No último dia 17 de maio, os ministros integrantes da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (colegiado responsável por julgar matérias penais), realizaram uma audiência pública para debater uma possível revisão do Enunciado 231, que veda a redução da pena abaixo do mínimo legal, ainda que incida no caso concreto alguma circunstância atenuante.
Naquela oportunidade, foram ouvidas as manifestações de representantes de instituições públicas e de entidades dedicadas à defesa de pessoas acusadas em processos criminais. A audiência pública foi convocada pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz com o objetivo de subsidiar o órgão julgador na apreciação do tema, e contou com 44 exposições, a favor e contra a alteração da jurisprudência.
Com efeito, o referido enunciado fere, indiscutivelmente, o princípio da individualização da pena, previsto no art. 5º., XLVI, da Constituição Federal. Sobre este princípio, afirmava o mestre Luiz Luisi que, “tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado, e inclusive determinar o modo de sua execução.” Assim, “de outro lado se revela atuante o subjetivismo criminológico, posto que na individualização judiciária, e na executória, o concreto da pessoa do delinquente tem importância fundamental na sanção efetivamente aplicada e no seu modo de execução.”[1]
Ademais, é preciso ter atenção para a redação do caput do art. 65 do Código Penal, ao estabelecer que as circunstâncias ali indicadas sempre atenuaram a pena, não deixando margem para qualquer discricionariedade judicial: afinal, sempre é sempre!
No Brasil, dentre outros, posiciona-se contra o referido Enunciado 231, o professor Cezar Roberto Bitencourt, segundo o qual “o entendimento contrário à redução da pena para aquém do mínimo cominado partia de uma interpretação equivocada, que a dicção do atual art. 65 do CP não autoriza. Com efeito, esse dispositivo determina que as circunstâncias atenuantes “sempre atenuam a pena”, independentemente de já se encontrar no mínimo cominado. É irretocável a afirmação de Carlos Caníbal quando, referindo-se ao art. 65, destaca que ´se trata de norma cogente por dispor o Código Penal que ‘são circunstâncias que sempre atenuam a pena’ ... e – prossegue Caníbal – norma cogente em direito penal é norma de ordem pública, máxime quando se trata de individualização constitucional de pena`. A previsão legal, definitivamente, não deixa qualquer dúvida sobre sua obrigatoriedade, e eventual interpretação diversa viola não apenas o princípio da individualização da pena (tanto no plano legislativo quanto judicial) como também o princípio da legalidade estrita.”
Para este jurista, “deixar de aplicar uma circunstância atenuante para não trazer a pena para aquém do mínimo cominado nega vigência ao disposto no art. 65 do CP, que não condiciona a sua incidência a esse limite, violando o direito público subjetivo do condenado à pena justa, legal e individualizada. Essa ilegalidade, deixando de aplicar norma de ordem pública, caracteriza uma inconstitucionalidade manifesta. Em síntese, não há lei proibindo que, em decorrência do reconhecimento de circunstância atenuante, possa ficar aquém do mínimo cominado. Pelo contrário, há lei que determina (art. 65), peremptoriamente, a diminuição da pena em razão de uma atenuante, sem condicionar seu reconhecimento a nenhum limite; e, por outro lado, reconhecê-la na decisão condenatória (sentença ou acórdão), somente para evitar nulidade, mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal. Seria igualmente desabonador fixar a pena-base acima do mínimo legal, ao contrário do que as circunstâncias judiciais estão a recomendar, somente para simular, na segunda fase, o reconhecimento de atenuante, previamente conhecida do julgador. Não é, convenhamos, uma operação moralmente recomendável, beirando a falsidade ideológica. Por fim, e a conclusão é inarredável, a Súmula 231 do STJ, venia concessa, carece de adequado fundamento jurídico, afrontando, inclusive, os princípios da individualização da pena e da legalidade estrita.”[2]
Também o professor Paulo de Souza Queiroz afirma a possibilidade de diminuição da pena aquém do mínimo legal, no caso de atenuante genérica, “primeiro, porque, ao fazê-lo, não se dá, em tal caso, qualquer violação ao princípio da legalidade. Segundo, porque aplicar a pena justa, não importando se no mínimo legal, aquém ou além dele, é uma exigência de proporcionalidade.”
Para o autor, “o princípio da legalidade, como de resto todos os princípios, constitui autêntica garantia, que, como tal, existe (historicamente) para proteger o cidadão contra os excessos do Estado, e não o contrário, para prejudicá-lo. Representa, portanto, constitucionalmente, uma poderosa garantia política para o cidadão, expressivo do imperium da lei, da supremacia do Poder Legislativo – e da soberania popular – sobre os poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais. Por isso é que não há cogitar de afronta ao princípio sempre que a lei tiver de retroagir para beneficiar o réu, por exemplo, pois, em tal caso, não há ofensa ao caráter garantidor que o informa e justifica. Aliás, é justamente em razão deste caráter garantístico do princípio que o contrário não pode acontecer, vale dizer, fixar o juiz a pena acima do máximo legal. Já o princípio da proporcionalidade, que compreende os subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito (sentido tradicional), exige que a pena seja, a um tempo, necessária, adequada e compatível com o grau de ofensividade do delito cometido. Por isso que é dado ao juiz, por exemplo, socorrer-se do princípio da insignificância para decretar a absolvição, sempre que se achar diante de uma lesão ínfima ao bem jurídico que a norma quer tutelar. Nem poderia ser diferente, uma vez que a missão do juiz já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sujeição à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição. Pois bem, se o juiz pode mais – absolver, dada a irrelevância – pode menos, evidentemente: aplicar pena aquém do mínimo legal. Fundamental é fixar, sempre, uma pena justa para o caso, proporcional ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o envolve (CP, art. 59), ainda que, para tanto, tenha o juiz de fixá-la aquém do mínimo legal. É legítima, pois, a aplicação de pena abaixo do mínimo.”[3]
Na jurisprudência, vale destacar a decisão de um dos mais renomados criminalistas que já compuseram o Superior Tribunal de Justiça, o professor Luiz Vicente Cernicchiaro:
“O princípio da individualização da pena (Constituição, ART. 5., XLVI) materialmente, significa que a sanção deve corresponder as características do fato, do agente e da vítima, enfim, considerar todas as circunstancias do delito. A cominação, estabelecendo grau mínimo e grau máximo, visa a esse fim, conferindo ao juiz, conforme o critério do art. 68, CP, fixar a pena "in concreto". A lei trabalha com o gênero. Da espécie, cuida o magistrado. Só assim, ter-se-á direito dinâmico e sensível a realidade, impossível de, formalmente, ser descrita em todos os pormenores. Imposição ainda da justiça do caso concreto, buscando realizar o direito justo. Na espécie ´sub judice`, a ´pena-base` foi fixada no mínimo legal. Reconhecida, ainda, a atenuante da confissão espontânea (CP, art. 65, III, d). Todavia, desconsiderada porque não poderá ser reduzida. Essa conclusão significaria desprezar a circunstância. Em outros termos, não repercutir na sanção aplicada. Ofensa ao princípio e ao disposto no art. 59, CP, que determina ponderar todas as circunstancias do crime.”[4]
Por outro lado, evidentemente, não se pode admitir que, usando o mesmo raciocínio, estar-se-ia autorizando a aplicação de agravantes para aumentar a pena além do máximo legal, já que também consta do art. 61 do Código Penal (quando a lei elenca as circunstâncias que agravam a pena) o vocábulo “sempre”. Esta possibilidade (aumento além do máximo) encontra um obstáculo intransponível consistente no princípio do favor rei ou do favor libertatis, a ser observado em toda e qualquer interpretação das normas penais e processuais penais.
Segundo Giuseppe Bettiol, em uma “determinada óptica, o princípio do favor rei é o princípio base de toda a legislação penal de um Estado inspirado, na sua vida política e no seu ordenamento jurídico, por um critério superior de liberdade”, não havendo, “efetivamente, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado, um empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana.” Para o jurista italiano, “no conflito entre o jus puniendi do Estado por um lado e o jus libertatis do arguido por outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade.”
Por fim, importante fazer referência ao Enunciado 545 da súmula do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, d, do Código Penal.” Observa-se que a diminuição da pena é um imperativo resultante do enunciado.
Portanto, para concluir, entende-se que o Enunciado 231 da súmula do Superior Tribunal de Justiça deve ser superado, primeiro, em razão do (posterior) Enunciado 545; segundo, tendo em vista a redação do caput do art. 65 do Código Penal; terceiro, e, principalmente, em razão do princípio constitucional da individualização da pena, afinal, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”[5]
Notas e referências
[1] LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 37 e segs.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. “Limites da pena-base e a equivocada Súmula (231) do STJ”. Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, Ano 22, nº. 262, Setembro/2014.
[3] QUEIROZ, Paulo de Souza. Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, Ano 7, nº. 26, Abril-Junho/1999.
[4] Recurso Especial nº. 151.837/MG, Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Relator para o acórdão: Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, Sexta Turma, julgado em 28 de maio de 1998, publicado no Diário da Justiça do dia 22 de junho de 1998, p. 193.
[5] Apud MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, Volume I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.
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