O DIA 25 DE JULHO E TEREZA DE BENGUELA: UMA HISTÓRIA DE LUTA E RESISTÊNCIA DA MULHER NEGRA    

26/07/2021

No dia 25 de julho comemora-se o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e, no Brasil especialmente, homenageia-se, a propósito, Tereza de Benguela, uma líder quilombola que se tornou rainha, e uma guerreira que resistiu bravamente à escravidão por décadas. A efeméride originou-se do 1º. Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992, quando foi criada a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-Caribenhas e, ao longo de décadas, consolidou-se como uma data que marca a luta do movimento negro e da resistência das mulheres negras, que acabam por sofrer duplamente: com o racismo e com o machismo.

Portanto, a data, além de sua simbologia e significado evidentes, deve também marcar a luta das mulheres contra a violência (neste caso, vítimas negras e brancas) e contra as recentes implementações de políticas públicas que visam a desconstruir conquistas sociais, muitas delas relativas às mulheres negras, sem dúvidas, um dos setores mais explorados e oprimidos da sociedade brasileira, fato constatado por inúmeros indicadores sociais e econômicos.[1]

De acordo com o estudo Atlas da Violência 2019, pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram mortas, o maior número registrado desde 2007. Além disso, segundo a pesquisa, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 1,6% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%.

Em números absolutos, a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%, mostrando a enorme dificuldade que o Estado brasileiro tem de garantir a universalidade de suas políticas públicas. Chamou a atenção dos pesquisadores a “percepção de ter havido crescimento nos casos de feminicídio no país”, causando-lhes enorme preocupação “a flexibilização da posse e porte de armas de fogo no Brasil.” Assim, “considerando os altíssimos índices de violência doméstica que assolam o Brasil, a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo dentro de casa tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em situação de violência, verificando-se “a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições.”

Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio foram negros (entre pretos e pardos, conforme critério adotado pelo IBGE), sendo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0%. Portanto, ao menos proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.

O estudo, mais uma vez, constatou “a continuidade do processo de profunda desigualdade racial no país”, ficando “evidente a necessidade de que políticas públicas de segurança e garantia de direitos devam, necessariamente, levar em conta tais adversidades, para que possam melhor focalizar seu público-alvo, de forma a promover mais segurança aos grupos mais vulneráveis.”[2]

Em outra pesquisa, agora realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), provou-se que 39,8% de mulheres negras compõem o grupo submetido a condições precárias de trabalho – homens negros abrangem 31,6%; mulheres brancas, 26,9%; e homens brancos, 20,6% do total. E esse quadro de desigualdade é evidenciado mesmo quando a graduação no ensino superior é considerada, conforme atestou-se na pesquisa “O Desafio da Inclusão”, do Instituto Locomotiva, divulgada em 2017: o salário de uma mulher negra com o ensino superior completo é, em média, R$ 2,9 mil; dentro desse mesmo cenário, o de uma mulher branca é R$ 3,8 mil; o de um homem negro, R$ 4,8 mil; e o de um homem branco, R$ 6,7 mil.

Ademais, e para agravar a situação, “os impactos econômicos na vida da mulher negra aumentou em tempos de pandemia da covid-19, junto às recentes contrarreformas como da Previdência, diminuição de leis trabalhistas e das terceirizações. As mulheres negras são a maioria no trabalho doméstico e minoria em boa parte dos serviços essenciais, e a população negra é impactada por ter maior participação na informalidade, primeiros postos a serem afetados na crise.”[3]

Sem dúvidas, “o quadro recessivo gerado pelo isolamento social atingiu quase todos os setores da economia e trabalhadores, mas grupos que ocupam, historicamente, posições menos favoráveis no mercado de trabalho têm sido impactados com maior intensidade, como é o caso das mulheres e da população negra. O canal de contágio da atual crise sobre o trabalho feminino tem sido, principalmente, o trabalho doméstico, com muitas dessas trabalhadoras - a maioria negras - sendo dispensadas por seus empregadores com pouca ou sem remuneração.”

Importante observar, ainda, que “as mulheres também são atingidas pelo modo como se inserem no mundo do trabalho: elas ainda são minoria nos postos ligados à produção, como a indústria, transportes e construção, atividades consideradas essenciais nos decretos governamentais de isolamento social. Já entre os serviços não essenciais estão os salões de beleza e estética - ocupados majoritariamente por mulheres.”

Esse quadro atinge de maneira mais acentuada exatamente “a população negra, por sua vez, tem sido afetada por compor a maioria dos trabalhadores informais, que são os primeiros a serem demitidos em momentos de crise. Além disso, eles são a maior parte dos brasileiros que trabalham nos comércios de rua, como vendedores ambulantes, por exemplo, que tiveram que ir para as suas casas com as medidas de confinamento. Tem sido comum, durante o período de isolamento, relatos de diaristas que foram dispensadas pelos patrões sem suporte financeiro ou que estão vivendo com o pouco dinheiro pago por alguns deles.”[4]

Mas, não apenas na informalidade essa disparidade mostra a triste e trágica realidade brasileira vivida pelas mulheres negras; assim, por exemplo, “no setor bancário, o fato de ser uma mulher negra também coloca as trabalhadoras em posição de desvantagem frente aos demais colegas. Um exemplo é a disparidade salarial. Uma bancária negra ganha em média 26% menos do que um bancário branco. Mesmo com mais anos de escolaridade, representando praticamente metade da categoria bancária (48,3%) e sendo a maioria no Sudeste (51,9%), as mulheres enfrentam maiores barreiras para ascender na carreira no setor financeiro.”

Apesar que entre as mulheres, a proporção de bancárias com ensino superior completo é de 47,9%, enquanto que entre os homens essa proporção cai para 38,9%, ainda assim, apenas 0,3% das mulheres no setor ocupam cargos de alta direção, enquanto que entre os homens a proporção sobre para 1%. Além disso, entre todas as bancárias, 19,9% já foram promovidas mais de três vezes no banco. Já entre homens, a proporção sobe para 31,7%.[5]

Mas, e de toda maneira, o dia 25 de julho, como dito no início do texto, também procura resgatar a história da mulher negra no Brasil, marcada por uma saga de luta e brava resistência, desde o período colonial, vítimas que foram da escravização formal. Muitas delas, como Tereza de Benguela, lideraram insurreições e o Quilombo de Quariterê; conforme documentos da época, o lugar abrigava mais de 100 pessoas, com aproximadamente 79 negros e 30 indígenas. O quilombo, localizado no Vale do Guaporé (MT), resistiu da década de 1730 até 1795 e a sua liderança permaneceu até ela ser morta, após capturada por soldados em 1770.[6]

Tereza de Benguela, depois das guerreiras dos mocambos de Palmares, certamente é a liderança feminina mais conhecida dos quilombos coloniais do Brasil, uma africana escravizada que talvez tenha chegado às áreas de mineração por volta de 1730.[7] A Rainha Tereza, como passou a ser conhecida em sua época, comandou uma comunidade que unia pessoas negras e indígenas para defender o território onde viviam, resistindo bravamente à escravidão por décadas, sendo a líder de uma estrutura política, econômica e administrativa dentro comunidade, inclusive, criando uma espécie de parlamento e reforçando a defesa do quilombo com armas adquiridas a partir de trocas ou deixadas após os conflitos.[8]

No quilombo era cultivado algodão (que servia posteriormente para a produção de tecidos), milho, feijão, mandioca, banana, entre outros. Segundo o Anal de Vila Bela, do ano de 1770, ela governava o quilombo “a modo de parlamento, tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias assinalados de todas as semanas, entravam os deputados, sendo o de maior autoridade, tido por conselheiro, José Piolho, escravo da herança do defunto Antônio Pacheco de Morais. Isso faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se executavam à risca, sem apelação nem agravo.” Nesse mesmo documento afirma-se que, após ser capturada em 1770, “em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela, se lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele Quilombo, em um alto poste, onde ficou para memória e exemplo dos que a vissem”.[9] Alguns quilombolas conseguiram fugir ao ataque e o reconstruíram, mas, mesmo assim, em 1777, foi novamente atacado pelo exército, sendo finalmente extinto em 1795.[10]

Portanto, para concluir, “não podemos esquecer Tereza de Benguela e é preciso levantar sua bandeira de luta, nos revoltar contra esse Estado genocida e reivindicar sua história, que não é lembrada nos livros ou sequer é estudada nas escolas. As mulheres, ao longo da história, foram construindo formas de resistência e enfrentamento ao patriarcado e as lutas feministas nos dias de hoje foram forjadas a partir do legado de mulheres como Tereza de Benguela. Vozes de Tereza de Benguela, e muitas outras, ecoam nas manifestações de movimentos feministas e de mulheres que são diversos, e que apontam caminhos em tempos de crise profunda do capital. Precisamos nos mobilizar na ofensiva contra esse modelo. O momento nos exige muita organização e a capacidade de nos articular para fazer lutas que possam alterar nossa vida cotidiana, para transformar a história.[11]

Afinal, como disse Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.”[12]

 

Notas e Referências

[1] Veja-se, por exemplo, que, recentemente, a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de 200 organizações em defesa de direitos de afrodescendentes, apresentou uma denúncia à ONU, contra o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, por violações de direitos humanos. O grupo cita "constantes ataques ao patrimônio histórico e cultural da população negra e aos direitos humanos, bem como os constantes ataques a jornalistas e ao trabalho de comunicação voltados às denúncias públicas sobre temas relacionados a racismo". Na denúncia, enviada ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos, a coalizão pede que a ONU notifique o Estado brasileiro sobre a situação. No documento, a coalizão afirma que "são graves e constantes os ataques promovidos por Sérgio Camargo que tem trilhado uma cruzada ideológica contrária aos direitos humanos e às conquistas de direitos da população negra". Entre as decisões citadas está o banimento de cerca de 300 livros do acervo literário da fundação, por serem supostamente "alheias à missão institucional" da entidade. Menciona ainda a retirada de 27 nomes da lista de personalidades negras, entre eles Gilberto Gil, Marina Silva e Benedita da Silva. Os atos foram suspensos pela Justiça. Segundo a denúncia, desde que foi criada, em 1988, a fundação "tem promovido a política cultural igualitária e inclusiva a fim de promover a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais". Para o grupo, "tendo em vista sua relevância e o escopo institucional, se torna óbvio que a fundação deve contar com a administração e representação de pessoa apta e comprometida com a defesa de seus princípios institucionais e os interesses da população negra". Segundo a Coalizão Negra por Direitos, "Sérgio Camargo enquanto gestor público tem ferido a Constituição Federal, bem como descumpre com os compromissos ratificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sua atuação tem sido pautada em ações violadoras de direitos, contrárias à ética profissional e escopo institucional da Fundação Cultural Palmares, merecendo repúdio". Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/07/22/coalizao-de-movimentos-negros-denuncia-sergio-camargo-a-onu-por-violacoes-de-direitos-humanos.ghtml?fbclid=IwAR3Oowbm2jbJG3_Mdcd4IuBK1xBPaRBY6Lm6ehZZ_4RslTexEpPZ9hFWT20. Acesso em 24 de julho de 2021.

[2] Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em 24 de julho de 2021.

[3] Disponível em: https://www.assufrgs.org.br/2020/07/24/25-de-julho-dia-internacional-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha/. Acesso em 24 de julho de 2021.

[4] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/30/recessao-gerada-por-pandemia-impacta-mais-mulheres-e-negros-no-mercado-de-trabalho.ghtml. Acesso em 24 de julho de 2021.

[5] Disponível em: https://spbancarios.com.br/07/2019/25-de-julho-dia-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha. Acesso em 24 de julho de 2021.

[6] Disponível em: https://www.assufrgs.org.br/2020/07/24/25-de-julho-dia-internacional-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha/. Acesso em 24 de julho de 2021. Segundo Emmanuel de Almeida Farias Junior, Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas, “os territórios negros do Guaporé são constituídos a partir de distintos processos de territorialização. Tais processos remetem à denominada ´situação colonial` e à ação ´bandeirante` nos confins do sertão, na busca de riquezas. Rebeldias, fugas, doenças e esgotamento das lavras de ouro constituem condições para a formação de quilombos no Guaporé. Os quilombos foram duramente perseguidos pelo governo provincial de Mato Grosso, com o esgotamento das lavras e as doenças, os senhores de escravos fugiram do Guaporé, abandonando a escravaria à própria sorte. Livres, os fugitivos e os não fugitivos passaram a povoar o vale do Guaporé e a constituir unidades familiares autônomas. Com o advento das novas frentes de expansão, os territórios passaram a ser novamente ameaçados: primeiro os seringalistas, depois os pecuaristas e o próprio Estado (Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1467/984. Acesso em 24 de julho de 2021).

[7] GOMES, Flávio dos Santos, LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 539.

[8] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/28/artigo-a-luta-de-tereza-de-benguela-e-as-mulheres-da-resistencia. Acesso em 24 de julho de 2021.

[9] Disponível em: https://www.geledes.org.br/tereza-de-benguela-uma-heroina-negra/. Acesso em 24 de julho de 2021. Há divergência sobre a sua morte, havendo relatos que, com o ataque de 1770, ela foi capturada e se suicidou na prisão.” (GOMES, Flávio dos Santos, LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 540).

[10] Sobre o fim do Quilombo, também há divergência; segundo alguns autores, “ele foi crescendo, de tamanho e em população, e formou mais de um núcleo, atraindo as expedições punitivas das autoridades coloniais. Visto como ameaça, era atacado, mas ressurgia. Em 1770, porém, ocorreu uma grande expedição punitiva e o Quariterê foi considerado extinto.” (GOMES, Flávio dos Santos, LAURIANO, Jaime, SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 539).

[11] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/28/artigo-a-luta-de-tereza-de-benguela-e-as-mulheres-da-resistencia. Acesso em 24 de julho de 2021.

[12] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html. Acesso em 24 de julho de 2021.

 

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