O direito ao silêncio

26/04/2015

Por Geraldo Prado* - 26/04/2015

Introdução

Há quinze anos, Ada Pellegrini Grinover fazia publicar artigo sobre o interrogatório do acusado e o direito ao silêncio[2] que rapidamente se transformou em um clássico na doutrina brasileira. As razões para isso, em síntese, derivaram da correta percepção do interrogatório do réu como meio de defesa e, eventualmente, fonte de prova[3], e não, como até então se defendia, meio de prova.

Atualmente, em vigor Constituição da República que de forma expressa garante ao preso o direito de permanecer calado – artigo 5º, inciso LXIII – e integrando regularmente o nosso ordenamento jurídico a enção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), que em seu artigo 8º prescreve, no rol das garantias judiciais, o direito de não ser (a pessoa) obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada (letra “g”), a tudo se acrescentando a instrumental presença de Defensor desde o início de qualquer procedimento persecutório, parece fora de dúvida que as práticas judiciárias abandonaram à própria sorte a chamada confissão extrajudicial, desamparada da orientação ao investigado de que tem o direito de permanecer calado, especialmente quando produzida com exclusividade na atividade de investigação criminal, na fase preparatória ao processo de conhecimento de cunho de condenação.

Ocorre que nem sempre a disciplina normativa assegura a efetividade dos direitos, mesmo quando, como no caso dos interrogatórios promovidos pela autoridade policial, a avaliação do material colhido, ao nível provisório e superficial se a hipótese é de receber denúncia do Ministério Público, ou em cotejo com provas adquiridas ao longo do processo, se o momento é de cognição exaustiva e emissão de sentença de mérito, é incumbência principal do juiz.

É que a prática do foro tem revelado, mediante o emprego de técnicas de dissimulação às vezes inconscientes, que aquilo que a Constituição quis impedir de forma direta, tal seja, a coação sobre a pessoa investigada de sorte a dela extrair a confissão, em muitos aspectos ainda esperada com ansiedade, acaba invadindo o processo de modo sutil, sinuoso, esvaziando no plano prático a indiscutível proteção constitucional.

A confissão do imputado

 Hélio Tornaghi conceitua confissão como sendo a declaração pela qual alguém admite ser autor de crime[4], aduzindo ainda que confessar é aceitar, como verdadeira, a autoria de um fato ilícito, puro e simples, ou de circunstância exacerbante[5].

Muito embora haja predominante reconhecimento de que a confissão, como tal, só deve ser assim considerada e convencer o juiz se tiver sido produzida em juízo, isto porque, admitida com reservas como meio de prova, prevista no Código de Processo Penal, em capítulo que está a indicar a indispensável mediação do julgador, submete-se à exigência de índole constitucional em virtude da qual toda prova oral deve ser colhida em juízo[6], na realidade dos fatos infelizmente a chamada confissão extrajudicial acaba tendo seu valor.

Sérgio Demoro admite para as declarações do investigado, indiciado, adquiridas na etapa prévia ao processo, a qualidade de mero indício, apesar de acreditar que para as condenações penais o indício, por seus próprios méritos, nada vale[7]. Todavia, e ainda sem discutir sobre a adequação do entendimento do ilustre processualista, desmistificada está, nos dias de hoje, a ideia corrente de que condenações não se fundam em indícios, provas críticas, mas tão-somente em provas diretas, históricas[8].

É verdade que os indícios só poderão ser validamente considerados pelo juiz, como meio de prova, se a sua aquisição houver sido permeada pelo contraditório. Sem isso, do ponto de vista jurídico e, especificamente, na visão do direito processual constitucional, por maior que seja a aptidão de convencimento do elemento demonstrativo, este dado estará obstado em seu efeito de motivar a convicção do julgador. Contudo, desde que tenha preenchido a cláusula constitucional, servirá o indício, como elemento indireto de demonstração de um fato penalmente relevante, para fundamentar a crença do juiz a propósito do fato objeto de prova.

Novamente aí temos a aparência do perfeito enlace entre as normas constitucionais, situadas em estágio normativo superior, e as do direito processual ordinário, que ditam a regra pela qual a confissão extrajudicial – especialmente a policial – característico indício interno[9], isoladamente não é prova e, portanto, não está apta para influir no convencimento do juiz.

A harmonia no entanto é somente aparente. Com efeito, o próprio Sérgio Demoro, referindo-se ao magistério consagrado de Damásio de Jesus e Tourinho Filho, menciona a percepção crítica da doutrina a respeito da inclinação da jurisprudência no sentido de considerar que a confissão extrajudicial, corroborada por outras provas, é levada em conta, na sentença, pelo juiz. Salienta-se que quando isso acontece, em realidade está a se considerar tão-só as outras provas, uma vez que a confissão policial, insulada, nada significa.

Muito embora a explicação seja válida no plano jurídico, se estivermos atentos ao que dê certo ocorre, aplicando aos casos método sociológico e deixando de lado a tendência a querer adaptar os fatos às nossas convicções científicas, a grande verdade é que o juiz não apenas estará considerando a confissão extrajudicial, como muito provavelmente ela terá reforçado o seu convencimento a propósito das provas colhidas e não o contrário. Quantas vezes os advogados não se deparam, no foro, com decisões lastradas em fi apos de prova que estão exclusivamente presos à confissão extrajudicial – principalmente à policial – que arrematam as condenações!

Isso pode ser entendido de duas maneiras, reciprocamente condicionadas: de um lado prevalece em nosso País, independentemente do esforço expressivo em sentido contrário, empreendido por intermédio do movimento que resultou na Constituição da República de 1988, a cultura inquisitória, alicerçada na crença em uma verdade real como objetivo primordial a ser alcançado no processo penal; de outra parte, os juízes, em número também significativo, malgrado a indiscutível imparcialidade e honestidade intelectual com que operam o direito, ainda acreditam na confissão como prova situada em um plano superior. Lembrando passagem de Hélio Tornaghi[10], é incontestável que para o juiz, homem comum, “é sumamente tranquilizador... ouvir dos lábios do réu uma narrativa convincente do fato criminoso, com a declaração de havê-lo praticado. Isso, aliás, acontece a qualquer homem normal”.

A admissão pela pessoa investigada, posteriormente acusada, da prática da infração penal não só influência de modo tranquilizador a consciência do juiz penal, no instante da sentença, como age da mesma maneira em relação aos demais atores da própria investigação, que por razões variadas, sérias ou inconfessáveis, acomodam-se à confissão para dela tentar extrair o maior proveito sem despender energia em busca de um mais abrangente acervo de informações e alternativas de explicação.

Focalizando o aspecto psicológico também é possível aditar que juízes, promotores de justiça e mesmo as autoridades policiais comungam a crença de que as normas de experiência nos ensinam que a primeira e espontânea declaração do investigado é verdadeira, ao contrário das demais, quando já está orientado pelo Defensor ou teve tempo de refletir melhor e preparar suas próprias desculpas[11].

O devido processo legal e a legitimidade da decisão judicial

Tudo o que se examinou até o momento está fundado na concepção de que a sentença penal, traduzindo a justa solução de conflito de interesses de suma relevância social, é o resultado da atividade empreendida pelo juiz e pelas partes em torno da verdade real, isto é, da correspondência absoluta entre o fato histórico analisado no processo e a sua prova.

Por essa razão, a nosso juízo falaciosa, acentua-se que o juiz penal deve estar seguro ao máximo sobre a pertinência das questões de fato propostas e, em busca dessa segurança absoluta ou total, com projeção obrigatória na motivação da decisão definitiva da causa, ancorará sua certeza naqueles elementos de convicção que a experiência recomenda como os mais confiáveis. Daí a predileção pela confissão, que certamente não surge com exclusividade no conjunto dos dados de convicção apontados pelo julgador, mas que pode ser percebida em virtude da recorrente menção a ela como reforço de convencimento.

Muitas são as sentenças que, reconhecendo a responsabilidade penal do acusado pela prática, por exemplo, do crime de venda de substância entorpecente, argumentam com a validade do depoimento exclusivo dos policiais que prenderam em flagrante o réu, e em seguida destacam do próprio depoimento dos policiais a circunstância alegada do acusado ter confessado aos autores da prisão o crime e a sua condição de traficante.

Um destaque dessa ordem só tem sentido se o juiz não está totalmente seguro do lastro probatório da sua conclusão e, diante da obstinada negativa do acusado, apresentada quer perante a autoridade policial, a quem muitas vezes se recusou a declarar quando ainda indiciado, quer perante o próprio juiz, precisa ter a consciência tranquila de que para a condenação não concorreram tão-somente os depoimentos dos policiais mas a própria admissão do agente, espontânea e livre de esquemas de justificação.

Ora, este estado de coisas despreza o gradual avanço da nossa civilização, que aos poucos extraiu das experiências discriminatórias e violentas da repressão penal, típica de Estados autoritários e totalitários, os mecanismos que devem ser decididamente abolidos, porquanto representam sistemática violação da dignidade humana.

O monopólio legítimo da violência pelo Estado há de considerar a legitimidade no exercício de todas as formas de poder, processo de legitimação que exige que o próprio Estado atue conforme o mínimo ético pactuado na carta de direitos fundamentais. Não cabe ao Estado, pelos seus agentes, já se disse tantas vezes, baldar as regras éticas de conduta na repressão às infrações penais, a pretexto de conferir maior funcionalidade ao sistema de controle social.

No processo penal, a legitimidade está erguida sobre dois pilares inter-relacionados: o primeiro cuida do valor de verdade que a sentença há de acolher e prestigiar; o segundo refere-se ao procedimento como instrumento de tutela dos direitos e interesses da pessoa sujeita ao processo criminal.

Luigi Ferrajoli assinala que a função jurisdicional, no processo penal, está legitimada pelo grau de verdade em que está inspirada a sentença penal. Com efeito, o fato suposto ao qual a acusação atribui relevância jurídica, pela consequência que deriva de seu reconhecimento, isto é, a imposição da sanção penal, deve ser efetivamente demonstrado no processo, porque de outra maneira a solução representada pela sentença estará alicerçada em bases falsas e será injusta[12].

Tanto isso é verdade, no direito  brasileiro, que muito embora haja consideração constitucional do primado da coisa julgada, admite-se expressamente, em nosso ordenamento, a revogação da sentença de condenação transitada em julgado quando se descobre que está motivada em elementos falsos, não verdadeiros (artigo 621 do Código de Processo Penal: falsidade porque a sentença é contrária à evidência dos autos, porque não é verdadeira a denotação jurídica do fato, isto é, a sentença foi contrária ao texto expresso de lei; porque a sentença se fundou em documentos, exames ou depoimentos comprovadamente falsos; ou ainda porque depois da sentença foram descobertas novas provas da inocência do acusado ou de causa de diminuição de pena).

Da busca da verdade nasce, para a maior parte da doutrina penal, a crença mais ou menos difundida da existência de um poder de investigação judicial[13] em virtude do qual, disciplina o nosso direito positivo, no artigo 156, parte final, do Código de Processo Penal, o juiz poderá determinar de ofício diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante da causa.

Acontece que, mesmo para o juiz, a busca da verdade real tem limites. Se é tarefa do processo penal definir os modelos de compreensão que possibilitem que o juiz não erre na formação da sua convicção[14], a eficiência na prestação da justiça não é um valor absoluto.

Aos amplos poderes de investigação, exercitados pelo Estado (Ministério Público e autoridade policial), em razão da suspeita da existência de uma infração penal, correspondem outros tantos direitos do investigado ou do acusado, por meio dos quais são protegidos os inocentes e evitados os abusos. Do equilíbrio entre estas funções, resumido na tutela dos direitos fundamentais e investigação da verdade, dimana a real legitimidade democrática do processo penal e o poder de império da sentença emitida[15].

Assim, não obstante o valor de verdade que pode estar encarnado em determinado meio de convicção, sua admissão no processo penal estará condicionada ao modo pelo qual foi obtido, porquanto inadmissíveis são as provas ilicitamente adquiridas – artigo 5º, inciso LVI, da Constituição da República. Desse modo, protegem-se as pessoas contra torturas, extorsões, astúcia ou ameaças de todo tipo, que maculam o ato de apreensão da prova e simultaneamente tornam os órgãos estatais receptores de material criminosamente obtido[16]. Salienta Costa Andrade, em magistério perfeitamente adequado ao nosso sistema, que “o fim da pena é a confirmação das normas do mínimo ético, cristalizado nas leis penais” e acrescenta que está “demonstração estará frustrada se o próprio Estado violar o mínimo ético para lograr a aplicação de uma pena. Desse modo, ele mostra que pode valer a pena violar qualquer norma fundamental cuja vigência o direito penal se propõe precisamente assegurar”[17].

Repita-se para sublinhar este ponto: a proibição da prova ilicitamente obtida foi uma das maneiras encontradas pela Constituição de tutelar os direitos fundamentais, quando em oposição à pretensão de natureza criminal. Da mesma maneira, inadmissível será o elemento de convicção que, levado aos autos em procedimento regular, tenha por origem prova ilicitamente obtida – a prova ilícita por derivação.

No caso penal, à pretensão do Estado opõe-se a pretensão do acusado e de seu defensor à tutela jurídica, resistindo aos interesses do autor, nota característica do direito de defesa. Justamente porque a tutela jurídica dos interesses do acusado repousa na proteção dos direitos fundamentais, é que se aceita que a verdade tangida pela sentença há de ser tão-só a verdade contingente, própria da natureza humana e das circunstâncias históricas, obtida com as cautelas inerentes à preservação da dignidade humana (verdade forense), e não uma verdade real e absoluta, cujo significado filosófico é até mesmo difícil de determinar.

Neste contexto situa-se o direito de defesa. Gilmar Ferreira Mendes nos remete à histórica intervenção de João Barbalho, a propósito de comentar a Constituição de 1891, para ajustar as práticas judiciais aos meios e fins coerentes com nosso estágio de desenvolvimento. Vale, pois, destacar a intervenção, de início do século:

“Com a plena defesa são incompatíveis, e, portanto, inteiramente inadmissíveis, os processos secretos, inquisitoriais, as devassas, as queixas ou o depoimento de inimigo capital, o julgamento de crimes inafiançáveis na ausência do acusado ou tendo-se dado a produção das testemunhas de acusação sem ao acusado se permitir reinquiri-las, a incomunicabilidade depois da denúncia, o juramento do réu, o interrogatório dele sob coação de qualquer natureza, por perguntas sugestivas ou capciosas.”[18]

Do dever de instrução e de seu alcance

Porque é condição de validade da sentença que profere determinar se a prova invocada pelas partes é admissível, para efeito de avaliação, de modo consequente à sua forma de aquisição e introdução no processo, cabe sempre ao juiz indagar se a Constituição da República foi realmente respeitada antes de dar por demonstrados (ou não) os fatos.

Para tanto, pressupõe harmonia com a Constituição, nos limites estreitos da presente investigação, toda e qualquer declaração do acusado, nesta qualidade ou antes ainda, quando suspeito ou indiciado, se a ele foi comunicado o direito de permanecer calado, pilar do direito de não produzir prova contra si mesmo. Nemo tenetur se detegere. Fora disso, inválida será qualquer declaração do agente, sob todos os aspectos, inclusive para sustentar, na qualidade duvidosa de indício, a legalidade de procedimentos de aquisição de provas.

É de se argumentar que apenas a confissão ao juiz, depois da orientação sobre o direito ao silêncio, e coordenada com provas produzidas em contraditório, tem o condão de motivar o convencimento judicial.

A análise crítica das práticas judiciárias, contudo, tem revelado que não raras vezes o juiz considera o depoimento de testemunhas, especialmente de policiais, sem maior aprofundamento no tocante à colheita de outros elementos de demonstração, quando as testemunhas admitem ter sabido pelo próprio acusado, espontaneamente, da condição dele haver cometido a infração penal.

Tal consideração frise-se, não produz seus efeitos com exclusividade no momento da sentença. Tantas vezes serve para justificar a presença dos requisitos ou pressupostos das medidas de cautela pertinentes à busca e apreensão de coisas, objetos materiais do delito ou instrumentos necessários à sua concretização.

A exclusão deste aspecto da prova testemunhal, que em um esquema funcional eficaz de controle da criminalidade deve ser substituído pela verdadeira investigação criminal, com efetiva pesquisa de evidências, sem precisar recorrer à confissão extrajudicial, é imperativo lógico da tutela dos direitos fundamentais, estacas demarcatórias de um espaço vital mínimo[19].

Ademais, ressalte-se, pelo prisma meramente funcional a eficácia das ações empreendidas a partir, exclusivamente, da suposta confissão do agente aos policiais, em circunstâncias que a história recente demonstra incapazes de nos certificar da sua própria idoneidade, é bastante relativa e costuma arranhar apenas a face superficial da criminalidade, deixando intocadas as engrenagens mais sofisticadas das ações delituosas que devem ser legitimamente controladas em um estado democrático.

O Estado, por todos os seus agentes, incluindo aí os policiais que efetuam a prisão do investigado, é devedor do direito fundamental mencionado, em relação jurídica predominantemente pública. Nesta condição, do devedor se espera uma postura passiva, consistente em não provocar o credor do direito no sentido de obter dele a abdicação e alguma informação que possa prejudicá-lo futuramente.

Não que o investigado, ao ser preso, esteja impedido de espontaneamente declarar contra si mesmo. É claro que poderá fazer isso, que dispõe em alguma medida de seu direito fundamental, ao qual poderá legitimamente renunciar. É preciso, porém, para que a renúncia ao exercício do direito seja válida e eficaz, que o preso seja claramente informado de que é titular de um direito e em que consiste, realmente, o conteúdo deste direito e que isso ocorra em um ambiente no qual a renúncia possa ser fiscalizada, de modo a garantir que não seja fruto de coações de toda ordem, como alertava João Barbalho.

Como sujeito de um procedimento, o investigado logo ao ser preso, no alvorecer da investigação, deve ser informado do seu direito e informado não apenas pela autoridade policial, quando a prisão já está consumada e provavelmente o meio de demonstração capturado de alguma maneira. Mas sim no exato instante em que, devido às circunstâncias, pode se ver mediante coação, compelido a produzir prova contra si mesmo, cooperando involuntária ou indevidamente com o Estado, que tem o dever de investigar

A isto a doutrina denomina de dever de instrução do direito ao silêncio, de caráter prioritário para o ordenamento jurídico, como salientou Theodomiro Dias Neto[20], porque nestes casos não se pode pressupor o conhecimento do direito. A máxima consistente em se afirmar que a ninguém é lícito invocar o desconhecimento da lei há muito não prevalece, em termos de direito penal. Basta analisarmos a disciplina jurídica do erro de proibição para constatarmos que o Direito opera com a correta consciência de que a maioria da população desconhece muitos dos seus direitos, quiçá quando está em oposição aos órgãos de repressão penal, nas áreas periféricas das grandes cidades.

Tratando da declaração do imputado, sem ser advertido de que é detentor do direito de permanecer calado, o Tribunal Supremo da Espanha, em sentença de 11 de abril de 1991, reputou carentes, como meio de prova, as declarações dos imputados tomadas sem haver-lhes sido instruídos dessa qualidade e do direito ao silêncio e, em outro julgado, de 5 de outubro de 1994, adotou idêntico procedimento, anulando os atos praticados, inclusive aqueles pertinentes às diligências prévias, salvo a demonstração de antecedentes penais[21].

Conclusão

Assim postos os limites pertinentes à intervenção sobre o investigado, a confi ssão e o direito ao silêncio decorrerão, conforme o caso, de práticas constitucionalmente válidas, ao mesmo tempo em que a proteção à dignidade da pessoa investigada alcançará limites reais e não simplesmente retóricos, obstando-se a fraude à Constituição na produção do material com o qual o juiz formará o seu convencimento.

Assim postos os limites pertinentes à intervenção sobre o investigado, a confissão e o direito ao silêncio decorrerão, conforme o caso, de práticas constitucionalmente válidas, ao mesmo tempo em que a proteção à dignidade da pessoa investigada alcançará limites reais e não simplesmente retóricos, obstando-se a fraude à Constituição na produção do material com o qual o juiz formará o seu convencimento.

Não há prova ou mesmo indício, caso não se considere a este último como prova, na confissão desprovida da implementação do direito ao silêncio, em qualquer etapa da persecução penal.

Na hipótese da prova originar-se exclusivamente de confissão a que se furtou o cumprimento do dever de instrução, há de ser considerada, a prova, como derivada daquela ilicitamente obtida, interditando-se a sua avaliação.

Em uma abordagem crítica é possível dizer que o dever irrestrito de instrução sobre a existência e conteúdo do direito ao silêncio, difundido amplamente e tutelado pelos tribunais de modo eficaz, pode ser fator sensível de consagração da máxima pela qual os direitos não reconhecem limitação subjetiva ou territorial (não valem exclusivamente para as pessoas de cor branca ou que moram no asfalto), cumprindo o fi m de universalidade que é próprio à sua vocação.


* Este artigo foi publicado originalmente em Juris Poiesis Revista de Direito dos Cursos da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, v.1, n. 1, p.159-169, 1999; e na Revista Doutrina. Instituto de Direito, Rio de Janeiro, 1ª edição, p.43-52, 1999. Extraído do livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado, o qual é uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.

PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 25-34


Notas e Referências:

[2] GRINOVER, Ada Pellegrini. Uma Proposta Inovadora no Processo Penal, in: O Processo em sua Unidade – II, Rio de Janeiro, Forense, 1984.

[3] Op. cit., p. 228.

[4] TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. 4, São Paulo, Saraiva, 1978, p. 46.

[5] Idem.

[6] HAMILTON, Sérgio Demoro. O Desvalor da Confissão Policial, in: Temas de Processo Penal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998

[7] Op. cit., p. 136 e 138.

[8] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A Prova por Indícios no Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1994.

[9] Idem, p. 76.

[10] TORNAGHI, Hélio. Op. cit. P. 47.

[11] CASTRILLO, Eduardo de Urbano e MORATO, Miguel Angel Torres de. La Prueba Ilícita Penal: Estudio Jurisprudencial, Pamplona, Aranzadi, 1997, 59.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, Madri, Trotta, 1997.

[13] DIAS, Jorge de Figueiredo. O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1992.

[14] HASSEMER, apud NETO, Theodomiro Dias. O Direito ao Silêncio in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.º 19, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 180.

[15] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, p. 20.

[16] ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.

[17] Idem, p. 15.

[18] BARBALHO, João apud MENDES, Gilmar Ferreira. Signifi cado do Direito de Defesa in: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Celso Bastos, 1998, p. 93.

[19] COMPARATO, Fábio Konder. Liberdades Formais e Liberdades Reais in: Para Viver a Democracia, São Paulo, Brasiliense, 1989.

[20] NETO, Theodomiro Dias. Op. Cit., p. 188.

[21] CASTRILLO, Eduardo de Urbano e MORATO, Miguel Angel Torres. Op. cit., p. 64.


Sem título-1     Geraldo Prado é Professor da UFRJ e Consultor Jurídico.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  


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