Por G. Couto de Novaes - 09/03/2017
“Diálogo das fontes” é expressão que foi cunhada por Erik Jayme, em seu Curso Geral de Haia de 1995, com o escopo de evidenciar o contexto do atual “pluralismo pós-moderno” do Direito, cujo arcabouço de suas fontes e legislações apresenta-se de tal sorte plúrimo, que faz reclamar um novo conceito no que tange à interpretação e aplicação das leis de um mesmo ordenamento.
Trata-se, nessa trilha, da busca de um sistema jurídico mais justo e eficiente, de se promover uma espécie de coordenação à aplicação simultânea e coerente das mais diversas leis especiais (CDC); gerais (CC/2002) e fontes de direito privado, sob a inspiração axiológica da Constituição Federal (BENJAMIN; BESSA; E MARQUES, 2013, p. 122).
Corroborando os três tipos de diálogos sustentados por Benjamin, Bessa e Marques (o diálogo sistemático de coerência, o diálogo de complementaridade e subsidiariedade e o diálogo de coordenação e adaptação), Bruno Miragem (2013, p. 70) desenvolve:
[...] No primeiro caso, o diálogo de coerência apresenta-se pelo fato de uma lei poder servir de base conceitual para outra. No caso, o Código Civil, como centro do sistema de direito privado, forma os conceitos básicos para interpretação e aplicação do direito do consumidor. [...]
O diálogo de complementaridade e subsidiariedade consiste na adoção de princípios e normas, em caráter complementar, por um dos sistemas, quando se fizer necessário para a solução de um caso concreto. Neste sentido, não há necessariamente o afastamento de uma lei, ou sua superação por outra, mais nova ou especial, senão que estas normas se complementam na aplicação, em vista do caso que se está a decidir. [...]
Por fim, o diálogo de coordenação e adaptação sistemática apresenta-se sob dois aspectos principais. De um lado, a possibilidade de transposição da reflexão doutrinária e jurisprudencial da praxis do direito do consumidor, durante o período de vigência do CDC, para a interpretação e aplicação do Código Civil [...] Da mesma forma, pode o atual Código Civil influenciar em uma redefinição do âmbito de aplicação do CDC [...]
Nesse sentido, paradigmático que no direito brasileiro o próprio Código de Defesa do Consumidor claramente autoriza e não prescinde desse diálogo:
Art. 7.º Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos internos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.
Bem assim o Egrégio Superior Tribunal de Justiça delineou:
[...] o art. 7º da lei nº 8.078/90 fixa o chamado diálogo das fontes, segundo o qual sempre que uma lei garanta algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microsistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo (REsp 103.7759, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJ 05/03/10).
Manifestações como a supra colacionada do Superior Tribunal de Justiça, a respeito do alcance do conteúdo do art. 7º do CDC no ordenamento interno, vem conferir robustez à aplicação do diálogo das fontes, que tem se contraposto, satisfatoriamente, a ideia de conflito de leis no tempo, outrora indiscriminadamente aceita.
Basta pensar que, sob uma acepção ortodoxa do conflito de leis no tempo, o CDC (de 1990), uma lei anterior, e o Código Civil Reale (de 2002), uma lei posterior, estariam em “conflito” e, que, por conseguinte, a solução para uma situação semelhante teria que aparecer por meio da prevalência de uma norma e exclusão da outra lei do sistema.
Felizmente, a nossa doutrina majoritária e jurisprudência vem se consolidando no sentido de rechaçar a exclusão, preferindo homenagear a leitura que identifica o ordenamento jurídico como um sistema coordenado e coerente para com os valores e princípios constitucionais.
Assim, a apropriada lição de Felipe Braga Netto (2012, p. 46):
Em relação às fontes legislativas, não existe “a” fonte; existe uma multiplicidade delas, sem que nenhuma ocupe uma posição de absoluta proeminência, excludente das demais. Além disso, ficou no passado a divisão rígida e inflexível entre direito público e direito privado. As influências recíprocas são muito fortes. Tudo, sob certo aspecto, interpenetra-se.
Outro não é o caminho que vem restando consolidado em sede jurisprudencial e de precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Estaduais, dos Juízos de primeira instância e dos Juizados Especiais Cíveis, que em inúmeros casos vem procedendo à aplicação simultânea do CDC com mais de uma lei geral ou especial, de maneira a assegurar a prevalência do valor constitucional de proteção do consumidor.
E apesar de, em princípio, o STJ se mostrasse relutante a esta visão de convivência de fontes como instrumento hábil a conferir eficácia à proteção constitucional especial dos vulneráveis, observa-se que aquele Colendo Superior Tribunal vem estabelecendo a possibilidade de um “diálogo” de aplicação simultânea de leis especiais, Código Civil e CDC, com fito de proteção mais eficaz, notadamente dos consumidores. Assim:
O mandamento constitucional de proteção do consumidor deve ser cumprido por todo o sistema jurídico, em diálogo de fontes, e não somente por intermédio do CDC. (REsp. 1.009.591-RS, j. 13.04.2010, rel. Min. Nancy Andrighi).
Qualquer aparente antinomia entre as normas é solucionada, modernamente, com a observância da teoria pós-moderna do diálogo das fontes, que viabilizada a aplicação simultânea, coerente e coordenada de fontes legislativas plúrimas e convergentes, à luz dos valores e princípios albergados pela Constituição da República, afastando-se, pois, métodos tradicionais e excludentes de resolução de supostos conflitos normativos. (REsp. 1.150.711-MG, voto do Min. Marco Buzzi, j. 06.11.2011).
É imprescindível registrar que passo crucial para a construção do novo olhar dos tribunais sobre o “diálogo das fontes” deu-se mesmo antes do advento da maioria das ementas supra aludidas, por ocasião da edição, pelo mesmo STJ, da súmula nº 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
Perceba-se que certamente tal entendimento sumulado abriu caminho para que o Supremo Tribunal Federal, em histórico julgamento da ADI nº 2.591/2006 (a chamada “ADin dos bancos”), concluído em junho de 2006, considerasse improcedente o pedido formulado pela Confederação Nacional das Instituições financeiras (Consif), firmando assim pela constitucionalidade da aplicação do CDC a todas atividades bancárias, e reconhecendo, portanto, a necessidade atual do “diálogo das fontes”.
Nesse sentir, a substância do voto do Ministro Joaquim Barbosa, naquela assentada:
[...] Entendo que o regramento do sistema financeiro e disciplina do consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis. [..] Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em ‘influências recíprocas’, em ‘aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente’. [...]
Portanto, a decisão da aludida ADin 2.591 consagrou a plena possibilidade de no ordenamento jurídico brasileiro normas de direito privado (bancárias e de consumo) se entrelaçarem em convivência harmônica, aplicando-se as regras do microssistema jurídico de consumo - quando for o caso -, no âmbito das atividades bancárias, mesmo havendo legislação especial bancária, financeira, de crédito e securitária. (BENJAMIN; BESSA; E MARQUES, 2013, p. 135).
Em conclusão, constata-se que semelhante orientação hermenêutica, que embora nem de longe teve exaurida sua análise por meio das despretensiosas reflexões ora tecidas, vem sendo vigorosamente frutificada no ordenamento pátrio, almejando, dentre outros desideratos, promover o princípio da interpretação mais favorável àquele que se encontra em situação de vulnerabilidade, a ex. do consumidor (CDC, art. 47). Desse modo, é importante consignar que o “diálogo das fontes” encontra-se em nosso arcabouço jurídico mais do que legalmente autorizado, apresenta-se mesmo expressamente recomendado (art.7º, CDC).
Notas e Referências:
BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. MANUAL DE DIREITO DO CONSUMIDOR. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
BRAGA NETO, Felipe. MANUAL DE DIREITO DO CONSUMIDOR. 7. ed. rev. atual. E ampl. Salvador: Editora Juspodium, 2012.
BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Súmula 297. Brasília, DF. Disponível em: <www.stj.jus.br/docs.internt/verbetesstj.asc.txt> Acesso em: 07/11/2014.
BRASIL. Lei 8078, do dia 1 de Setembro de 1990. Sobre a proteção do consumidor e outra providências. Brasília, DF. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccvil/leis/l18078.htm) Acesso em: 07/11/2014.
MIRAGEM, Bruno. CURSO DE DIREITO DO CONSUMIDOR. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
. . G. Couto de Novaes é Advogado, sócio no Pereira & Couto Advocacia, em Salvador. Bacharel em Direito pela UNIFACS. hcoutodenovaes@gmail.com . .
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