O Direito (Penal) do amigo

27/06/2016

Por Samuel Mânica Radaelli – 27/06/2016

“Sempre dia de ironia no meu coração.”

(Belchior, Não leve flores)

A revelação de atos de corrupção, feita cotidianamente nos últimos tempos, tem descortinado as manifestações patrimonialistas presentes no Estado brasileiro, embora estes fatos tenham assumido características de escândalo, só pode haver novidade em relação aos agentes, pois as práticas são bem antigas. Devido à longevidade e à intensidade da corrupção, ganha força a discussão em torno da busca por formas eficientes de combatê-la. Neste âmbito, para uma grande parcela da sociedade, desponta o rigor penal como reposta, aliás, o punitivismo dá mostras de tudo solucionar, inclusive a complexidade do mundo!

No âmbito da discussão sobre a corrupção especificamente, ampliam-se os adeptos do propósito de aumentar as penas e reduzir as garantias do acusado, dando margem para formas de punição não arroladas legalmente, como por exemplo a execração pública. A luta pelo endurecimento e “irracionalização” das penas se pauta subjetiva e veladamente pelo sentimento de vingança e catarsis odiosa, mas objetivamente a justificação se dá pela revolta com contra a impunidade, a qual seria minimizada com a aplicação de penas mais duras aos culpados e aos suspeitos. Será que isso funciona mesmo?

Fala-se na implementação do “Direito Penal do Inimigo”, mas o que parece mais assombroso, embora não escandalize, é o longamente implementado Direito (penal ou não) do amigo, ou seja, a ingerência das posições sociais e da cordialidade clientelista na aplicação da lei. Ao se falar de impunidade a crítica majoritária recai sobre a lei, no entanto, raramente são questionadas as instituições que operam o seu manuseio.

No intuito de tornar eficiente e republicano o Estado brasileiro, amplia-se o número e a força das instituições, mas, elas acabam sendo tragadas pela lógica patrimonialista habitual. Os espaços de aplicação da lei não estão imunes às relações clientelistas, por conta disso, a lógica do favor assume o caráter de moeda largamente utilizada, cuja força transcende a lei e o Direito.

Roberto Schwarz vai descortinar esta lógica em suas origens ao afirmar que o monopólio da terra, no período colonial, gerou três grandes grupos: o proprietário de terras, o escravo e o homem livre. Neste terceiro grupo o acesso a uma posição social, bem como, a bens materiais, dependia do favor direto ou indireto de um abastado. Assim o favor como forma de mediação foi se desdobrando e ganhando proporção na vida social e política do país, criando um jogo de acessos e dependências, pois segundo este autor, “o favor é a nossa mediação quase universal”.

O favor se oculta por meio de um verniz racionalista e sofisticado, obtido mediante a transcrição de ideias oriundas de países centrais, as quais nutrem o discurso, mas não a prática. Tal realidade se manifesta na vida pública, pois “o mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça que, embora regidas pelo clientelismo, proclamavam formas e teorias do Estado burguês moderno. Além dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada-  que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as ideias e razões européias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente “objetiva”, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas.” (Cultura e Política, 2009, p. 67).

Diante desta realidade é necessário refletir. Novas leis mais severas (para quem?) serão elaboradas e aplicadas pelas mesmas velhas instituições, a não ser que sejam renovadas pelo espírito popular. A origem da corrupção é o distanciamento e a autonomia do poder institucional em relação ao povo. Assim reformar leis, sem alterar as instituições que lhes dão forma, é tão somente um paliativo ilusório, cujo efeito futuro é mais descrença na democracia e o acirramento de posturas autoritárias e fascistas.


Samuel Mânica Radaelli. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina – GEDIS. Email: radaelliadvocacia@yahoo.com.br. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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