Por Samuel Mânica Radaelli – 01/08/2016
"Mamãe quando eu crescer eu quero ser artista sucesso, grana e fama são o meu tesão Entre os bárbaros da feira Ser um reles conformista nenhum supermercado satisfaz meu coração Mamãe quando eu crescer eu quero ser rebelde se conseguir licença do meu broto e do patrão Um Gandhi Dandy, um grande milionário socialista de carrão chegou mais rápido à revolução Ahhhh! Quanto rock dando toque tanto Blues e eu de óculos escuros vendo a vida e mundo azul Mamãe quando eu crescer eu quero ser adolescente No planeta juventude haverá vida inteligente?" (Dandy, Belchior)
Motivado por uma onda fascista, que se soma ao assombro por ver na escola a possibilidade de o aluno encontrar ideias diferentes das autorizadas, surge um movimento anti-ideológico tentando castrar as perspectivas de ensino. Em decorrência disso, pugna por meio de vedação legal, o combate à reflexão sobre os elementos que constituem a sociedade, em nome da suposta “autoevidência” dos chavões repetidos aos berros com intuito da defesa de valores tidos maiores, como: Jesus, família, ordem, e por aí vai.
Sob o argumento de que pretendem combater a imposição doutrinária, pretendem a vedação de uma série de conteúdos, não só de ordem política, chegando até temas de anatomia humana, com objetivo de resguardar o entendimento familiar, portador de alguma tradição política ou religiosa, cujo questionamento traz agonia. Em nome do resguardo do modo de pensar da família e dos grupos a que ela pertence seriam sacrificadas as possibilidades de aprendizado, em razão do medo dos pais e “profetas” de que os filhos pensem além do território seguro da tradição política reacionária, restando presos aos ditames estreitos de uma determinada fé.
Este texto se volta para o ensino do Direito, por perceber um crescente absenteísmo crítico, o qual, ao não tomar partido por nenhuma convicção teórica, incorre na militância do status quo. Embora não trate especificamente do ensino jurídico, os apelos contra a “doutrinação” também ressoam nele, tornando-se comum a idéia de que pensar para além dos discursos dominantes é uma prática de doutrinação. Neste âmbito, o ocultamento ideológico proposto pela “escola sem partido” se dá pela reprodução acrítica dos referenciais conservadores. Assim, tem-se a prática da “difusão do conhecimento” feita através da memorização de ementários, sejam eles jurisprudenciais, ou doutrinários por meio de esquemas que prometem “descomplicar” todo o Direito, propiciando uma visão recortada de temas complexos e determinantes, os quais não podem ser ocultados pela repetição de sínteses.
O alarmante é que isso já ocorre nos cursos de Direito sem a necessidade da censura e vigilância dos profetas da “jesuscracia” associados aos ventríloquos do fascismo. Trata-se “apenas” do conforto subalterno da “ditadura do mesmo”; para ela ensinar é reiterar o culto a ideias e autoridades postas, evitando problemas para si e para os outros, agindo por meio da descrição daquilo que “todos já sabem” ou deveriam saber, ou seja, buscam a todo custo a preservação de “certezas”, que não sobrevivem ao menor crivo da crítica. Por isso, convertem as posturas críticas em doutrina, que necessitam ser violentamente combatidas, pois são capazes de “corromper os jovens” (interessante recordar o histórico desta acusação).
Percebe-se no ensino do Direito a incidência de um comportamento industrial, com a adoção de mecanismos de automação didática, com a vivência extremada da razão instrumental, que absurdamente se torna motivo de júbilo e marketing, pois oferece sucesso profissional (“que não ocorre por acaso” e “só depende de você”), seguindo a fórmula: “mais em menos tempo, por preços que cabem no seu bolso”. Por trás do ritmo frenético da prática que encarna estes chavões, tem-se a substituição do subversivo e angustiante ato de pensar pelo binômio obedecer e repetir.
O estudo do Direito tem a necessidade incontornável de uma sólida cognição política, que rompa com a inocência daqueles que se propõem a conhecê-lo e praticá-lo. Por trás das falsas evidências estão formas de controle e a legitimação de posições sociais, camufladas pelo discurso de racionalidade legal, a lei não se origina somente da razão, mas predominantemente do poder. Este fato precisa ser desvelado por um ensino feito em bases críticas, de modo a aflorar a ousadia do pensar.
. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina – GEDIS. Email: radaelliadvocacia@yahoo.com.br.
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