O enunciado 397 do Supremo Tribunal Federal e a polícia legislativa

10/09/2015

Por Rômulo de Andrade Moreira - 10/09/2015

A Corte Especial do Tribunal Federal da 1ª Região, ao julgar o Mandado de Segurança nº. 0005585-43.2015.4.01.0000, impetrado pelo Diretor-Geral do Senado Federal, denegou, por unanimidade, a ordem, entendendo caber à Polícia Federal a investigação de crime ocorrido no Senado Federal. A tese sustentada pelo impetrante era no sentido de que a investigação de fatos ocorridos no âmbito do Senado Federal é de competência exclusiva da Polícia Legislativa.

Entendemos acertada a decisão da Corte Federal, nada obstante o vetusto Enunciado 397 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual "o poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito."

Obviamente que este Enunciado, aprovado na Sessão Plenária do dia 03 de abril do fatídico ano de 1964, resta superado e a Polícia Legislativa não tem poder investigatório criminal. Se algum fato criminoso ocorrer nas dependências do Senado Federal, o máximo que ele poderá fazer (o máximo!!!!!) é prender em flagrante (como qualquer um do povo, aliás, poderá fazê-lo) e encaminhar o preso à autoridade da Polícia Federal para que se lavre o respectivo Auto de Prisão em Flagrante.

É importante destacar que alentado estudo sobre esta questão já havia sido feito, tempos atrás, pelo Procurador da República, o Penalista Paulo Queiroz.[1]

Como se sabe, o Título V da Constituição Federal do Brasil, que trata “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, no Capítulo III dispõe especificamente sobre a segurança pública”, afirmando, no caput do art. 144 que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos e será “exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Neste mesmo dispositivo, o texto constitucional indica quais os órgãos responsáveis pela segurança pública, enumerando, então, a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal (no âmbito da União) e as polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares (no âmbito de cada estado da Federação).

Sequer é referida a Polícia Legislativa. Na Constituição Federal de 1988, além dos arts. 51, IV, e 52, XIII, relativamente à Câmara e Senado, há previsão, ainda, quanto às Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal, conforme dispõem os arts. 27, §3º. e 32, §3º.

Com funções investigatórias estão apenas a Polícia Federal, a Polícia Civil, a Polícia Militar e as Forças Armadas (estas duas últimas, exclusivamente, para os crimes ditos militares). Sem qualquer função de investigação criminal está a polícia rodoviária federal, “órgão permanente, organizado e mantido pela União”, destinada “ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.” Também sem atribuição investigatória destaca-se a polícia ferroviária federal, igualmente um “órgão permanente, organizado e mantido pela União”, responsável pelo “patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.”

À Polícia Federal, do ponto de vista investigatório criminal, cabe “apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas.” No primeiro caso, podemos citar os crimes tipificados na Lei de Segurança Nacional (Lei nº. 7.170/83)

É de sua atribuição também “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”. Aqui, vale ressaltar o disposto no art. 70 da Lei nº. 11.343/2006 e no Enunciado 522 da súmula do Supremo Tribunal Federal: ou seja, a atribuição da polícia federal limita-se ao tráfico transnacional de drogas.

Igualmente, em relação ao crimes de contrabando e descaminho (estes “sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência.”).

Além de tais delitos, referidos no art. 144, § 1º., da Constituição, à polícia federal, como órgão da União, cabe apurar todo e qualquer crime (não, porém as contravenções penais) da competência da Justiça Comum Federal, nos termos do art. 109 da Constituição, a saber: os crimes políticos (Lei nº. 7.170/83) e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar.

Da mesma forma, os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente (os tráficos internacionais de pessoas, aves, órgãos humanos, etc.).

Também as causas relativas a direitos humanos nas “hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”

Outrossim, os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira (como, por exemplo, aqueles tipificados na Lei nº. 7.492/1986 – art. 26).

À polícia federal também cabe apurar os crimes cometidos a bordo de navios (embarcações de médio a grande cabotagem) ou aeronaves (em pouso ou sobrevoando o espaço aéreo), os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro (art. 338 do Código Penal) e a disputa sobre direitos indígenas.

Neste último caso, é preciso atentar para o  entendimento jurisprudencial pacificado, inclusive no Superior Tribunal de Justiça que “compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima”, salvo se a motivação do crime envolver disputa sobre direitos indígenas (conflito de terras, por exemplo), quando, então, a atribuição para a respectiva investigação caberá à polícia federal, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Também é atribuição da polícia federal apurar quaisquer “outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme”, nos termos da Lei nº. 10.446/2002.

Com efeito, esta lei, regulamentando o inciso I, do § 1º., do art. 144 da Constituição, faculta ao Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade das polícias militares e civis dos Estados, proceder à investigação do “sequestro, cárcere privado e extorsão mediante sequestro (arts. 148 e 159 do Código Penal), se o agente foi impelido por motivação política ou quando praticado em razão da função pública exercida pela vítima; formação de cartel (incisos I, a, II, III e VII do art. 4o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990); e relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; furto, roubo ou receptação de cargas, inclusive bens e valores, transportadas em operação interestadual ou internacional, quando houver indícios da atuação de quadrilha ou bando em mais de um Estado da Federação e falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, inclusive pela internet, depósito ou distribuição do produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado (art. 273 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal).” Ademais, caso a infração penal tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, “o Departamento de Polícia Federal procederá à apuração de outros casos, desde que tal providência seja autorizada ou determinada pelo Ministro de Estado da Justiça.

Em relação aos crimes tipificados no Código Eleitoral (Lei nº. 4.737/1965), também cabe à polícia federal a investigação; neste caso, porém, é comum que a polícia civil, especialmente em períodos de eleição, também exerça tais funções, tendo em vista o número elevado de zonas eleitorais e o número reduzido de agentes e delegados de polícia federal.

Neste sentido, decisão do Superior Tribunal de Justiça apontou que a Polícia Federal pode investigar crimes em prol da Justiça Estadual, afastando nulidade em ação penal proposta pelo Ministério Público Federal baseada em inquérito policial da Polícia Federal. A Polícia Federal instaurou inquérito policial para investigar os crimes contra a administração municipal, tendo como subsídio cópias das interceptações telefônicas, além de termos de declarações dos investigados e documentos emitidos por uma das empresas que mantinham contrato com a prefeitura. A filha do ex-prefeito, assessora e coordenadora da campanha para reeleição, e outros envolvidos foram indiciados e denunciados pelo Ministério Público Estadual de Pernambuco pela prática dos crimes de formação de quadrilha e concussão. O relator do Recurso em Habeas Corpus, Ministro Sebastião Reis Júnior, aponta: “As atribuições da Polícia Federal não se restringem a apurar infrações em detrimento de bens, serviços e interesses da União, sendo possível a apuração de infrações em prol da Justiça Estadual.” Segundo o magistrado, não há nada que impeça a investigação dos crimes em tese praticados no município pela Polícia Federal, até porque, naquela ocasião, não se conhecia a extensão da associação criminosa ou a complexidade das infrações – elementos que foram apurados com a instauração do segundo inquérito policial. O relator mencionou que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considera que eventuais nulidades ocorridas na fase extrajudicial não são suficientes para prejudicar a abertura da ação penal. Sebastião Reis Júnior também rebateu a alegação de nulidade da interceptação telefônica.  Para ele, “trata-se do fenômeno do encontro fortuito de provas, que consiste na descoberta fortuita de delitos que não são objeto da investigação”. (Recurso em Habeas Corpus nº. 50011/PE - 2014/0170879-8, autuado em 31/07/2014).

Ainda segundo a Carta, às polícias civis estaduais, incumbem a apuração de infrações penais, ressalvadas as atribuições da polícia federal e das polícias militares dos Estados. É, portanto, uma atribuição residual.

Ressalte-se, por fim, que o Supremo Tribunal Federal, na sessão realizada no dia 14 de maio de 2015, reconheceu a legitimidade do Ministério Público para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal e fixou os parâmetros da atuação do Ministério Público. Por maioria, o Plenário negou provimento ao Recurso Extraordinário nº. 593727, com repercussão geral reconhecida. Com isso, a decisão tomada pela Corte será aplicada nos processos sobrestados nas demais instâncias, sobre o mesmo tema.

Portanto, não cabe à Polícia Legislativa, seja de qualquer Casa Legislativa da República, a realização de investigação de natureza criminal.


Notas e Referências:

[1] http://www.pauloqueiroz.net/policia-legislativa-e-poder-de-investigacao/


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Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


Imagem Ilustrativa do Post:ROTAM// Foto de: André Gustavo Stumpf // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/degu_andre/9110199241 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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