O Estado em Pierre Bourdieu

04/08/2017

Por Maurício Fontana Filho – 04/08/2017

Na concepção de Pierre Bourdieu (2016) o Estado teve sua origem formada pela ficção dos juristas, os quais, através do capital simbólico das palavras, o erigiram. As palavras, diz o autor, não apenas descrevem a realidade, mas a constroem, o que significa dizer que aquele que possui a última palavra será aquele que moldará a realidade conforme lhe apraz. A fala pomposa faz reis e rainhas, no sentido de que constrói a regra.

A instituição estatal é constituída pelo acúmulo progressivo de diferentes espécies de poder simbólico, tal qual o capital econômico, a força física, o capital simbólico, cultural e informacional, os quais circundam o poder central. A concentração de capitais pelo Estado torna possível a concentração de metacapitais, ou seja, capitais hierarquicamente superiores e aptos a controlar os capitais ordinários: o superpoder (BOURDIEU, 2016).

A circunstância de Estado é o meio pelo qual a casta detentora do poder político dita como o mundo social deve proceder e sob quais estruturas, isso porque, através da estruturação da ordem social, tanto objetiva quanto subjetiva, faz-se possível a disposição do tempo e recursos financeiros daqueles que vivem dentro das fronteiras de Estado. Determina como irão os homens pensar, sussurrando em seus ouvidos - vide Aldous Huxley (2004) - e como irão os homens se organizar, se adaptando ao contexto de Estado - vide George Orwell (1992).

Pensamos no Estado, vivemos no Estado, mas não sabemos onde ele está ou o que representa. Por exemplo, sabemos preencher um formulário; quando preencho um formulário administrativo – nome, sobrenome, data de nascimento -, eu compreendo o Estado. O Estado me dá ordens para as quais estou preparado, afinal, sei o que é o estado civil, uma identidade, já que tenho uma carteira de identidade; sei também que, numa carteira de identidade há certas propriedades que a tornam peculiares (BOURDIEU, 2016).

Quando preencho um formulário burocrático, que é uma grande invenção do Estado, quando preencho um pedido ou quando assino um certificado, e que tenho poder para fazê-lo, como uma ficha de identidade, um certificado médico ou uma certidão de nascimento compreendo o Estado. Isso faz do homem um homem de Estado, afinal, fora atingido pelas circunstâncias de Estado e, mesmo sem saber que diabos representa o Estado, tombamos em meio à nossa própria inaptidão: nos tornamos homens de Estado (BOURDIEU, 2016).

Se em René Descartes (2016), penso logo existo, em Bourdieu (2016), pensamos no Estado e logo ele existe, afinal, trata-se de um fantasma criado para colocar as pessoas juntas de maneira a fazê-las agir de um jeito que não fariam se não se encontrassem assim organizadas; é uma religião que limita tanto o espírito quando o corpo individual, isso porque molda o cidadão na mesma medida em que cobra uma taxa por sua existência.

A circunstância de Estado, desta maneira, condiciona o cidadão que, inconscientemente, vive sua vida sob o credo de uma liberdade ilusória, tornando-se homem de Estado por viver, crescer e inexoravelmente se submeter aos efeitos de Estado (BOURDIEU, 2016).

O capital simbólico de Bourdieu (2016) significa prestígio, um complemento de qualquer capital, no sentido de que se trata de um efeito subjetivo inerente ao capital comum. A força física age como poder de constrangimento, mas ao mesmo tempo tem um capital simbólico inerente a si, ou seja, de ameaça, de reconhecimento, de persuasão. A riqueza anda também acompanhada de um capital simbólico, o reconhecimento, o prestígio pela abundância. O capital cultural possui a mesma lógica: valorização. O reconhecimento pela eloquência ou inteligência, o respeito.

Assim, o capital simbólico nada mais é que as vestes da autoridade legítima; somos levados a sério apenas na medida em que dispomos de um capital simbólico, um capital subjetivo enraizado em outro capital material e mais palpável (BOURDIEU, 2016).

Por exemplo, o uso da figura de linguagem da prosopopeia. A camuflagem utilizada de maneira a ser levado a sério, uma linguagem oficial, trata-se de uma arma de Estado que objetiva receber aclamo social. A prosopopeia é uma figura de linguagem que consiste em falar no lugar de uma realidade ausente em nome de algo, podendo ser uma pessoa, os ancestrais, uma linhagem, um povo, uma opinião pública. Assim, a prosopopeia existe na medida em que se fala em nome de algo que não existe (BOURDIEU, 2016).

Na obra Reflexões sobre a revolução na França, Edmund Burke (2016) diz que o povo inglês sabe que (...), o povo inglês está convencido de que (...), fala como se fosse o porta-voz de uma imensidão de homens, do coletivo, como se inexistissem indivíduos distintos e singulares, limitando o homem inglês ao rótulo quantitativo de povo. As pesquisas estão do nosso lado, é outra prosopopeia muito utilizada em meio político: a arma do discurso oficial.

Diz-nos Bourdieu (2016, p.35) sobre o poder do Estado, inerente a ferramentas desprezíveis do dia-dia, mas invisíveis como detentoras de qualquer poder de dominação: 

Todo ano compramos um calendário, compramos algo óbvio, compramos um princípio de estruturação absolutamente fundamental, que é um dos fundamentos da existência social, e que faz, por exemplo, com que possamos marcar compromissos. Podemos fazer a mesma coisa para as horas do dia. É um consenso e não conheço anarquista que não acerte o relógio quando passamos ao horário de verão, que não aceite como sendo óbvio todo um conjunto de coisas que, em última análise, remetem ao poder do Estado [...]

O idioma é outro exemplo utilizado por Bourdieu (2016): quando o Estado constitui um idioma oficial, reduz outros idiomas a meros dialetos, o que significa dizer que as linguagens que não configuradas como oficiais são consideradas secundárias, de menor importância e legitimidade. Seria como se o Estado dissesse nós nos comunicamos assim, todos aqueles que fogem do padrão preestabelecido são selvagens (BOURDIEU, 2016).

Através do império da ordem simbólica objetiva e subjetiva o Estado faz admitir como algo óbvio um grande número de práticas e de instituições. Por exemplo, ele age de modo que não nos interroguemos sobre a noção de fronteira, sobre o fato de que na França se fala francês e na Inglaterra o inglês, e não outro idioma; sobre o absurdo da ortografia e sobre uma profusão de perguntas que poderiam ser feitas e não o são, e que são postas em suspenso, afinal, auto evidentes (BOURDIEU, 2016).

Quando lhe dizemos está um pouco frio, não acha? Você se dirige à janela, fechando-a. Trata-se de coerção subjetiva, isto é, há um operador à distância que, magicamente, dobra a vontade de um indivíduo de maneira a fazê-lo agir em antítese até mesmo a um valor terno a si (BOURDIEU, 2016).

O calendário é um exemplo de ordem subjetiva, isso porque harmoniza as experiências internas ao Estado ao impor submissão a um molde determinado. A ordem social repousa em um dever ser que é aceito pelo inconsciente, o qual impulsiona uma corrente de eventos. Tome como exemplo um jogador de futebol que realiza a todo o momento ações de pensamento subjetivo, mesmo quando desprovido do interesse de realizá-las: ele age por meio de atos de conhecimento corporal que são inerentes à sua função. A ordem social segue a mesma lógica, sendo movida por atos subjetivos infraconscientes que impulsionam o cidadão a agir e a perpetuar o sistema (BOURDIEU, 2016).


Notas e Referências:

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de France 1989-1992. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: Edipro, 2016.

DESCARTES, René. Discurso do método. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22.ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.

ORWELL, George. 1984. London: Everyman’s library, 1992.


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Maurício Fontana Filho. Maurício Fontana Filho é acadêmico do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, RS e bolsista Fapergs no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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