O dever da defesa da legalidade para os juristas - Uma análise sobre Rui Barbosa e a cultura Penal no Brasil

23/06/2016

Por Daniel da Costa Gaspar - 23/06/2016

Em outubro a colega Letícia Poncheli, através da comunidade Jusbrasil me questionou se o clamor social devia ou não influenciar na atuação jurisdicional. Então li, reli, revi, vários autores de opiniões divergentes O resultado é o artículo que segue, qual divido com a Comunidade Jusbrasileira, caminhando pela mata aberta pelo imortal Doutor Rui Barbosa.

Entre as infindas expressões em latim que nos acostumamos desde o primeiro período do curso de Direito, estão o Fumo Boni Juris e o in dúbio pro réu. O primeiro assevera a prática e a condução pelo bom direito, respeitando os princípios gerais da arte jurídica, observando as leis positivadas e principalmente a dignidade da pessoa humana em seus direitos fundamentais quanto cidadão. O segundo vem mais a frente no decorrer da vida acadêmica, quando somos apresentados ao direito penal, mas é um desdobramento lógico e necessário do primeiro, ensinando aos novos juristas a importância da seguridade jurídica, da decisão judicial pautada em provas e seguindo os certames do devido processo legal, decisão que não está sujeita ao calor das massas, mas sim o frio teor da legalidade.

A frieza da legalidade é outro importante valor ao qual somos (ou deveríamos ser) moldados nos bancos acadêmicos. O iluminado Professor Rui Barbosa em carta a seu colega e compartidário Dr. Evaristo de Morais, em 1911, serenamente ensinava ao seu douto interlocutor as mesmas lições que baseiam a atuação dos bons e apaixonados juristas pelo decorrer dos tempos:

“A Ordem Legal se manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais (...)

Esta incumbência à tradição jurídica das mais antigas civilizações a reservou sempre ao ministério do advogado. A este, pois, releva honrá-lo, não só arrebatando à perseguição os inocentes, mas reivindicando, no julgamento dos criminosos, a lealdade às garantias legais, a equidade, a humanidade.

(...)

Circunstâncias há, porém, ainda entre as nações mais adiantadas e cultas, em que esses movimentos obedecem a verdadeiras alucinações coletivas. Outras vezes a sua inspiração é justa, a sua origem magnânima. Trata-se de um crime detestável que acordou a cólera popular. Mas, abrasada assim, irritação pública entra em risco de se descomedir. Já não enxerga a verdade com a mesma lucidez. O acusado reverse aos olhos a condição de monstro sem traço de procedência humana. A seu favor não se admite uma palavra. Contra ele tudo o que se alegar, ecoará em aplausos.

Desde então começa a justiça a correr em perigo, e com ele surge para o sacerdócio do advogado a fase melindrosa, cujas dificuldades poucos ousam arrostar. Faz-se um mister resistir à imparcialidade dos ânimos exacerbados, que não tolera a serenidade das formas judiciais. Em cada uma delas a sofreguidão pública descobre um fato à impunidade. Mas é ao contrário, o interesse da verdade o que exige que elas se esgotem; e o advogado é o ministro desse interesse. Trabalhando por que não faleça ao seu constituinte uma só dessas garantias da legalidade, trabalha ele, para que não falte à justiça nenhuma de suas garantias.

Eis por que, seja quem for o acusado, e por mais horrenda que seja a acusação, o patrocínio do advogado, assim entendido e exercido assim, terá foros de meritórios, e se recomendará como útil a sociedade ” [1] (GRIFOS PRÓPRIOS)

Nestes parágrafos, dirigidos a um advogado em dilema moral mas endereçado a todos os operadores do direito, o grande mestre ensina que o pensamento jurídico deve estar em defesa da democracia e dos valores do civilismo, definido pelo mesmo autor na mesma obra como governo da lei. Deste modo os juristas devem se despir dos ranços sociais que afligem os leigos para garantir a manutenção do Estado de Direitos, sendo estes os bastiões da construção da liberdade.

Não se trata de ignorar o que dizem os leigos, ou acreditar que o Direito, em especial o Penal, é uma matéria imutável, alheia a dialética, ou que os clamores populares não devem nunca ser objeto do estudo ou da positivação jurídica. Mas sim da defesa da legalidade, do devido processo legal e da irredutibilidade dos direitos constitucionais, como pilares para a evolução de uma sociedade pautada pelos princípios democráticos, dos quais não se deve abrir mão nem nos momentos de maiores crises.

Ainda que o réu seja confesso, de qualquer que seja o crime, lhe resta ser julgado estritamente por seu ato cometido a luz do direito democraticamente positivado, e não da dor da vítima ou do ódio popular. A ampla defesa processual e meritória é parte fundamental dos direitos da pessoa humana em uma democracia que não admite tribunal de exceção, conforme prevê a Constituição da República, em seu art. ,XXXVII.

Cabe ressaltar, antes de adentrarmos no estudo propriamente dito, que o direito penal admite, segundo o Professor Juarez Cirino dos Santos[2], fontes materiais e formais para as normas penais, sendo as formais subdivididas em “escritas e não escritas, sendo as fontes escritas a lei, a jurisprudência e a doutrina e as não escritas sendo os costumes, os princípios gerais do direito e o poder negocial dos cidadãos”. Mas quando uma dessas fontes contradiz as demais?

Não faltam exemplos de conflitos entre normas, entre normas e princípios, princípios e costumes, costumes e normas, mas e quando a jurisprudência contradiz todos os demais? Quando a Jurisprudência contradiz a lei escrita? Existem várias formas de solução para estes conflitos, todos vastamente difundidos pela doutrina... Mas curiosamente no direito penal parece que tais métodos de solução não se fazem ouvir, há gabinetes que do alto de seus confortos e auxílios reduz tais maquinações doutrinárias a “in dúbio pau no reu”. Quem nunca ouviu esta orientação? Não se trata aqui de desacreditar o trabalho do judiciário ou das instituições policiais, mas sim de iniciar a problematização que embasa a motivação deste trabalho.

O Direito penal é um prato cheio de contradições em uma sociedade recheada de desigualdades, com instituições viciadas que não contribuem com suas funções constitucionais, ao atuar ou corroídas pela Canalha da Massa – como nominava Volteire, o Calor popular irracional – ou em busca de benefícios individuais que em nada tem haver com o interesse coletivo. Por tanto não trabalham pelo civilismo de Rui Barbosa, mas sim pela imposição da força e da espada.

De forma brilhante e crítica o Professor Cirino novamente nos lembra que os objetivos declarados da política penal do Estado em seu discurso oficial é “ a proteção dos bens jurídicos tutelados pelo direito, mas sendo a ultima ratio para a solução dos conflitos advindos dos mesmos”. Porém o próprio doutor desconstrói o discurso oficial declarando que “A Definição dos objetivos reais do Direito Penal permite esclarecer o significado político desse setor do ordenamento jurídico, como centro da estratégia de controle social” e por fim arremata “os objetivos reais do Direito, que revelam o significado político do Direito penal, com instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão, das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas nas sociedades contemporâneas”.

Somando a esse mote doutrinário, dados recentemente divulgados[3] do Governo Federal em parceria com o Pnud[4] mostram que 38% da população carcerária do país está sob custódia do Estado sem julgamento, ou seja, possuem seu maior bem jurídico, a liberdade, retida, sem qualquer sentença que o condene meritoriamente a estar sujeito as Sucursais do Inferno. Além disto, esta mesma pesquisa aponta um assustador crescimento de 138% de cidadãos presos nos últimos 7 anos (entre 2008 – 2015), contabilizando um total de 515.482 detentos. A pesquisa ainda aponta que jovens, negros entre 18 e 29 anos são a maioria absoluta dos presidiários – neste caso não caberia usar a terminação apenado, pois a maioria não cumpre pena -.[5]

Tal configuração de agentes e de permissividade social deixam o Direito Penal a mercê o delírio totalitário. De imenso um buraco negro, onde toda a luz do poder constitucional não consegue habitar, um Estado de Exceção que encontra respaldo da jurisprudência e atenta contra a democracia e o civilismo barbosiano.


Notas e Referências:

[1] BARBOSA, Rui – Deveres do Advogado. Carta a Evaristo de Morais. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, Aide Ed., 1994.

[2] Santos, Juarez Cirino dos, Manual de Direito Penal – Parte Geral – 2ª Ed.-Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.

[3] Os Dados divulgados no dia 03 de junho de 2015 e utilizados para endossar este artigo são de responsabilidade da Pnud, Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SPPIR)http://juventude.gov.br/juventude/noticias/lancamento-do-mapa-do-encarceramento-mostra-crescimento-n...

[4] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

[5] Denominação, comparativo, dado pelo Ex-presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil Doutor Cezar Britto ao sistema prisional brasileiro em seu artigo homônimo publicado pelo site ConJur.


Publicado originalmente em http://dangaspar.jusbrasil.com.br/artigos/257066509/o-dever-da-defesa-da-legalidade-para-os-juristas


Daniel da Costa GasparDaniel da Costa Gaspar é acadêmico de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e membro da Fundação Maurício Grabois - PR.  Foi tesoureiro da União Paranaense dos Estudantes (2011-2013), vice-presidente regional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (2009-2011), além de ter ocupado vários cargos executivos, municipais e estaduais, dentro da União da Juventude Socialista nos estados do Paraná, Santa Catarina e Pará, entidade na qual filia-se desde 2007. 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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