O Estado Islâmico, como diria Caetano Veloso, é aqui

29/01/2016

Por Rômulo de Andrade Moreira – 29/01/2016

Soube que este caso (verídico) ocorreu no final do ano passado em uma das cidades ocupadas pelo Estado Islâmico, bem longe daqui, portanto. Logo, qualquer semelhança com fatos reais terá sido uma mera coincidência, como se costuma dizer nas obras de ficção. Vamos aos fatos.

Lá, no Estado Islâmico, para quem não sabe, também tem Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário, com funções, respectivamente, investigatórias, acusatórias e jurisdicionais. Não é bem o Sistema Acusatório, pois o Juiz de lá tem atividades persecutórias e tem em mãos a gestão da prova, exatamente como aqui. Também por lá, de vez em quando, são formadas Forças-Tarefas (sempre com nomes estrambóticos) para a investigação de determinados crimes supostamente praticados por organizações criminosas. Reúne-se, então, um grupo de membros do Ministério Público e da Polícia e são iniciadas as apurações, tudo com o auxílio luxuoso da Magistratura.

E assim ocorreu neste caso que um amigo contou a mim. Eram crimes relacionados com fraudes em licitações públicas. Sim, alhures também são praticados crimes como tais, apenados, aliás, com a sanção de decapitação. Um horror! Por favor, não vamos copiar, nada a ver...

Durante as investigações, foi pedida à Justiça Criminal a quebra do sigilo telefônico dos investigados, em conformidade com a legislação local, muito parecida com a nossa. O Magistrado deferiu o pedido e os investigados passaram a ser monitorados em suas conversas telefônicas.

Ao final da apuração, a acusação já tinha elementos indiciários suficientes para formular a peça acusatória e apresentá-la à Justiça, bem como para pedir a prisão provisória dos acusados. E assim foi feito e deferido, tudo em conformidade com a lei deles. Mas, os investigadores, membros do Ministério Público e da Polícia, lá do Estado Islâmico, não estavam satisfeitos. Eles queriam enxovalhar! Como a lei proibia a exibição das conversas obtidas por meio das interceptações telefônicas, salvo autorização judicial, exigindo o sigilo e criminalizando a divulgação, requereram ao Juízo criminal, por meio de uma petição subscrita por todos os integrantes da Força-Tarefa – Delegados de Polícia e membros do Ministério Público -, a divulgação de determinados trechos dos áudios das conversas obtidas por meio das interceptações telefônicas.

O argumento que sustentava o requerimento era que, dando publicidade àquele material, a sociedade teria conhecimento da existência da organização criminosa e do seu modo de atuar, evitando-se, assim, a prática de novos delitos. Detalhe: os membros da tal organização criminosa já estavam presos provisoriamente. Conclusos os autos para a decisão, o Magistrado responsável pelo caso, em uma decisão muito singela (para não dizer sem nenhuma fundamentação – e a Constituição do Estado Islâmico exige que toda decisão judicial seja fundamentada, como a nossa), deferiu o pedido exatamente na forma como foi posto, invocando o interesse público na divulgação das conversas.

E, assim, foi feito: os trechos seletivamente selecionados pelos investigadores/acusadores foram disponibilizados, com pompa e circunstância, em coletiva de imprensa, sendo divulgada, inclusive, em papel com a logomarca do Ministério Público do Estado Islâmico.

O caso aqui contado ainda teve outro desdobramento: um dos fragmentos escolhidos pelos integrantes da Força-Tarefa para ser divulgado na imprensa, tido como relevante para fins de prevenção geral (só pode!), era um diálogo entre um dos investigados e sua mãe, que não tinha absolutamente nada que ver com qualquer atividade ilícita do seu filho.

Nesta conversa ele, deseducada, grosseira, impaciente e rispidamente, trava um diálogo com a sua mãe, chegando a xingá-la, além de usar termos chulos. Os investigadores entenderam importante a divulgação desta conversa, pois revelaria que o interlocutor parecia resolver as questões sempre pagando propina a servidores públicos (no caso, tratava-se de resolver um problema relacionado com a carteira de habilitação de um parente). Sim, lá no Estado Islâmico também se exige carteira de habilitação para dirigir veículo automotor, óbvio!

Ocorre que, quando a notícia da prisão saiu na imprensa e as transcrições das conversas foram divulgadas, um membro do Ministério Público, indignado, tido no Estado Islâmico como um “quinta-coluna”, dirigiu-se formalmente ao chefe do Ministério Público local pedindo providências, acreditando ter havido uma quebra de sigilo funcional. Só então foi ter conhecimento dos fatos tais como ocorreram e aqui revelados.

Lógico que o procedimento instaurado pela cúpula do Ministério Público islâmico foi arquivado. Não tinha havido, efetivamente, quebra do sigilo funcional. Tudo foi dentro da lei do Estado Islâmico. Os integrantes da Força-Tarefa agiram em conformidade com a legislação local, inclusive o Magistrado que deferiu a ordem.

Só não perguntaram à mãe do investigado o que ela achou da divulgação da sua conversa com o filho, quando foi, aos gritos, chamada de “imbecil”, “idiota”, “porra”, “caralho”... Como será que esta senhora leu na mídia a sua conversa com seu filho? Como deve ter sido encarar no dia seguinte seus amigos, seus pais, suas filhas, seu marido? Não poderiam ter, ao menos, omitido tais expressões? Será que lá, no Estado Islâmico, os integrantes do Ministério Público, da Polícia e da Magistratura têm mãe?

Ainda bem que estas coisas não acontecem aqui no Brasil, muito menos na Bahia, tampouco em Salvador. Viva!


Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS. .


Imagem Ilustrativa do Post: Bosque de piedra y ladrillo // Foto de: Beatriz Sirvent // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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