Por Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa - 09/05/2015
I - O crime e a audiência de custódia assustam?
Não raras vezes a notícia de um crime nos assusta e joga com o nosso imaginário. Se somos humanos, ao lermos um auto de prisão em flagrante ou uma denúncia descrevendo, por exemplo, a conduta de Paulo K., consistente em ter entrado numa casa, pela madrugada, para o fim de subtrair bens e, no seu percurso, ter sido flagrado pela moradora, senhora idosa, a qual desferiu dois tiros, sem que tivesse morrido, fugindo, na sequência do local do crime e, depois, preso pela polícia, teríamos que preencher as lacunas com a imaginação. Não nos lembraríamos de um rosto doce, respeitador, educado, mas sim de um sujeito que congrega em si os atributos do mal. Essa conduta humana (preencher os espaços desprovidos de informação) cria o que se denomina de efeito priming, ou seja, o efeito que a rede de associações de significantes opera individualmente sem que nos demos conta, fundados naquilo que acabamos de perceber, mesmo na ausência de informações do caso. Daí que a simples leitura da peça acusatória ou do auto de prisão em flagrante gera, aos metidos em processo penal, a antecipação de sentido.
Aí reside o primeiro passo fundamental para o acolhimento da audiência de custódia. Não se tratará mais do “criminoso” que imaginamos, mas sim do sujeito de carne e osso, com nome, sobrenome, idade e rosto. O impacto humano proporcionado pelo agente, em suas primeiras manifestações, poderá modificar a compreensão imaginária dos envolvidos no Processo Penal. As decisões, portanto, poderão ser tomadas com maiores informações sobre o agente, a conduta e a motivação.
Lembre-se que a prisão cautelar é sempre processual, isto é, não serve para antecipar a pena, devendo-se fundamentar a excepcionalidade da contenção cautelar, crítica que já fizemos anteriormente (http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva). Daí ganhar importância o dispositivo estatal para análise das razões da prisão cautelar face-to-face.
Respeito às regras do jogo processual. Essa invectiva é lançada por nós faz anos em textos, assim como de boa parte dos juristas preocupados em estabelecer um padrão mínimo de normas processuais aptas a garantia do devido processo legal substancial. Recentemente discorremos (http://www.conjur.com.br/2015-jan-02/limite-penal-temas-voce-saber-processo-penal-2015) sobre a importância de se conhecer as Convenções de Direitos Humanos, plenamente em vigor no Brasil, indicando o livro de Nereu Giacomolli.
A partir disso, o controle de compatibilidade das leis não se trata de mera faculdade conferida ao julgador singular, mas sim de uma incumbência, considerado o princípio da supremacia da Constituição. No exercício de tal controle deve o julgador tomar como parâmetro superior do juízo de compatibilidade vertical não só a Constituição da República (no que diz respeito, propriamente, ao controle de constitucionalidade difuso), mas também os diversos diplomas internacionais, notadamente no campo dos Direitos Humanos, subscritos pelo Brasil, os quais, por força do que dispõe o artigo 5º, parágrafos 2º e 3º[1], da Constituição Federal, moldam o conceito de "bloco de constitucionalidade" (parâmetro superior para o denominado controle de convencionalidade das disposições infraconstitucionais) [2].
No que concerne especificamente ao chamado controle de convencionalidade das leis, inarredável a menção ao julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, da relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual ficou estabelecido o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à hierarquia das normas jurídicas no direito brasileiro.
Assentou o Supremo Tribunal Federal que os tratados internacionais que versem sobre matéria relacionada a Direitos Humanos têm natureza infraconstitucional e supralegal — à exceção dos tratados aprovados em dois turnos de votação por três quintos dos membros de cada uma das casas do Congresso Nacional, os quais, a teor do art. 5º, §3º, CR, os quais possuem natureza constitucional:
“PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). [...] (RE 349703. Relator: Min. Carlos Ayres Britto) — grifo nosso.
Logo, cumpre ao julgador afastar a aplicação de normas jurídicas de caráter legal que contrariem tratados internacionais versando sobre Direitos Humanos, destacando-se, em especial, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC), bem como as orientações expedidas pelos denominados "treaty bodies" – Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, dentre outros – e a jurisprudência das instâncias judiciárias internacionais de âmbito americano e global – Corte Interamericana de Direitos Humanos e Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas, respectivamente.
E o direito do acusado ser apresentado perante um Juiz, no prazo de 24 horas, portanto, não é nenhuma novidade legislativa. Simplesmente não era aplicado, mas é regra válida do jogo processual (http://www.conjur.com.br/2014-jun-13/contraditorio-processo-penal-nao-amor-tao-complexo-quanto). O Conselho Nacional de Justiça, assim, ao apontar pela efetivação da audiência de custódia, não inventou nada: “O objetivo do projeto é garantir que, em até 24 horas, o preso seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso. Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.”
Entretanto, longe de condenarmos os que estão contra a realização da audiência de custódia, apenas sublinhamos que o viés do status quo é a máxima entoada por boa parte deles. Novidades, alterações, modificações no padrão de ação significam a necessidade de desgastes, novas rotinas, enfim, a revisão do que estão fazendo há anos. A ideia de manter as coisas como estão (bem ou mal) e demasiadamente humana. O imobilismo de sempre fazer o mesmo acaba tomando o lugar do cumprimento da lei. Podemos, assim, dizer que desde a incorporação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao ordenamento brasileiro, ausente audiência de custódia (artigo 7º, 5), todas as prisões são ilegais, conforme decidiu recentemente, em Habeas Corpus impetrado pela Defensoria Pública do RJ (defensor Eduardo Newton), o desembargador Luiz Noronha Dantas (http://s.conjur.com.br/dl/decisao-audiencia-custodia-tj-rj.pdf).
Evidentemente que existirão questões de adequação e certo tempo para implementação efetiva, como, aliás, acontece em diversos países latinos e inclusive nos Estados Unidos. Em todos eles a audiência de custódia se realiza e, nela, mediante razões em contraditório, decide-se sobre a manutenção ou não da custódia e de eventuais medidas cautelares (http://www.conjur.com.br/2015-fev-09/nao-qualquer-esquizofrenia-implantacao-audiencia-custodia). Aliás, a iniciativa reconhece a necessidade de evolução paulatina, partindo das seguintes premissas: “a) as apresentações dos autuados têm que ser ininterruptas (inclusive aos sábados, domingos, feriados, e recesso), b) deve haver estrutura séria e factível, facilitada pelo executivo, em condições de oferecer opções reais e concretas ao encarceramento provisório, c) o monitoramento constante e permanente dos resultados da experiência é condição essencial para corrigir eventuais desvios da experiência que se estará realizando, em tempo real e d) necessidade de prévia capacitação conceitual e instrumental de todos os envolvidos com a novel rotina processual garantista."
No caso narrado acima, o subscritor Alexandre, designou uma audiência para analisar a prisão do agente, tendo se verificado que seria impossível, pelas características do conduzido e, também, pela forma como foi preso, ser o autor da infração. Depois a absolvição foi confirmada em sentença, sem recurso da acusação. Mas a leitura do auto de prisão em flagrante fez com que o acusado ficasse preso até ao que hoje chamamos de audiência de custódia. Teria ficado até a instrução se fosse jogar apenas com o imaginário preenchimento de lacunas.
Teremos, por certo, problemas. A informática e a videoconferência poderão nos ajudar. O que devemos ter, gostemos ou não, é respeito pelas regras do jogo. E nelas, a audiência de custódia é condição de possibilidade à prisão cautelar. A magistratura precisa cumprir as leis. Concordem ou não, já que não há inconstitucionalidade. Evidentemente que a cultura encarceradora não se muda por mágica, nem pela audiência de custódia, mas podemos, ao menos, mitigar a ausência de impacto humano. O futuro nos dirá, talvez, com menos medos imaginários...
II – O Projeto do CNJ e o modelo Paulista
Na efetivação da audiência de custódia, o CNJ e o TJSP implantaram, através do Provimento Conjunto 3/2015, da presidência do Tribunal de Justiça do estado, em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Justiça, o modelo paulista.
A iniciativa é muito importante e alinha-se com a necessária convencionalidade que deve guardar o processo penal brasileiro, adequando-se ao disposto no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) que determina: “Toda pessoa presa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.”
Em diversos precedentes[3] a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) tem destacado que o controle judicial imediato — que proporciona a audiência de custódia — é um meio idôneo para evitar prisões arbitrárias e ilegais, pois corresponde ao julgador “garantir os direitos do detido, autorizar a adoção de medidas cautelares ou de coerção quando seja estritamente necessária, e procurar, em geral, que se trate o cidadão de maneira coerente com a presunção de inocência”, conforme julgado no caso Acosta Calderón contra Equador.
A Corte Interamericana entendeu que a mera comunicação da prisão ao juiz é insuficiente, na medida em que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia, já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”. Nesta linha, o artigo 306 do Código do Processo Penal que estabelece apenas a imediata comunicação ao juiz de que alguém foi detido, bem como a posterior remessa do auto de prisão em flagrante para homologação ou relaxamento, não são suficientes para dar conta do nível de exigência convencional. No Caso Bayarri contra Argentina, a CIDH afirmou que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se procede a liberação ou manutenção da privação da liberdade” sob pena de “despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no artigo 7.5. da Convenção”.
Mas outras duas questões podem ser discutidas à luz do artigo 7.5. A primeira é: o que se entende por “outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”? A intervenção da autoridade policial, do delegado, daria conta dessa exigência? Entendemos que não.
Primeiro porque o delegado de polícia, no modelo brasileiro, não tem propriamente ‘funções judiciais’. É uma autoridade administrativa despida de poder jurisdicional ou função judicial. Em segundo lugar a própria CIDH já decidiu, em vários casos, que tal expressão deve ser interpretada em conjunto com o disposto no artigo 8.1 da CADH, que determina que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial”. Com isso, descarta-se, de vez, a suficiência convencional da atuação do Delegado de Polícia no Brasil.
O segundo ponto que poderia suscitar alguma discussão diz respeito a expressão “sem demora”. A apresentação do detido ao juiz deve ocorrer em quanto tempo? A CIDH já reconheceu a violação dessa garantia quando o detido foi apresentado quatro dias após a prisão (Caso Chaparro Alvarez contra Equador) ou cinco dias após (Caso Cabrera Garcia y Montiel Flores contra México). No Brasil, a tendência (inclusive no PLS 554/2011) é seguir a tradição das 24 horas já consolidada no regramento legal da prisão em flagrante.
No projeto de São Paulo, o artigo 3º determina que “a autoridade policial providenciará a apresentação da pessoa detida, até 24 horas após a sua prisão, ao juiz competente, para participar da audiência de custódia”, bem como que “o auto de prisão em flagrante será encaminhado, na forma do artigo 306, § 1º, do CPP, juntamente com a pessoa detida”.
Uma vez apresentado o preso ao juiz, ele será informado do direito de silêncio e assegurada a entrevista prévia com defensor (particular ou público). Nesta ‘entrevista’ (não é um interrogatório, portanto), o artigo 6º, § 1º determina expressamente que “não serão feitas ou admitidas perguntas que antecipem instrução própria de eventual processo de conhecimento.” Eis um ponto crucial da audiência de custódia: o contato pessoal do juiz com o detido. Uma medida fundamental em que, ao mesmo tempo, humaniza-se o ritual judiciário e criam-se as condições de possibilidade de uma análise acerca do periculum libertatis[4], bem como da suficiência e adequação das medidas cautelares diversas do artigo 319 do CPP.
Essa entrevista não deve se prestar para análise do objeto da imputação (leia-se, autoria, materialidade e culpabilidade), reservada para o interrogatório de eventual processo de conhecimento. A rigor, limita-se a verificar a legalidade da prisão em flagrante e a presença ou não dos requisitos da prisão preventiva, bem como permitir uma melhor análise da(s) medida(s) cautelar(es) diversa(s) adequada(s) ao caso, dando plenas condições de eficácia do artigo 319 do CPP, atualmente restrito, na prática, a fiança. Infelizmente, como regra, os juízes não utilizam todo o potencial contido no artigo 319 do CPP, muitas vezes até por falta de informação e conhecimento das circunstâncias do fato e do autor. Não se trata de produção antecipada de provas, especialmente porque sequer existe imputação formalizada.
Contudo, em alguns casos, essa entrevista vai situar-se numa tênue distinção entre forma e conteúdo. O problema surge quando o preso alegar a falta de fumus commissi delicti, ou seja, negar autoria ou existência do fato (inclusive atipicidade). Neste caso, suma cautela deverá ter o juiz para não invadir a seara reservada para o julgamento. Também pensamos que eventual contradição entre a versão apresentada pelo preso neste momento e aquela que futuramente venha utilizar no interrogatório processual, não pode ser utilizada em seu prejuízo. Em outras palavras, o ideal é que essa entrevista sequer viesse a integrar os autos do processo, para evitar uma errônea (des)valoração.
Neste sentido, melhor andou o PLS 554/2011 ao dispor que “a oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.”
Uma vez ouvido o preso, o juiz dará a palavra ao advogado ou ao defensor público para manifestação, e decidirá, na audiência fundamentadamente, nos termos do artigo 310 do CPP, acerca da homologação do flagrante ou relaxamento da prisão e, após, sobre eventual pedido de prisão preventiva ou medida cautelar diversa. Aqui é importante sublinhar, uma vez mais, que a prisão preventiva somente poderá ser decretada mediante pedido do Ministério Público (presente na audiência de custódia), jamais de ofício pelo juiz (até por vedação expressa do artigo 311 do CPP. A tal ‘conversão de ofício’ da prisão em flagrante em preventiva é uma burla de etiquetas, uma fraude processual, que viola frontalmente o artigo 311 do CPP (e tudo o que se sabe sobre sistema acusatório e imparcialidade), e aqui acaba sendo (felizmente) sepultada, na medida em que o Ministério Público está na audiência. Se ele não requerer a prisão preventiva, jamais poderá o juiz decretá-la de ofício, por elementar.
A audiência de custódia representa um grande passo no sentido da evolução civilizatória do processo penal brasileiro e já chega com muito atraso, mas ainda assim sofre críticas injustas e infundadas.
Voltando para o projeto de São Paulo, infelizmente, ele apresenta dois pontos perigosos:
— Possibilidade de dispensa da apresentação do preso: o artigo 3º, § 2º do Provimento estabelece que ‘fica dispensada a apresentação do preso, na forma do parágrafo 1º, quando circunstâncias pessoais, descritas pela autoridade policial no auto de prisão em flagrante, assim justificarem;
— Não realização durante o plantão: segundo o artigo 10, não será realizada a audiência de custódia durante o plantão judiciário ordinário (artigo 1.127, I, NSCGJ) e os finais de semana do plantão judiciário especial (artigo 1127, II, NSCGJ).
São medidas que podem esvaziar completamente a finalidade da audiência de custódia, mantendo o estado atual da arte, em que basta a simples remessa do auto de prisão em flagrante e a burocrática e distanciada decisão do juiz.
Outra situação muito preocupante (agora em relação ao PLS 554/2011) está contida na Emenda Substitutiva do senador Francisco Dornelles (PP-RJ), que permite substituir a apresentação pessoal do preso ao juiz pelo sistema de videoconferência. Tal medida exige uma leitura mais ampla, para compreender-se que mata o caráter antropológico e humanista da audiência de custódia.
Substituir a apresentação pessoal por uma oitiva por videoconferência é coisificar o preso e inseri-lo no regime asséptico, artificial e distanciado do online, matando ainda a possibilidade de controle dos eventuais abusos praticados no momento da prisão ou da lavratura do auto. Não é preciso maior esforço para verificar que tal emenda substitutiva vem para atender os interesses de esvaziamento do instituto, para que se dê conta, apenas formalmente (e ilusoriamente), da exigência convencional, estando ainda em completa discordância com os julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos anteriormente citados. Não rejeitamos a hipótese excepcional da videoconferência, sem que seja a regra.
Enfim, não há porque temer a audiência de custódia, ela vem para humanizar o processo penal e representa uma importantíssima evolução, além de ser uma imposição da Convenção Americana de Direitos Humanos que ao Brasil não é dado o poder de desprezar.
III – A dinâmica da audiência de custódia
A audiência de custódia só não era cumprida no Brasil e por intervenção positiva do Conselho Nacional de Justiça virou política pública. Destacamos, nos momentos anteriores, as controvérsias e a base normativa, bem assim que deve existir um tempo de acomodação. Dissemos também que o acusado larga inocente, mesmo com prisão em flagrante, inexistindo antecipação de tutela no direito processual penal. A prisão possui fundamento sempre cautelar. Nesta semana continuamos apontando algumas impressões sobre a audiência de custódia no plano da efetivação do ato.
Quem participa da audiência de custódia?
O regime da Constituição e do Código de Processo Penal reserva ao delegado de polícia a função de lavrar o flagrante, transformando em autos a narrativa dos condutores. Além disso, na sequência, poderá conceder fiança nas hipóteses legais. Não cabe à autoridade policial deferir liberdade provisória ou medidas cautelares diferentes do previsto no artigo 319 do Código de Processo Civil. Para isso há reserva de Jurisdição. A polícia judiciária não é órgão do Poder Judiciário (é um paradoxo, mas é uma polícia judiciária não subordinada ao Poder Judiciário), mas do Executivo. Daí que a alegação de que o Delegado de Polícia seria a outra autoridade referida pela Convenção não se sustenta.
A audiência de custódia deve ser presidida por autoridade munida das competências capazes de controlar a legalidade da prisão — o delegado lavra e o juiz controla. Além disso, já nessa fase, tanto Ministério Público como defesa devem sustentar as razões pelas quais a constrição cautelar deve ou não ser mantida. Há reserva de Jurisdição. Logo, além do Juiz, devem participar Ministério Público e defesa.
Qual o objeto da audiência de custódia?
A audiência de custódia não é uma audiência para fins de colheita de prova. É o espaço democrático em que a oralidade é garantida. Seu objeto é restrito, ou seja, não há interrogatório, nem produção antecipada de provas. Há uma prisão decorrente do flagrante e a necessidade de controle jurisdicional. O ato que era praticado exclusivamente pelo magistrado, sem participação dos jogadores processuais (Ministério Público e Defesa), agora muda completamente sua morfologia. Com isso, se dá também efetividade ao disposto no art. 282, § 3º, do CPP, no sentido de que o contraditório legitima o ato decisório, uma vez que pode acolher e rejeitar os argumentos, conta com a efetiva participação dos agentes processuais.
Quais os passos da audiência de custódia?
Na audiência de custódia deve-se seguir os seguintes passos:
1) A prisão é legal, isto é, era hipótese de flagrante (CPP, art. 302, 303)?
2) Se não, relaxa-se; 2.1.) Relaxada a prisão o Ministério Público pode requerer a prisão preventiva ou a aplicação de medidas cautelares;
3) Sustentando-se as razões do flagrante; 3.1) O Ministério Público se manifesta pelo requerimento da prisão preventiva ou aplicação de cautelares ou acolhe as razões formuladas eventualmente pela autoridade policial; 3.2) A defesa se manifesta sobre os pedidos formulados pelo Ministério Público. Se não houve pedido por parte do Ministério Público, o juiz não pode decretá-lo de ofício, já que não existe processo (CPP, artigo 311, vale conferir a redação).
4) O magistrado decide — fundamentadamente — sobre a aplicação das medidas cautelares diversas ou, sendo elas insuficientes e inadequadas, pela excepcional decretação da prisão preventiva.
Podem ser juntados documentos e ouvidas testemunhas?
Os agentes processuais podem juntar documentos para lastrear os respectivos pleitos. Não cabe a oitiva de testemunhas nessa fase. A audiência é com objeto restrito.
Pode a audiência ter continuidade?
Pode a audiência ter continuidade? Entendemos que sim, especialmente nos casos de violência doméstica. É muito comum que nos casos de ação penal privada ou condicionada à representação a vítima seja instada a participar do ato. Nessa situação a Delegacia de Polícia já deve deixar a vítima ciente do ato judicial. Alguns juizados de violência doméstica já estipularam horários diários para apresentação do preso e orientam a autoridade policial que intime a vítima para comparecer oportunamente. Como a conduta recém aconteceu, em alguns casos, a vítima está sob efeito de forte emoção e solicita um prazo maior para decidir sobre a continuidade da ação penal. Claro que sabemos da decisão do Supremo Tribunal Federal no caso de lesões corporais, mas as condutas não se restringem a ela. Daí ser possível que ausente, por exemplo, comprovação da residência ou de vínculo certo do conduzido, possa-se redesignar a audiência. Em todos os casos, todavia, a decisão sobre a custódia e eventuais medidas cautelares deve ser tomada.
Cabe usar videoconferência?
Em alguns estados americanos a audiência de custódia é feita por vídeo conferência. Essa modalidade encontra ainda certa desconfiança dadas as condições de pressão que podem ocasionar no estabelecimento penal. Existe a possibilidade de um Defensor permanecer no local de custódia e participar conjuntamente do ato ou mesmo de um estar com o conduzido e outro na sala de audiências. Não podemos dizer que sempre será possível. Entretanto, com as devidas garantias, parece-nos viável não como regra, mas exceção. Assim, cai por terra a histeria de que muitos policiais serão obrigados a se deslocar no transporte do conduzido ao juízo.
Em prisões acontecidas fora do estado de origem do conduzido ou mesmo quando deseje contratar um Defensor que não tenha domicílio no mesmo Estado ou comarca, o uso da tecnologia poderá garantir que a escolha por profissional de sua confiança se efetive. Daí a importância da tecnologia, usada sem receios e com cuidados, em diversos locais do mundo, garantida a entrevista prévia com o defensor.
Reconhecemos, também, que deve ser exceção e justificada, nos mesmos moldes do artigo 185, parágrafo 2º, do CPP. É que o impacto humano do contato pessoal pode modificar a compreensão. Não podemos é banalizar o uso da videoconferência sob pena de matar um dos principais fundamentos da audiência de custódia: o caráter humanitário do ato, a oportunidade do contato pessoal do preso com o seu juiz.
Controle sobre a integridade física do conduzido
Se o conduzido estiver machucado ou reclamar de tortura, por mais que as lesões possam ser decorrentes do próprio ato de prisão, a leniência do Poder Público resta mitigada e será possível, ao menos, apurar a sua existência. Aliás, como temos insistido, a utilização de aparato de câmeras por parte dos agentes públicos nas suas operações evitaria tanto a alegação de autolesões praticadas pelos conduzidos, bem assim as perpetradas por agentes estatais. E a tecnologia está plenamente disponível. Existem diversos vídeos na internet que demonstram ser a filmagem uma garantia de todos, policiais e conduzidos, mas há gente que não gosta de controle, e se passa. O que se busca é transparência da ação.
IV - O futuro da audiência de custódia
A base normativa é aplicável no Brasil e a audiência de custódia já é uma realidade em diversos Tribunais. A resistência de alguns é mais do que esperada. Também precisamos de um tempo para acomodação das condições materiais. Entretanto, a audiência de custódia é um caminho sem volta. Efetiva o contraditório, a transparência e o controle efetivo de todos os atos, garantindo-se todos os envolvidos.
Terminamos com a história da Nasrudin que um dia procurou o médico e disse: “— Doutor, todo meu corpo dói. Quando toco a cabeça com o dedo, me dói. Quando me todo aqui, no estômago, o mesmo. Quando me toco o joelho, aparece a dor. Quando toco o pé, me dói. Que devo fazer? Como posso aliviar a dor?” O médico examina e diz: “— Teu corpo está bom. Porém tens o dedo quebrado...”
Quer ler mais sobre o tema? Veja a decisão inédita do TJPR: http://emporiododireito.com.br/tjpr-em-decisao-inedita-reconhece-a-necessidade-da-audiencia-de-custodia-por-patricia-cordeiro/
◊ Texto anteriormente apresentado, em partes, na conjur.
[1] Uma análise mais ampla pode ser encontrada no artigo “Audiência de Custódia e a Imediata Apresentação do Preso ao Juiz: Rumo a Evolução Civilizatória do Processo Penal”, que publicamos em co-autoria com Caio Paiva na Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, v. 1, p. 161-182, 2014.
[2] Sobre o tema recomendamos a leitura de nossas obras “Direito Processual Penal”, 12ª edição e “Prisão Cautelar”, ambas publicadas pela Editora Saraiva.
[3] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais [4] PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 170: “O Direito Internacional dos Direitos Humanos pode reforçar a imperatividade de direitos constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais complementam dispositivos nacionais ou quando estes reproduzem preceitos enunciados na ordem internacional – ou anda estender o elenco dos direitos constitucionalmente garantidos – quando os instrumentos internacionais adicionam direitos não previstos pela ordem jurídica interna.
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Aury Lopes Jr é advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
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Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC e do Mestrado e Doutorado da UNIVALI(SC).
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Imagem Ilustrativa do Post: S7 sunset behind bars // Foto de: Alexandre Ataide // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/acataide/5009919565/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode