O Game of Thrones do Processo Penal – Episódio 1: audiência de custódia

01/08/2016

Por Bianca Bez - 01/08/2016

Audiência de custódia. Três conduzidos em flagrante pela suposta prática do crime de furto qualificado pelo concurso de agentes. Algemados, sem que houvesse qualquer justificava no que concerne à Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal ou, ainda, em relação ao disposto no inciso II do artigo 8o da Resolução n. 213 do CNJ, inicia-se a solenidade.

Os três conduzidos são postos sentados, lado a lado, em frente ao Magistrado, ao Promotor de Justiça e ao Defensor Público. O passo seguinte, conforme comandam as Resoluções n. 213 e 214 do CNJ, seria proceder à análise da legalidade da prisão em flagrante, ressalvar aos conduzidos o direito de permanecerem em silêncio, indagar sobre as circunstâncias da prisão, bem como acerca da ocorrência de tortura e de maus tratos.

Apesar da claridade contida nas aludidas resoluções, as quais, como uma mãe, ensinam o passo a passo de como deve ser realizada a tarefa, leia-se, a audiência de custódia, o que se vê, logo em seguida, é uma verdadeira audiência de instrução e julgamento, mas sem denúncia, sem recebimento da peça acusatória, sem citação, sem resposta prévia, e, ainda pior, com a realização de um interrogatório coletivo entre os três conduzidos.

Regras do jogo devidamente burladas, segue-se para a derradeira pergunta: “você sofreu algum tipo de tortura ou maus tratos?” Todos respondem que sim, “apanharam muito”, um deles já com as algemas devidamente colocadas. Ainda para quem quiser ver, os três “Theon Greyjoy”, cativos de vários Ramsay Bolton’s - mostram as marcas das porradas sofridas (vide Game Of Thrones).

“Eles merecem”, muitos dirão! Subjetivamente, talvez, de fato, merecessem, como um pai que desejaria matar o estuprador de sua filha.

Porém, regra é regra, e o artigo 11 da Resolução n. 213 do CNJ é claro ao dispor que, “havendo declaração da pessoa presa em flagrante delito de que foi vítima de tortura e maus tratos ou entendimento da autoridade judicial de que há indícios da prática de tortura, será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado.”

A pergunta que se segue - e que é a mais chocante, na humilde opinião de quem apenas ouviu essa audiência - é a seguinte: “mas você, caro ‘Theon Greyjoy’, DESEJA REPRESENTAR contra o seu agressor?” Todos advertidos de que deverão identificar o(s) ofensor(es), respondem um sonoro “não”, por temerem, quando estiverem andando novamente pelas ruas, serem “apanhados” e acabarem parando nas mãos dos assustadores Ramsay Bolton’s.

Além do desrespeito às regras contidas nas mencionadas resoluções do CNJ, parece-me que a natureza do delito de tortura também mudou, deixou de ser pública incondicionada e passou a ser condicionada à representação do ofendido - como se fosse uma atividade hercúlea folhear, posteriormente, o auto de prisão em flagrante para descobrir e identificar os possíveis Bolton’s, dando início a uma decente investigação.

Paradoxalmente, para não dizer “engraçado”, invertendo-se a situação, mesmo sem nenhuma comprovação material, como um exame de corpo de delito, apenas com a palavra do agente público, não se pensa duas vezes em denunciar por desacato o conduzido que, por exemplo, agride um Ramsay Bolton.

Reflexões à tona, bom senso no fundo do poço, resta acreditar que aqueles que representam as “autoridades” ou os “donos do trono de ferro” passem a seguir, minimamente, as regras postas e que elas sirvam a todos, na medida de suas diferenças. Ou, ainda, podemos simplesmente aguardar a chegada da Daenerys Targaryen, a Nascida da Tormenta, com seus três dragões, e torcer para que ela consiga “libertar” não apenas os Greyjoy’s e os Bolton's, mas todos nós.


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Bianca Bez. Bianca Bez é graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduanda em Direito Público pela Damásio Educacional. Assistente de Procuradoria de Justiça Criminal no Ministério Público do Estado de Santa Catarina. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Lock // Foto de: Omer Unlu // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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