O estado de bem estar social e a inexistência de “empresa privada de interesse [exclusivamente] particular”

27/01/2016

Por José Muniz Neto - 27/01/2016

Há alguns dias me peguei lendo alguns textos sobre Direito Falimentar e cheguei a um do Prof. Jorge Lobo, o qual, dentre suas várias titulações, é Livre Docente pela UERJ. O artigo é intitulado “O Direito da Crise Econômica da Empresa”, que fora publicado na Revista da EMERJ, v. 1, n.3, 1998.

O artigo é relativamente curto, no qual o autor aborda os novos preceitos do Direito Empresarial brasileiro, a fim de se alcançar uma resposta às discussões que antecederam a elaboração da atual Lei nº. 11.101/05, que trata da Falência e da Recuperação de “Empresas”[1], pela recuperação ou liquidação empresarial em estado de crise (econômico-financeira ou de insolvabilidade). Além disso, o célebre professor propõe diversas maneiras de se estruturar o sistema jurídico falimentar e recuperacional em nosso país, diga-se de passagem com alternativas bem condizentes aos atuais ditames da contemporaneidade empresarial.

Não obstante a extensão da discussão travada por Lobo, limito-me à análise de uma divisão que foi feita por ele mesmo nas páginas iniciais de seu artigo (fls. 158-164). Adianto que não tratarei do mérito recuperacional ou liquidatório abordado pelo autor, mas tão somente à classificação de “empresas” feita por ele: “empresa privada de interesse particular”; “empresa privada de interesse público” e “empresa pública”.

Começarei por aquela sobre a qual não cabe o que se discutir (pelo menos em face do recorte metodológico desta produção textual), a Empresa Pública. Nas palavras de Bandeira de Mello (2013, p. 191): “Deve-se entender que empresa pública federal é a pessoa jurídica criada por força de autorização legal como instrumento de ação do Estado, dotada de personalidade de Direito Privado, mas submetida a certas regras especiais decorrentes de ser coadjuvante da ação governamental, constituída sob quaisquer das formas admitidas em Direito e cujo capital seja formado unicamente por recursos de pessoas de Direito Público interno ou de pessoas de suas Administrações indiretas, com predominância acionaria residente na esfera federal” (grifei). Aqui ainda incluiria as sociedades de economia mista, que apresentam o mesmo objetivo das empresas públicas enquanto instrumentos de ação estatal, todavia, para não alongar muito esta simples discussão, me limitarei a tratar das empresas públicas.

Como a própria conceituação de Bandeira de Mello nos induz, à empresa pública é inerente um papel social, haja vista que ela atua como materializador dos interesses do Estado, o qual, não é redundante afirmar, age em prol do interesse público de seus administrados. Quanto a tal papel social o prof. Jorge Lobo (1998, p. 162) é, inclusive, categórico ao afirmar que “admitir-se a falência da empresa pública é reconhecer a falência do Estado, além de pôr-se uma pá de cal em uma entidade criada por lei especial para atender aos mais diversos interesses coletivos e públicos”.

Entendido isso, passo à análise das outras duas divisões feitas por Lobo: empresa privada de interesse público e de interesse privado. Talvez alguns não tenham entendido o objeto de estudo deste artigo. Pois bem, o problema envolvido nesta pesquisa é: haveria uma “empresa privada de interesse [exclusivamente] privado”? Ou dividir a empresa privada com interesse público ou privado é mera ilusão do autor?

Nos estudos realizados para a elaboração de minha monografia me deparei em vários momentos com o princípio constitucional da função social da propriedade e, em especial, da “empresa”. De forma bem simples, esta função social nada mais é do que aliar aos interesses daqueles que deram forma e quem mantêm o empreendimento aos daqueles que direta ou indiretamente participam da atividade empresarial desenvolvida, entre eles os colaboradores, sócios, Estado-tributador, consumidores, empregados, e demais stake holders[2]. A “empresa” seria, então, um somatório de interesses e colaborações a fim de se atingir a prestação da atividade empresarial.

Nesta mesma linha, Rodrigues (2014, p. 11), ao fazer uma analogia à Teoria da Música, aponta que a “empresa” deve trabalhar os diversos interesses que sustenta por detrás de suas atividades de forma a dar a eles “ordem, equilíbrio e proporção”, através de sua combinação “simultânea e sucessiva”.

É com esta visão que se chega à crítica da divisão elaborada por Lobo. Segundo ele (1998, p. 158) “Deve-se entender por empresa privada de interesse particular a empresa, sob a forma de sociedade em nome coletivo ou de sociedade por cotas, de responsabilidade limitada ou de sociedade anônima, de interesse apenas local ou, até mesmo, regional, com reduzido número de sócios ou acionistas e de empregados, com pequeno ou médio faturamento, que desenvolva uma atividade econômica trivial” (grifei).

Já a empresa privada de interesse público é “‘a entidade industrial, comercial, financeira e de prestação de serviços que, por sua decisiva importância para a economia nacional ou regional ou pelo elevado número de empregados, transcende à mera significação de empresa privada’” (LOBO, 1998, p. 159).

O que se verifica em ambos os conceitos apresentados pelo autor é a redução do papel social da empresa em detrimento do seu tamanho ou, por que não dizer, de números (de empregados, faturamento, ...). Não se quer aqui dizer que empresas maiores (macroempresas, nos jargões atuais do Direito Empresarial) não desempenhem um papel “maior” na sociedade na qual estão inseridos, o que chegaria a ser ridículo de se afirmar, uma vez que elas detêm uma importância diretamente proporcional ao tamanho de suas atividades. Mas o que realmente se pretende deixar claro neste artigo é que até “empresas” menores têm um papel social intimamente ligado às atividades que desempenham, isso é factível.

Comungando do mesmo raciocínio Carlos Claro (2008, p. 50), para quem “A entidade empresarial (independentemente de seu tamanho, forma societária, número de colaboradores, variedade de clientes, recolhimento de tributos junto ao Fisco, quadro de fornecedores etc.), hodiernamente tem papel preponderante também no que se refere ao tema inclusão social, e não se pode negar tal fato, especialmente a contar de 1988” (grifei).

Chega-se a vislumbrar uma contradição no próprio conceito apresentado por Lobo quando este menciona o interesse local ou regional das “empresas privadas de interesse particular”[3]. Ora, é evidente que até os empreendimentos mais ínfimos, como, por exemplo, uma mercearia de bairro, desempenham um papel importante, nesse caso, na comunidade em que está inserida.

Neste sentido, Carlos Claro (2008, p. 71) também destaca que “[...] as pequenas empresas e as microempresas são as entidades que, verdadeiramente, de fato impulsionam a economia nacional, e sem dúvida dão a sustentação para a atividade econômica desenvolvidas pelas médias e grandes corporações no país existentes”.

O que se quer deixar claro aqui é que não existem “empresas privadas de interesse [exclusivamente] particular” e nem “empresas privadas de interesse [exclusivamente] público”. Toda atividade empresarial é movida com intuito lucrativo, por isso essas últimas não existiriam da maneira que foram desveladas por Lobo.

Neste ponto se demonstra indiscutível as afirmações de Comparato (1995, p. 151) ao bem dizer que “[...] o objetivo específico do contrato de sociedade é, sempre, a produção e partilha de lucros entre os sócios; ou melhor, a distribuição dos lucros sociais. Não é sociedade o pacto que estipulasse fossem os lucros da atividade comum totalmente reinvestidos no negócio, sem jamais serem distribuídos entre os sócios, nem direta nem indiretamente”[4].

No caso das primeiras, é impossível se vislumbrar uma atividade empresarial sem uma função social, seja fornecer empregos, fomentar a concorrência ou, até mesmo, prover arrecadações tributárias que serão utilizadas pelo Estado na prestação de serviços públicos. O que muda, apenas, é a intensidade e a importância do desempenho do papel social da “empresa” a depender do “tamanho” de suas atividades.

Portanto, respondendo agora a o problema deste singelo estudo: não há empresa privada de interesse apenas particular ou apenas público, mas sim um organismo social, econômico e jurídico voltado a suprir as necessidades mais fundamentais do ser humano, sejam produtos, sejam serviços, com o fito lucrativo, mas nunca dissociado de sua função social, a qual deve ser aliada aos interesses privados por detrás da atividade empresarial.


Notas e Referências: 

[1] Para aqueles que não têm familiaridade com os textos que elaboro, sempre utilizo a expressão “empresa” entre aspas por três motivos específicos: 1) a ausência de um conceito à “empresa” no nosso ordenamento ou em qualquer outro que trate de tal organismo; 2) a adoção atécnica da expressão pelo legislador nas leis vigentes em nosso ordenamento jurídico que tratam dos fenômenos empresariais, dando a ela os mais variados significados (empresa como estabelecimento empresarial, como empresário,...), e 3) a tentativa de aproximar os mais diversos leitores do conteúdo apresentado nos artigos que eu redijo, de maneira que a expressão “empresa” é amplamente difundida na nossa sociedade, mesmo que de maneira errônea.

[2] A expressão stake holders é utilizada por Daniel Rodrigues (2014, p. 08), junto ao qual tive o prazer de compartilhar a elaboração de minha monografia, enquanto meu orientador, cujo significado é “aqueles que apostam nessa empresa compartilhando seus riscos”.

[3] Lembrem-se: uma economia não é formada apenas por grandes empreendimentos. As micro e pequenas empresas desempenham papel tão importante quanto os das macroempresas, principalmente no que tange o fornecimento de serviços e a circulação de produtos que não são interessantes a estas últimas, haja vista a grandeza de suas atividades. Isso pode ficar bem claro ao analisarmos determinado agente econômico através dos olhares da teoria microeconômica proposta pela ciência econômica. Vale a pena a leitura e o estudo desta teoria e a análise de empreendimentos através dela para que se tenha noção da dimensão de sua atuação na sociedade.

[4] O intuito lucrativo é mencionado também no próprio Código Civil de 2002, em seu art. 981: “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.

CLARO, Carlos Roberto. Recuperação Judicial: sustentabilidade e função social da empresa. 2008. 304 f. Dissertação (Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania) – Centro Universitário Curitiba, Curitiba. 2008. Disponível em: <http://www.dominio publico.gov.br/download/teste/arqs/cp060317.pdf>. Acesso em: 01/01/2016.

COMPARATO, F. K. Direito Empresarial. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 1995. 

LOBO, Jorge. Direito da Crise Econômica da Empresa. Revista da EMERJ, v. 01, n. 03, 1998. Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_ online /edicoes/revista03/revista03_156.pdf >. Acesso em: 26/12/2015.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª Ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

RODRIGUES, Daniel Almeida. Uma proposta ética para a compreensão da empresa. Revista Cadernos UNDB – Estudos interdisciplinares, Revista do Curso de Direito da UNDB, ano 04, v. 4, janeiro a dezembro de 2014. São Luís, Maranhão. Disponível em: <http://www.undb.edu.br/ publicacoes/arquivos/6_-_uma_proposta_etica_para_a_ compreensao_da_empresa.pdf>. Acesso em: 26/12/2015.


José Muniz Neto. José Muniz Neto é Bacharel em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB, em São Luís/MA, e Pesquisador em Direito Empresarial, com enfoque especial aos institutos da Falência e da Recuperação de “Empresas”. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2276473810309611. E-mail: muniz_neto13@hotmail.com .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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