O esotérico crime de ato obsceno e os pudicos de plantão

25/08/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Salah Khaled Jr - 25/08/2015

A teoria da decisão manejada pelo senso comum teórico é banhada pelo esoterismo da sensação, da intuição, da moral média, dos mecanismos inverificáveis, próprios de um modelo subjetivista, revestidos de aparência cognitiva. Com vocabulário recheado de termos desprovidos de referencial objetivo, embora tenhamos os princípios da legalidade e da taxatividade[1], perguntamos: o que significa praticar ato obsceno?

O tipo previsto no art. 233 do CP – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público – promete garantir a moralidade sexual vigente, mas não descreve condutas passíveis de verificação no processo penal, justamente porque ao ser “um tipo penal aberto” dialoga, diz a doutrina mais ultrapassada, com o padrão moral vigente na cultura. Como pode uma norma proibitiva depender da cultura e de quem decide ser obsceno? E a taxatividade e a legalidade são violentadas, de fato, abertamente.

Alberto Silva Franco[2] demostra que não se pode cair na armadilha de um abstrato sentimento moral, mas deveria garantir quem deseja se abster de participar de eventos de conotação sexual, dando uma interpretação conforme a Constituição. Entretanto, a pergunta remanesce: em que critério se pode falar em obsceno? Obscena para quem? Existe um obscenômetro?

A palavra “obsceno” é adjetivo que provém do latim obscênitãs, com o sentido geral de desonestidade, torpeza, lascívia, impudícia, ao contrário de pudor. Não se trata, pois, de uma conduta, mas de um ponto de vista que não é previsto em lei e abre espaço ao solipsismo (Lenio Streck).

Aí surge o espetáculo de horrores. A jurisprudência é bizarra. No interior de veículo só configura se não precisar de lanterna para ver o casal (TaCrimSP, Julgados 87/214), mas tem gente que pensa o contrário, porque poderiam ser vistos (TaCrimSP, Julgados 71/253). Alguns chegam a afirmar que fazer sexo ou andar nu, em seu apartamento, com janelas abertas, exposto aos vizinhos, constitui ato obsceno (TaCrimSP, RJDTACr 22/75).

Há o clássico julgado do STF em que Gerald Thomas, no final da peça, diante da manifestação da plateia, simulou se masturbar e mostrou as nádegas (HC 83.996/RJ): “Habeas corpus. Ato obsceno (art. 233 do Código Penal). 2. Simulação de masturbação e exibição das nádegas, após o término de peça teatral, em reação a vaias do público. 3. Discussão sobre a caracterização da ofensa ao pudor público. Não se pode olvidar o contexto em se verificou o ato incriminado. O exame objetivo do caso concreto demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada e deseducada. 4. A sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal. 5. Empate na decisão. Deferimento da ordem para trancar a ação penal. Ressalva dos votos dos Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que defendiam que a questão não pode ser resolvida na via estreita do habeas corpus.”

De outro lado, praia de nudismo ou topless, assim como os desfiles de carnaval, são tidos como tolerados pela moral sexual em face de seus contextos. Para alguns o trabalho do fotógrafo Spencer Tunick, em 2002, em São Paulo, geraria uma prisão em massa. A pedalada nua de algumas cidades e a “marcha das vadias” seria facilmente enquadrada no “ato obsceno” por algum moralista autoritário de plantão. Da mesma maneira a prática do Streaking - correr nu - configuraria, para alguns, crimes (RT 5151/363. 504/351). Fazer xixi em público para alguns já é crime (aqui), pois seria suficiente a mera possibilidade de visão do pênis (TaCrimSP, RJDTACr 25/61), para outros não (aqui).

Enfim, o tipo penal do art. 233 do CP viola a regra mínima da taxatividade e legalidade em sentido estrito, já que uma criminalização não pode decorrer do que pensam alguns Policiais, Delegados de Polícia, membros do Ministério Público ou de magistrados. Com muito maior vigor não faz sentido a contravenção do art. 61 da LCP. Mas nunca sabemos se o sentido que poderão emprestar a uma regra aberta em que todo preconceito cabe. Para nós a esotérica regra é obscenamente inconstitucional.


Notas e Referências:

[1] TAVARES, Juarez. Teoria do Delito. São Paulo; Estúdio Editores, 2015; PASCHOAL, Janaina Conceição. Direito Penal. Barueri: Manole, 2015

[2] FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação. São Paulo: RT, 2007, p. 1157


SALAH NOVA .

Salah Hassan Khaled Junior é Doutor e Mestre em Ciências Criminais, Mestre em História e Especialista em História do Brasil. Atualmente é Professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande, Professor permanente do PPG em Direito e Justiça Social            

                                                                                            .

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui                                                                                                                                                                                                           


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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