totalmente distinto do referendado nas últimas eleições e, recentemente, passou a criticar de forma incisiva o projeto vitorioso nas urnas. Importante destacar que, somado ao projeto que anunciava a “traição” do PMDB, existe a tal carta[2], um tanto estranha, escrita por Temer, que, segundo o atual “presidente não eleito”, vazou e, ali, já se anunciava o “golpe” e na qual joga a culpa à presidenta dizendo:
“[..] sei que a senhora não tem confiança em mim e no PMDB, hoje, e não terá amanhã. Lamento, mas esta é a minha convicção.” [3]
Por tais elementos, pode-se afirmar tranquilamente que o mandato e o projeto de governo são ilegítimos e nascem de uma conspiração. Mudanças tão radicais das propostas apresentadas nas eleições de 2014 exigem, no mínimo, sua submissão à escolha popular pelo voto direto, secreto e universal e, não, através de um “golpe” arquitetado. Mas, a história comprova que o PMDB jamais conseguiu eleger um presidente. Sempre chegou ao poder através do vice-presidente – Sarney, Itamar e Temer –, sendo este último o único que planejou sua posse e golpeou a democracia.
Ademais, o atual projeto – Uma Ponte para o Futuro – até tenta encontrar legitimidade através de afirmações genéricas e falaciosas, como: “Todas as iniciativas aqui expostas constituem uma necessidade, e quase um consenso, no país.” [4]
Mas são frases sem efeito e, principalmente, sem votos. De onde retiraram tal consenso se não apresentaram esse projeto à população? Por quem e como ele foi escrito? Esse projeto surge do povo ou da (e para) uma elite? O projeto eleito foi o da presidenta Dilma Rousseff, todo o resto viola, nega e rompe com a soberania popular.
Ora, muito do que ali está colocado e se apresenta claramente no projeto, diz respeito a “reformas estruturais” [5] já foi objeto de consulta popular e, pelo menos na última década, a sociedade brasileira rejeitou nas urnas. Impor isso agora viola a soberania popular (art. 1o, Parágrafo Único da Constituição).
A violação à soberania popular é claramente visível, ainda, e principalmente, por substituir as prioridades sociais do governo Dilma ao setor privado. Na visão do novo governo “o Estado deve ser funcional” e, para atingir, tal funcionalidade “[...] deve distribuir os incentivos corretos para a iniciativa privada e administrar de modo racional e equilibrado os conflitos distributivos que proliferam no interior de qualquer sociedade.” Notem que, primeiro, vão atender o setor privado, logo após, “[...] os conflitos distributivos que proliferam no interior de qualquer sociedade”. [6] Será que estão se referindo-se a questões sociais como conflitos distributivos que proliferam em qualquer sociedade? Se sim, fica claro como vão tratar o social nesse governo ilegítimo.
Outra grave e pungente preocupação no projeto Temer e do seu partido é que, para enfrentarem as dificuldades vividas pelo país terão de “[...] mudar leis e até mesmo normas constitucionais [...]”.[7] Será que um projeto de governo que se propõe a mudar leis e as normas constitucionais, sem ao menos consultar a sociedade – já que não apresentam a possibilidade de consulta popular – teria sido eleito?
Lá há referência a “mudar as normas constitucionais”, pois que sem tal ação “[...] a crise fiscal voltará sempre, e cada vez mais intratável, até chegarmos finalmente a uma espécie de colapso” [8] Será que são as normas constitucionais que levam o país a uma espécie de colapso? Claro que não! Mas, não podemos dizer o mesmo de um partido com maior representatividade nas duas casas parlamentares –PMDB – que se elege propondo uma política e resolver mudar da noite para o dia aliando-se aos seus opositores da última eleição, em destaque o PSDB.
Indo ao encontro de tantas mudanças antidemocráticas e fora das urnas descrevem que vão acabar com “[...] as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação”.[9]
É inquestionável que a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula foram reeleitos em grande parte, por terem criado programas como FIES, PROUNI, PRONATEC e Mais Médicos e terem edificado mais de vinte universidades federais e centenas de institutos técnicos federais nunca antes existentes neste país. Será que um governo que pretende desvincular e diminuir investimento em educação e saúde teria o apoio do povo ao ponto de ser eleito?
Importante destacar que o projeto do governo Temer, eleito pela vontade de uma parcela expressiva da Câmara dos Deputados Federais e do Senado, fala no “[...] fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais”. [10] e, propondo mais cortes, afirma que “[...] a cada ano todos os programas estatais serão avaliados por um comitê independente, que poderá sugerir a continuação ou o fim do programa, de acordo com os seus custos e benefícios”. [11] Será que no Nordeste, região afetada positivamente pelas políticas públicas e parcela expressiva dos que saíram da linha da pobreza, representados por números consideráveis de eleitores, elegeriam um presidente que busca apresentar cortes que os afetarão imediatamente? Apenas um governo fora das urnas poderia propor tantos retrocessos sociais de forma autoritária.
Como não destacar o retrocesso à violação do direito humano à aposentadoria que o antidemocrático projeto sustenta: por vivermos mais, “[...] as regras devem se adaptar aos novos tempos”. [12] e, consecutivamente, “[...] as idades mínimas passaram de 60 anos para 65 e até 67”[13] para aposentadoria. Ora, como um governo nascido fora da transparência de projeto ao povo pode vilipendiar o ser humano idoso sem nem dialogar com o mesmo.
Por fim, numa leitura atenta ao folhetim e para ponderar o que é importante no projeto deles, os homens, brancos, cristãos, heterossexuais, urbanos e ricos, sobressaem as seguintes informações: as palavras “mercado” e “setor privado”, são descritas mais de 18 vezes; “trabalho” é citado apenas para anunciar o retrocesso dos Direitos Trabalhistas; “mulher” é colocada uma única vez para tentar explicar alterações na previdência; Palavras como “criança, idoso, indígena, negro, deficientes, comunidade LGBT” não existem literalmente; a palavra “direito” aparece seis vezes e “dívida” quinze vezes.
Em segundo lugar, é preciso repensar nossas instituições: não pode ser tido como legítimo o vice em uma chapa (junto com seu partido) conspirar contra o titular. Como é possível que um dos membros de uma chapa milite contra o outro e se alie com a oposição? Esta, por sua vez, que tem um papel muito importante em qualquer democracia – que é fazer o contraponto à situação –, ao invés de exercer seu papel, vem atuando, desde o final do 2o turno da última eleição presidencial para inviabilizar o governo dentro do Congresso Nacional e fora dele, criando/fomentando questões no sentido da deposição da presidenta. Certo que, apesar disso, a oposição não teria conseguido obter seu intento se não fosse o PMDB, partido da base do governo e de um dos membros da Chapa eleita, não tivesse se “debandado” do governo com o objetivo de retirar, pelo golpe, a presidenta.
Ademais, o tal projeto subestima a capacidade intelectiva de qualquer cidadão brasileiro e, quem sabe, até dos seus escritores, pois, no projeto, consta que “O Brasil encontra-se em uma situação de grave risco. Após alguns anos de queda da taxa de crescimento, chegamos à profunda recessão que se iniciou em 2014 e deve continuar em 2016”. [14] Mas à frente afirma: “Nossa crise é grave e tem muitas causas”. [15]
Se já sabiam que o país estava em estado de risco e crise grave por que Michel Temer e seu partido colocaram-se à reeleição com uma presidenta que, segundo os subscritores, levou o Brasil a tal risco e crise? Por que o PMDB sitiou o governo com ministérios e cargos no governo da Dilma? Por que o PMDB só deixa o governo duas semanas antes do processo de impeachment ser votado na Câmara dos Deputados? Se o Brasil está em “grave risco”, como descreve o PMDB, teria moral para se isentar da culpa, tendo loteado o primeiro e segundo mandatos de quem hoje golpeia?
Há algo de muito problemático em um sistema político no qual os partidos, ao se coligarem, não têm qualquer obrigação de agir em conjunto por um mesmo projeto; ou que a perda de popularidade leve à queda de um presidente – não estamos no parlamentarismo –, de tal sorte que, havendo ou não “crime de responsabilidade”, isso é o que, ao fim e ao cabo, menos importa: um presidente que (man)tiver maioria no Congresso poderá cometer qualquer um dos crimes da lei 1079/50 que não sofrerá impeachment; ao revés, um presidente que, eventualmente, não tenha cometido qualquer ilícito, poderá ser afastado por simples vontade do Congresso.
A ilegitimidade política do governo Temer ainda possui um outro viés: é que se noticia que membros de partidos de oposição, derrotados nas eleições, farão parte daquele. Mais uma vez burla-se a vontade popular que havia optado por um e não por outro projeto.
Destarte, tal projeto não busca “[...]obedecer as instituições do Estado democrático, seguindo estritamente as leis e resguardando a ordem” e, sequer, nenhum tipo de união dos “brasileiros de boa vontade”, em busca “da paz, da harmonia e da esperança” como cita o panfleto, já que é ilegítimo e nasce de um golpe que afetará ainda mais a vida da sociedade brasileira.
Portanto, cada cidade, deste país, terá homens e mulheres defensores da democracia em seu conceito mais plural, lutando do primeiro ao último dia deste governo, que será curto, já que é um projeto nascido de um golpe às beiras do Estado de exceção.
Notas e Referências:
[1] Disponível em: <http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf> acessado em 01/05/2016
[2] Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/12/leia-integra-da-carta-enviada-pelo-vice-michel-temer-dilma.html> acessado em 01/05/2016
[3] Idem
[4] Uma Ponte para o futuro. p. 4. Disponível em: <http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf> acessado em: 02/05/2016
[5] Ibidem, p.3.
[6] Ibidem, p. 4.
[7] Ibidem, p. 5.
[8] Ibidem, p. 6.
[9] Ibidem, p. 9.
[10] Ibidem, p. 10.
[11] Idem.
[12] Ibidem, p. 13.
[13] Idem.
[14] Idem, p. 3.
[15] Idem, p. 5.
Imagem Ilustrativa do Post: Michel Temer // Foto de: Michel Temer // Sem alterações
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